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Criatividade e bricolagens: as relações entre comerciários e passageiros

4 CRIATIVIDADES E PRÁTICAS DE ESPAÇO E TEMPO DE USUÁRIOS DO

4.2 Criatividade e bricolagens: as relações entre comerciários e passageiros

O termo bricolagem é empregado por Michel de Certeau para designar os processos das “artes de fazer” que constituem a “invenção do cotidiano” (1994). Para o autor, os indivíduos são capazes de práticas (das grandes às mais infinitesimais) que modificam, adaptam, reinventam, as atividades do cotidiano. A bricolagem é a captação, seleção e reorganização de imagens múltiplas e dispersas que passam a formar um novo elemento, diferente das partes que o constituiram.

Esse processo está intensamente presente na relação entre os funcionários, comerciários e passageiros do aeroporto, principalmente quanto a um aspecto específico: a comunicação. O aeroporto de Fortaleza é internacional e como tal recebe diariamente voos de outros países. Os estrangeiros que aqui embarcam ou desembarcam normalmente não falam nosso idioma e, como já destacado, muitos dos comerciários e alguns funcionários do aeroporto não falam idioma algum além do português. Assim, surge a pergunta: como ocorre a comunicação entre indivíduos que não falam o mesmo idioma, comunicação esta absolutamente necessária como ação primeira em uma venda ou oferta de produtos e serviços?

Muitos funcionários apontam ser o costume o fator que lhes dá condições de se sair dessa situação. Com o passar do tempo, o funcionário se habitua e decodifica as principais demandas baseada nas situações que é obrigado a superar, como assinala uma funcionária do quiosque de venda de alimentos: “algumas coisas eu entendo assim, já pelo costume de tá aqui e atender sempre voos internacionais, sempre tem aqui a gente sempre atende”.147

Por trás desse processo, porém, há uma série de estratégias e “criatividades”. Uma das mais importantes é a mímica, como resta claro no depoimento de uma funcionária do quiosque de venda de alimentos: “eles dizem a mímica mesmo, dinheiro né, a gente vai lidando com eles... é o costume já... (...) a gente vai, na calculadora o preço, geralmente, a gente põe o preço... água geralmente eles apontam148...”.

Apontar o que se quer é a estratégia mais eficiente por parte do passageiro estrangeiro na obtenção daquilo que quer comprar. O vendedor, com o tempo, passa a trabalhar com variáveis que se estabelecem com a experiência. Ele já tem uma ideia do que o passageiro irá pedir dentro daquilo que o seu negócio oferece.

O começo é sempre difícil, mas a experiência conquistada ao longo do tempo dá ao funcionário ou prestador de serviço a possibilidade de absorver algumas palavras do idioma estrangeiro que, identificadas na fala do passageiro, remetem a esse ou aquele produto ou serviço.

Outro aspecto levantado por uma funcionária do quiosque de venda de alimentos é de grande interesse para o entendimento da comunicação. Haja vista as dificuldades com o idioma, a comunicação com o estrangeiro pode ser divisada como um empecilho às vendas ou como uma geradora de uma relação incômoda, mas, por outro lado, a barreira da língua pode até favorecer determinados negócios, pois o “cliente estrangeiro é mais rápido”; “chegou ali já escolheu, já disse...”. Além disso, como o passageiro pressupõe que ela não é fluente em seu idioma, aponta o produto que quer “diz a quantidade e pronto. Geralmente não pede desconto nem nada. Se você oferecer alguma coisa a mais já quer”.149

Dividir o mesmo código linguístico parece condição sine qua non para a existência da pechincha. Desconhecedor da língua e, mais ainda, sem a intimidade com ela, o passageiro estrangeiro torna-se um freguês mais “fácil” de se atender sob um ponto de vista bastante contrário do que se poderia pensar à primeira vista.

Para se trabalhar no aeroporto, portanto, é necessário que se conheça ou que se tenha a capacidade de também produzir o “idioma da bricolagem”, que tem uma particularidade em relação aos demais idiomas: o aprendizado dele é individualizado, assim como os termos que o compõem. Neste sentido, os relatos do engraxate e da funcionária do quiosque de produtos heráldicos são bastante significativos:

148 Entrevista concedida ao autor, em 09 de outubro de 2007.

149 Entrevista concedida ao autor por uma funcionária do quiosque de venda de alimentos, em 09 de outubro de

[...] no começo a gente estranhava muito porque quando ele [estrangeiro] ia perguntar o preço de dólar ou euro eu pedia para ele falar um pouco da língua nossa e ele ‘não, não, falo nada português’, e eu disse que não entendia e ele ‘como?’, aí ele manifestava a maneira de abrir a carteira ai eu entendia, aí eu fazia por escrito e ai eu entendia... muitas fala a gente decora – [uso da mímica] trabalhar com

estrangeiro é como você trabalhar com mudo.150

[...] na base da quase mímica... não, mas é interessante sabe, dá, dá sim pra

desenrolar, eu tipo que entendo o que eles querem, eu não sei falar o idioma, mas já dá pra entender o que ele quer....151

É necessário, no contato com o cliente estrangeiro, saber “desenrolar” e passar a entender o que ele quer, mesmo sem dominar seu idioma nessa linguagem semelhante à de “surdos-mudos” para quem observa de fora e desconhece totalmente seus códigos.

Os funcionários são os próprios autores desse “idioma” que tem sua gramática reinventada todos os dias na dinâmica de atendimentos do aeroporto. Essa gramática se constitui, portanto, principalmente da experiência (costume), intuição e criatividade daqueles que são ao mesmo tempo seus autores, professores e alunos.

Do ponto de vista do setor turístico, porém, este não é um dado animador, pois, conforme já comentado, trata-se de um setor que prima pela qualificação de seus equipamentos, como também do pessoal ali engajado. Portanto, embora sociologicamente a constituição deste “idioma da bricolagem” seja um fato bastante peculiar e interessante, configura-se como grave deficiência de um importante setor da economia do Estado do Ceará, bem como do País.

150 Entrevista concedida em 09 de outubro de 2007 – grifei. 151 Entrevista concedida em 09 de outubro de 2007 – realcei.