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O trajeto da denúncia de intolerância religiosa sempre é um processo cansativo de convencimentos, da pessoa sobre si mesmo, que é necessário buscar seus direitos e combater os ataques, e o convencimento da vítima sobre o Outro, policiais, o delegado e “outros” que vão aparecendo pelo caminho. Há nesse percurso uma série de obstáculos que mais fazem a vítima desistir do que levar adiante o litígio, isto porque todos tentam convencer a vítima do contrário, para minimizar o crime. Foi com esta sensação que ouvi Mãe Patrícia de Iemanjá relatar os crimes de intolerância religiosa que vinha sofrendo por parte de um vizinho do seu terreiro de Umbanda e das dificuldades enfrentadas para conseguir, registrar um Boletim de Ocorrência e levar a denúncia as raias superiores72.

Mãe Patrícia relata um verdadeiro périplo para que sua denúncia fosse levada adiante. Ela conta que assim que sofreu o ataque foi à delegacia e primeiro fez um Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO) na Unidade Integrada Pró Paz (UIPP) do seu bairro, Outeiro, descrevendo as autoridades da delegacia como ocorreu a violência verbal no dia 05 de junho de 2017. Por se tratar de crime discriminatório o Boletim de Ocorrência (BO) deveria ter

72 Esse relato ocorreu durante o Seminário Diversidade Religiosa organizado pelo coletivo de afrorreligiosos de Belém e o Comitê Nacional de Diversidade Religiosa, antes vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos. O evento ocorreu nas dependências da Delegacia Geral de Polícia Civil do Estado do Pará nos dias 10 e 11 de outubro de 2017.

sido encaminhado para a delegacia especializada, a Delegacia de Combate a Crimes Discriminatórios e Homofóbicos (DCCDH), fato que não ocorreu. Ela mesma no dia 10 de julho se dirigiu a DCCDH para fazer um novo registro de ocorrência, descrevendo novamente como se deu a violência verbal por parte de seu vizinho. Mas de acordo com ela, na DCCDH foi “convencida” a fazer um termo de desistência se comprometendo a “proteger suas velas e diminuir a quantidade de incenso utilizado na defumação para não prejudicar o vizinho e nem sua comunidade”73. Ela retorna à sua casa já convencida de que nada mais adiantaria fazer, e a sensação de impunidade e injustiça sofrida permaneceria entre suas angústias. Somente depois, em conversa com outros afrorreligiosos tem conhecimento do GT e pede ajuda a eles. São os membros do GT que a acompanham para fazer um novo BO e denúncias realizadas na ouvidoria do SIEDS e no próprio CONSEP. No total foram 3 BO, sendo um primeiro no UIPP Outeiro e 2 na DCCDH. As agressões não cessaram mesmo com as intimações sendo entregues ao vizinho, muito pelo contrário, ameaças, sal na porta do terreiro, nos assentamentos de Iemanjá e Oxum ocorreram na presença dos policiais. Investigações e apurações ainda estão em curso, mas ainda não se tem um desfecho para o caso.

Esse caso de Mãe Patrícia de Yemanjá foi emblemático porque as autoridades nas delegacias que antes se furtavam a compreender o que estava a ocorrer em suas próprias instâncias de ação, tiveram que participar das reuniões do GT no CONSEP para que compreendessem como se estrutura as violações de ódio religioso, sobretudo no que tange as religiões de matriz africana, quando não, há a tendência de minimizar o crime. Delegados, chefes de polícia, policiais foram convidados a se fazerem presentes nas reuniões do CONSEP, no Seminário de Diversidade Religiosa, num processo pedagógico e empático de escuta, já que são justamente essas as reclamações por parte das vítimas de intolerância, indisponibilidade de escuta e repetição a exaustão de fatos ocorridos, numa tentativa de convencimento, como disse mais acima.

