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Residir ou viajar: qual observação participante?

2 FLUXOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

2.1 Transitoriedades metodológico-teóricas

2.1.2 Residir ou viajar: qual observação participante?

Considerando os passageiros e muitos dos usuários do aeroporto ao derredor desses (acompanhantes – forma como se podem designar as pessoas que vão buscar ou deixar alguém no aeroporto, repórteres, cinegrafistas, fãs, torcedores etc.), a maneira como essa pesquisa assume, desde a relação entre pesquisador e seus interlocutores, é diferente da tradicional “observação participante”. Nessa, o pesquisador permanece o maior tempo possível junto aos seus “informantes”, convive com eles, ganha sua intimidade, aproxima-se e se vale de tal proximidade para captar aquilo que só é possível para quem está próximo, para quem sabe decifrar determinados “códigos nativos” e a quem é dado o direito ou a honra de compartilhá-los com seus detentores.

Na pesquisa, o investigador até permanece, inclusive estabelece uma rotina e compartilha códigos, como já mencionado, mas quanto aos funcionários, porque, quanto aos passageiros, essa tarefa se torna praticamente impossível, pois dificilmente aquele interlocutor será visto de novo.

No aeroporto não é o pesquisador que vai e vem, é o pesquisado que está predominantemente em movimento, em deslocamento, dificultando o contato, a entrevista, transformando qualquer esforço de aproximação em uma tarefa inglória. Esse aspecto teve influência nos procedimentos de entrevista, quando, por exemplo, levou-me a estender ao máximo o tempo de contato inicial, realizando sempre uma ampla introdução antes de adentrar o assunto principal, como descrito há pouco.

O antropólogo James Clifford (1999) refere-se a experiência peculiar a esta pesquisa e a outras por meio das metáforas “encuentros en viaje” e “residencia en viaje”. Metodologicamente, as implicações dessas metáforas estão no fato de que se há de desnaturalizar o campo como prática de “residência”, afinal o trabalho de campo “ha sido siempre una mezcla de prácticas institucionalizadas de residencia y viaje”. (IDEM, p. 89).

Uma das grandes questões para o autor está em repensar a atitude da Antropologia ou do antropólogo de considerar o “nativo” como imóvel15. A própria ideia de campo, em sua forma clássica de concepção que tem raízes nas “grandes etnografias” do século XIV, é uma noção delimitadora e, consequentemente, limitadora16 no tocante à atividade daqueles aos quais se observa.

Há pesquisas que, como a que está sendo apresentada aqui, põem em xeque concepções desse tipo. Em lugares como o aeroporto, nenhum dos indivíduos reside, mas sim se desloca, estão em fluxo, viajando, indo e vindo, à exceção dos funcionários e comerciários, que permanecem, embora sua rotina de trabalho também seja bastante permeada por esse fluxo.

Será tratado mais especificamente desse assunto no quarto capítulo. Por enquanto, esclareço que a rotina de trabalho dos funcionários do aeroporto tem o fluxo como elemento primordial. O depoimento de muitos dos interlocutores na pesquisa reflete isso. Quando perguntado sobre a relação com os passageiros, um funcionário da livraria respondeu que “na verdade aqui é um ambiente de pressa, a gente tem que correr contra o tempo porque senão o passageiro acaba se atrasando, perde o voo...17”; Já um funcionário de uma locadora de carros ressaltou o imperativo do “ritmo” quando indagado sobre sua relação com os funcionários que se encontram no lado oposto ao de sua loja no aeroporto: “Pela rotina nem dá tempo ter assim uma relação chegar a ter amizade não dá [...] até mesmo nas locadoras tem gente que quando entra a gente só vai saber que entrou um novato depois de uma semana ou mais18”.

As opções metodológicas desta busca concedem ao diálogo com a Antropologia uma condição imperativa. Essa ciência, de forma costumeira, principalmente em seus primórdios19, considerou condição sine qua non para o trabalho de campo que o pesquisador realizasse algum tipo de deslocamento, daí a exortação da viagem, do estranhamento, da capacidade de sair de um lugar a outro (física e culturalmente falando). Do outro lado da moeda, passou a utilizar-se de um expediente ou “estratégias localizadoras” no processo de elaboração e representação das culturas daqueles que estudava.

15 A esse respeito afirma o autor: “En la historia de la antropología del siglo xx, los ‘informantes’ aparecen

primeiro como nativos y luego surgen como viajeros. En realidad, como propondré, son mezclas específicas de ambos”. (CLIFFORD, 1999, p. 31).

16 O autor fala em “confinamento”, “encarceramento” mediante a essencialização representacional. 17 Entrevista concedida ao autor, em 14 de outubro de 2007.

18 Entrevista concedida ao autor, em 03 de outubro de 2007.

19 Clifford usa como exemplo a etnografia de Malinowski junto aos Trobriands, descrita em Os argonautas do

Tal significa dizer, o “nativo”, ao contrário do antropólogo, estava numa situação espaciotemporal bem delimitada – numa aldeia, tribo, e ali se desenrolava toda a sua vida, ou pelo menos aquilo que se considerava relevante (na visão do estudioso) o suficiente para servir como definidor de toda uma cultura.

A discussão que Clifford promove vai muito além dos pontos em jogo nesta pesquisa, pois seu questionamento diz respeito aos chamados estudos culturais, bem como a um próprio questionamento epistemológico da Antropologia. Ele fornece, todavia, um referencial pouco ordinário até então na prática de pesquisa de campo ao questionar a posição de pesquisador e pesquisados no tocante ao deslocamento em que ambos possam se encontrar. Se os interlocutores desta pesquisa não estão estabelecidos no campo de investigação (pelo menos não os passageiros, acompanhantes, torcedores, fãs, repórteres etc.), como manter-se fiel ao estilo de investigação, chamado pelo autor de “residencia/investigación”, no qual pudesse “acampar numa barraca” junto a esses, ou estabelecer uma corresidência? Nesse caso, estaria praticando o “verdadeiro” trabalho de campo?

Sim, responderá o autor, ao assinalar que “se necesitan nuevas estrategias representacionales y ellas están emergiendo bajo presión”. (1999, p. 39). Os indivíduos em circunstância de globalização estão superexpostos aos fluxos, sejam físicos, deles próprios ou de mercadorias, sejam informativos, de dados e notícias, como comentada mais à frente, quando da discussão da teoria do espaço-tempo e o cenário contemporâneo.

No caso do aeroporto, como campo de investigação socioantropológico, o deslocamento é um dado mais evidente e efetivo ainda, de forma que todos aqueles que ali se encontram estão diretamente envolvidos com ele.

Assim como propõe Clifford, não se trata de negar de todo o estilo “investigação/residência”, até porque boa parte das informações acerca da maneira como se organiza o espaço do aeroporto ou em relação a acontecimentos que já passaram e que foram impossíveis de ser presenciados no período de pesquisa e, portanto, não figuraram como observações diretas de campo, advém das conversas com aqueles que lá trabalham, ou seja, aqueles que permanecem mais tempo e de forma mais próxima do que seria uma “permanência mais enraizada”. Trata-se, portanto, de reconhecer que os fluxos também fazem parte desta pesquisa em seus aspectos metodológicos, de forma que serão os “encontros em viagem” grande fonte de informações.