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CAPÍTULO II: Crianças, culturas infantis e a pesquisa na escola

2.1 Crianças maravilhosas

Sonho de Menino

Quando era menino Eu via a lua saindo Pensava assim comigo Um dia eu vou lá De jeep ou caminhão De barco ou de avião Se eu não puder voar Cresceu meu coração Me trouxe outra emoção E o sonho de menino Voou... Voou... (PAULINHO PEDRA AZUL, 1986)

Sonhos de meninos e meninas, corpos em potência, ser, pensar, compreender o simples, o complexo, pensar, repensar, voar... Foram aproximadamente 22 crianças, com idades entre 8 e 9 anos, que participaram e produziram conosco a presente pesquisa. Esse número inexato de crianças deveu-se a variação da permanência das crianças na escola; fatores como desistências, mudanças de bairro, conflitos familiares, condições socioeconômicas precárias são alguns dos motivos que explicam o "abandono" da escola pelas crianças.

Esta pesquisa foi produzida com as crianças de um 3º ano de uma escola municipal da cidade de Uberlândia, Minas Gerais, doravante denominada escola Crianças Felizes3. Essa instituição localiza-se numa região periférica da cidade; é considerada pela prefeitura e policia militar um bairro com índice considerável de violência e tráfico de drogas.

Por que trabalhamos com uma turma de 3º ano? Numa primeira conversa com a diretora da escola, sugerimos a ela que gostaríamos de trabalhar com a turma do Acelera4 por termos desenvolvido no ano anterior, em 2012, uma oficina da imaginação5. Entretanto,

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Este nome é fictício e tem por objetivo proteger a identidade da escola em que realizamos a presente pesquisa.

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Acelera Brasil criado em 1997, é um programa emergencial, de "correção de fluxo" do Ensino Fundamental. O discurso é combater a repetência que gera a distorção entre a idade e a série que o estudante frequenta e, também, o abandono escolar.

5 O trabalho da Oficina da Imaginação com as crianças do Acelera foi desenvolvido no segundo semestre de

2012, fazia parte das atividades do Subgrupo Infâncias do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação e Culturas Populares e teve como objetivo geral buscar entender como se dá o envolvimento das crianças com a imaginação, com o aprender, com as histórias, os brinquedos tecnológicos e não tecnológicos, as brincadeiras, com as pessoas, crianças e adultos, no espaço-tempo da escola. A oficina foi dividia em três etapas envolvendo filme, brinquedos, desenhos, produção de objetos/brinquedos com materiais descartáveis.

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segundo a diretora, o Acelera foi cortado, não compunha mais o sistema de ensino da presente escolar. Segundo a mesma, a ordem de retirar o Acelera veio da secretaria de Educação do município.

A diretora da escola também nos explicou que foi criada na escola uma turma "especial" de 3º ano6, com isso ela nos recomendou que fizéssemos a pesquisa com essas crianças. As crianças que compuseram a turma do 3° ano apresentavam alguns ou todos os seguintes diagnósticos feitos pelas professoras e/ou psicopedagogas da escola, e/ou supervisoras, e/ou psicólogos externos: déficit na capacidade de aprender, déficit de concentração, hiperatividade, agressividade, dificuldade de convívio com outras crianças e adultos.

Observamos desde o início de nossa pesquisa, que na escola Crianças Felizes, havia uma cultura do passado e do presente das famílias das crianças falarem por elas. Normalmente o que valia na apresentação das crianças era de onde elas vieram e quem eram os seus familiares. Nesse sentido, ao nos contar sobre o encerramento do programa Acelera na escola, a diretora sugeriu a turma "especial" do 3º ano e complementou suas informações: muitas das crianças são filhas/os de pais traficantes, pais que estavam presos por roubo e/ou morte, pais que abandonaram os filhos; segundo ela eram crianças pobres que passavam por dificuldades socioeconômicas e que os direitos básicos garantidos pela constituição com o direito a vida, a saúde de qualidade, a educação de qualidade, respeito e dignidade humana estavam sempre sendo violados para aquelas crianças.

Na escola Crianças Felizes, entre os professores, diretora, supervisores e demais funcionais além do costume da história da família falar pela criança e determinar a maneira pela qual é vista, havia também outra prática que nos chamou a atenção, que era a de deixar os livros na biblioteca e muito pouco com as crianças. Os livros novos, os mais velhos, porém conservados, eram para empréstimos quando a professora liberava os estudantes durante as aulas ou durante o recreio quando a biblioteca não estava sendo utilizada como sala de reuniões. Os livros que poderiam ir para salas de aula quando as professoras levavam eram aqueles livros que, na grande maioria, estavam bem gastos, estragados, rasgados, cortados, amassados.