Identificar os crimes e buscar soluções concretas dentro dos trâmites legais que inclui a Lei nº 7.716/89 que define os crimes de preconceito, raça e cor, logo em seu Art. 1º diz: “Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”; o Código Penal em seu art. 208: “Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”, com pena prevista de detenção, de um mês a um ano, ou multa e se ainda houver violência “a pena

é aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência” é um dos objetivos mais imediatos do GT, que tem acompanhado e dado suporte a vários pais e mães de santo que muitas vezes se sentem acuados em espaços institucionais. No entanto, há objetivos de longo e médio prazo estabelecido pelo GT que atualmente se tornou um comitê permanente Comitê de Matriz Africana, instalado no dia 28 de maio de 2019 sob a Resolução Nº 14 de 29 de janeiro de 2019. Da entrega do Relatório Final organizado pelo GT até a instalação do agora Comitê houve a construção de um conjunto de medidas que os afrorreligiosos consideram importantes para a efetivação de mudanças no quadro de estigma, preconceito e intolerância para com as suas tradições. São elas:

1. Que este relatório seja enviado as seguintes autoridades: Governador Simão Jatene; Presidente do TJ/PA; Presidente da Assembleia Legislativa do Pará; Procurador Geral do Ministério Público do Para; Procuradoria do Ministério Público Federal no Pará; Secretaria da Igualdade Racial e Direitos Humanos da Presidência da República.

2. QUE O IESP EM SEUS CURSOS DE FORMAÇÃO PROMOVA A Imediata inclusão de matéria referente ao respeito às tradições de matriz africana nos cursos de formação de policiais civis, militares, agentes da SUSIPE, IML e DETRAN, para que o sistema de segurança pública saiba como lidar com povos tradicionais; para tanto, apresentamos uma ementa de um curso, anexa a este Relatório;

3. Que a Delegacia de combate aos crimes discriminatórios e a Delegacia de Homicídios, além de CIOP e Polícia Militar e outras divisões sejam devidamente capacitadas para lidar com a questão da diversidade religiosa, especialmente com as religiões de matrizes africanas e com o Racismo de um modo geral. ( curso , ementa anexa);

4. Que se dê ciência a Corregedoria da Polícia Civil e a Promotoria de Controle Externo das atividades policiais para investigação de possível omissão em todos os casos relatados;

5. Que a Delegacia de combate aos crimes discriminatórios e Homofóbicos seja desmembrada para garantir uma delegacia especializada de combate ao Racismo em todas as suas formas, inclusive, Racismo religioso;

6. Que a Delegacia de combate aos crimes discriminatórios e Homofóbicos tenha atribuição para investigar todos os tipos penais que se relacionam diretamente com a intolerância religiosa e racismo, salvo nas questões de crimes de Homicídio que devem ser investigadas pela Delegacia de Homicídios;

7. Que a polícia civil proceda ao imediato aprofundamento da investigação de todos os casos de crimes ocorridos contra praticantes e adeptos das Religiões de Matriz Africana, bem como a destruição dos seus templos e imagens, mencionados neste Relatório;

8. Que a polícia civil proceda a atualização de seu sistema de registro de denúncia, incluindo os crimes de: ( )racismo, ( ) Intolerância Religiosa/ofensa, ( ) intolerância religiosa /destruição de objetos religiosos...., que esta conduta seja extensiva à delegacia Virtual;

9. Que a Policia Civil proceda ao envio imediato das informações solicitadas para a Delegacia de Combate aos Crimes discriminatórios e Homofóbicos de casos de racismo religioso de 2015 até a presente data, em caráter de urgência;

10. QUE o Tribunal de Justiça do Estado do Pará possa repassar as informações dos processos tramitando no Tribunal de Justiça do Estado do Pará e no Ministério Público do Pará, que digam respeito aos crimes ocorridos contra praticantes e adeptos das Religiões de Matriz Africana, bem como a destruição dos seus templos e imagens;

11. Que a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos através de setor competente ofereça Apoio Psicossocial para as vítimas e familiares de vítimas de intolerância religiosa, ou que vivam em situação de grave ameaça de vida; 12. Que a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos através de Gerencia de igualdade racial ou setor competente ofereça Apoio financeiro para viagens aos polos regionais SANTARÉM, MARABÁ. ALTAMIRA e REDENÇÃO ao GT de Matriz africana para coleta de maiores informações;