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O Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa7 (PNAIC), foi implementado na escola Crianças Felizes no ano de 2013. As professoras dos primeiros, segundos e terceiros anos foram convidados a participar do programa que não contemplou as professoras e os estudantes dos quartos anos. A escola recebeu 53 caixas de livros de leitura para os turnos da manhã e da tarde, distribuídas da seguinte forma:

QUADRO 1- Quantidade de livros do PNAIC destinados à escola Crianças Felizes no ano de 2013, turnos manhã e tarde.

Anos do Ensino Fundamental Quantidade de livros

Primeiros anos 680

Segundos anos 330

Terceiros anos 475

Fonte: Secretaria da escola Crianças Felizes-2013

Além dos livros de leitura, a escola recebeu 15 caixas de jogos. Todas as caixas continham os mesmos jogos: mais uma, troca letras, bingo dos sons iniciais, caça-rimas, dados sonoros, trinca mágica, batalha de palavras, quem escreve sou eu, bingo da letra inicial, palavras dentro de palavras. As professoras poderiam utilizar os jogos com as crianças e os livros foram colocados em cada sala de aula em um armário de aço com tranca. Caberia a cada educadora usá-los, não havia regras. Algumas professoras emprestaram os livros para as crianças levarem para casa, outras trabalharam com as crianças em sala de aula.

Mesmo com tantos livros, a maioria das crianças da escola Crianças Felizes não utilizava com frequência a biblioteca, tampouco os livros do PNAIC. As justificativas da escola para a pouca utilização dos livros pelas crianças foram as seguintes: as professoras não liberavam as crianças para irem até a biblioteca; as crianças não tinham interesses; a biblioteca tinha poucos livros; as crianças estragavam os livros e/ou não devolviam, levando a escola a restringir o acesso para tentar preservar seu acervo; a falta de projetos de incentivo a leitura, etc.

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O Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) é um compromisso formal assumido pelos governos federal, do Distrito Federal, dos estados e municípios de assegurar que todas as crianças estejam alfabetizadas até os oito anos de idade, ao final do 3º ano do ensino fundamental. Ao aderir ao Pacto, os entes governamentais se comprometem a: alfabetizar todas as crianças em língua portuguesa e em matemática; realizar avaliações anuais universais, aplicadas pelo INEP, junto aos concluintes do 3º ano do ensino fundamental;no caso dos estados; apoiar os municípios que tenham aderido às Ações do Pacto, para sua efetiva implementação. Disponível em <http://pacto.mec.gov.br/o-pacto>. Acesso em 4 de Novembro de 2013.

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No 3º ano Crianças Maravilhosas, em que pese os comentários feitos pela diretora e outros profissionais, encontramos crianças ativas e bastante agitadas, algumas brigavam umas com as outras, gritavam, corriam, outras reproduziam a violência, mas expressavam-se intensamente, buscavam conhecimentos e afetos nas relações com seus pares e com os adultos. No desenvolvimento e produção da pesquisa conhecemos um pouco mais tais crianças, as culturas infantis e percebemos, em muitos momentos não só a complementariedade dessas duas dimensões culturais, mas também relações de oposição entre elas. Ser especial é ser gente, humano, que expressa sentimentos e verdades mesmo com medo de ser.

As crianças da turma Crianças Maravilhosas eram seres humanos e conhecê-las requereu ir além do que a escola e seus profissionais diziam e pensavam delas. É uma alegria muito grande falar das crianças, o vínculo que estabelecemos com elas deu-se na potência, do intenso e do amoroso. Com uma potência no pensamento e na ação percebíamos as crianças como pessoas maravilhosas, com as seguintes características: potentes, pequenas, olhos brilhantes, cabelos esvoaçantes, com gel ou arrepiados, abraçavam-nos sempre fortemente, intensas no fazer e no expressar sentimentos, faziam-nos perguntas cujas respostas não sabíamos, carinhosas, gostavam de abraçar os colegas e os adultos que chegavam à sala, sempre abertas e disponíveis às propostas que fizemos para imaginar e criar, receberam-nos com alegria, encheram-nos de cartinhas de amor, corriam, pulavam, empurravam, puxavam, gritavam, falavam, sorriam, cantavam, fofocavam e ajudavam sempre que era possível.