13. Que o Estado do Pará através de setor competente ofereça Apoio logístico para teleconferências para contato com vítimas em outras regiões do estado do Pará

14. Que o Governo do Estado, através de sua Secretaria ou Assessoria de Comunicação promova anualmente Campanha educativa para a população contra Intolerância Religiosa no Estado do Pará e que o teor da campanha seja discutido, previamente no âmbito do segmento antes de sua veiculação; 15. Que o CONSEP edite Resolução que direcionem as delegacias de policias a notificarem à Ouvidoria do sistema de segurança pública de todas as ocorrências que digam respeito à violação dos direitos dos integrantes de Religião de Matriz Africana;

16. Que o Conselho Estadual de Segurança Pública, através de Resolução proceda a criação permanente de Comitê de combate a intolerância religiosa; 17. Que o Conselho Estadual de Segurança Pública PRORROGUE OS TRABALHOS DO GT criado pela Resolução nº /CONSEP/2017, ATE´A EFETIVAÇÃO DO COMITE PERMANENTE;

18. Que o Conselho Estadual de Segurança Pública edite Resolução para que a Policia Civil isente do pagamento de taxas que lhe cabem na abertura de espaços de Religião de Matriz Africana, bem como na licença de atividades festivas das Entidades, na forma do Art. 150, inciso VI, letra B da CF;

As 18 medidas apresentadas como metas e demandas exigidas ao poder público a partir dos órgãos competentes agregam exigências que envolve: redução da ignorância com relação a essas tradições, para tanto a execução de cursos de formação e/ou capacitação; maior rigor nas investigações e nas denúncias de intolerância ocorrida dentro da própria instituição de defesa pública; mais transparência e acesso as informações para a condução de banco de dados que dinamizem a realidade acerca dos crimes de intolerância; apoio psicossocial as vítimas e apoio financeiro para o Comitê alcançar a extensão do estado do Pará e assim conduzir seus trabalhos na erradicação da intolerância e Campanha educativa para a população em geral.

Entende-se que tais encaminhamentos é o começo de um trabalho que vem sendo desenvolvido a mais de 20 anos pelo coletivo de afrorreligiosos, mas que a prática não tem surtido efeito considerando as variadas mudanças de governos. Os caminhos legais de ocupação dos espaços públicos e a judicialização dos crimes tem sido a outra face mais contundente de ação que tem acontecido em cadeia, ou seja, em diversas cidades do pais. Christina Vital (2012)

por exemplo enumera uma série de organismos e ações integradas no Rio de Janeiro para dar conta dos crimes de intolerância que têm tomado uma dimensão mais armada a partir de facções criminosas que atuam nas periferias e favelas do Rio. Em Belém, ainda não é possível fazer tal correlação do crime organizado com os assassinatos, apesar de um dos casos ter apresentado tais indícios.

Até que as medidas elencadas pela comissão de relatoria do GT se tornem políticas públicas ainda há um longo caminho a percorrer, mas pode-se afirmar que os passos iniciais foram dados, considerando que o GT se torou um Comitê permanente, evidenciando que disposições para a escuta e interesse em mudar esse quadro por parte da Secretaria de Segurança Pública tem reverberado. Importante elucidar que por Política Pública entende-se um conjunto de ações promovidas pelo Governo ou Poder Público para solucionar ou dar conta de determinado problema social. Toda política pública advém de demandas e expectativas da sociedade e, portanto, cabe ao poder público de forma integrada ou não, elaborar planos e medidas de garantias do direito à liberdade religiosa. Os diagnósticos e fundamentos apresentados pelo GT em relatório destacam o caráter técnico pelo qual a categoria política Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana de Belém tem se moldado para atingirem suas metas, com a ubiquidade dos deuses e deusas, caboclos, espíritos e encantados garantido suas proteções e abrindo caminhos.

4.4 INTERVENÇÃO ARTÍSTICA E POLÍTICA: A EXPOSIÇÃO NÓS DE ARUANDA:

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