As Crianças Maravilhosas também falaram sobre si mesmas, suas vidas e rotinas. Apresentamos a seguir um quadro com as principais características de cada criança cujo seus nomes são fictícios. Esses dados foram produzidos no primeiro dia de atividades planejadas durante uma conversa com as crianças sobre a família, o que elas faziam no período da manhã dia comum; outra parte dos dados foi produzida na descrição dos desenhos feitos pelas crianças onde foi pedido para que elas desenhassem o que faziam de manhã num dia comum. Com base na conversa com as crianças, montamos o presente quadro abaixo para conhecermos melhor cada criança da turma Crianças Maravilhosas. Esse quadro8 é relativo às crianças que estavam no início do ano com a turma e apresenta o que elas descreveram sobre si mesmas e sobre suas vidas:

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QUADRO 2 - Apresentações da turma Crianças Maravilhosas da escola Crianças Felizes.

NOME TURMA CRIANÇAS MARAVILHOSAS

1- Luiza "Meu nome é Luiza, tenho 8 anos. Eu moro com a minha mãe, com meu pai e com minha irmã. Eu tenho dois cachorrinho e eles são pinschers, um tem três meses e o outro tem quatro meses"

2- Larissa "Meu nome é Larissa, tenho 8 anos. Eu moro com minha mãe, meu pai e meu irmão. Eu gosto de brincar com minhas amigas e de boneca" 3- Maria Letícia "Meu nome é Maria Letícia, tenho 9 anos. Eu moro com meu pai,

minha madrasta e meus dois irmãos. Eu gosto de brincar".

4- Isadora "Meu nome é Isadora, tenho 8 anos. Eu moro com meus pais, meu irmão e minha irmã. Meu irmão também estuda aqui na escola a tarde. Eu gosto de desenhar e brincar com meu irmão".

5- Eduardo "Meu nome é Eduardo, tenho 8 anos. Eu moro com minha mãe, minha avó, meu avô e com meus dois tios. Eu tenho uma irmã que mora em outra casa".

6- Lilian "Meu nome é Lilian, tenho 8 anos. Eu moro com minha mãe e meu pai e meu irmão".

7- Jéssica "Meu nome é Jéssica, tenho 8 anos. Eu moro com meu tio e minha tia. Minha mãe e meus irmãos moram na Bahia".

8- Alex "Meu nome é Alex, tenho 8 anos. Eu moro com minha mãe, meu pai e minha irmã. Eu tenho duas avós, dois tios e dois avôs".

9- Francisco "Meu nome é Francisco, tenho 9 anos. Eu moro com meu pai e minha mãe e minhas três irmãs"

10- Fábio "Meu nome é Fábio, tenho 9 anos. Eu moro com minha mãe e meus dois irmãos".

11- Luiz "Meu nome é Luiz, tenho 8 anos. Eu tenho oito irmãos, e moro com eles mais a minha mãe e o meu pai".

12- Marcos "Meu nome é Marcos, tenho 9 anos. Eu tenho seis irmãos, uma irmã minha já é casada e eu moro com minha mãe e o meu pai".

13- Jorge "Meu nome é Jorge, tenho 8 anos. Eu moro com meu pai, minha mãe e meu tio".

14- Iasmim "Meu nome é Iasmim, tenho 8 anos. Eu moro com meu pai e minha e minha irmã".

15- Rosana "Meu nome é Rosana, tenho 8 anos. Eu moro com minha mãe e tenho quatro irmãos".

16- Elen "Meu nome é Elem, tenho 8 anos. Eu moro com minha mãe, minha avó e meu tio. Eu tenho uma irmã gêmea que mora comigo".

17- Rôse "Meu nome é Rôse, tenho 8 anos. Eu moro com minha mãe e meu pai. Eu tenho quatro irmãs e um irmãozinho de um mês de vida".

18- Fabíola "Meu nome é Fabíola, tenho 8 anos. Eu moro com a minha mãe e tenho três irmãos".

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As Crianças Maravilhosas, com seus jeitos e encantos construíram conosco momentos, pensamentos, reflexões-ações, sentimentos e vontades. Abaixo, na fotografia 3, apresentamos as Crianças Maravilhosas:

FOTOGRAFIA 3 - Crianças do 3º ano da turma Crianças Maravilhosas no quiosque da escola Crianças Felizes. 24/03/2013. Fonte: Arquivo da pesquisa.

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