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Conquistar a confiança da comunidade de afrorreligiosos de Belém foi um trabalho laborioso, fruto de13 anos de circulação nessa rede, que se amplia e diminui de tempos em tempos. Saber com antecedência as reuniões, os eventos de articulação política dentre outras atividades do tipo exigiram parcimônia, escuta e muita observação (nos espaços físicos e nas redes sociais), foi assim, num evento público ocorrido na Assembleia Legislativa do estado do Pará (ALEPA), organizado pela Comissão de Direitos Humanos e Defesa do Consumidor (CDHeDC) encabeçada pelo presidente da Comissão, Deputado Bordalo, que tive conhecimento da construção de um Grupo de Trabalho no CONSEP para tratar e investigar os assassinatos e violência cometida contra membros das religiões afro-brasileiras no estado do Pará.

Na manhã do dia 19 de janeiro de 2017 no auditório da ALEPA por volta das 9h e 45 minutos iniciou o chamamento dos convidados para a mesa de debate. Foram eles: o próprio presidente da CDHeDC, Deputado Bordalo, Mametu Nangetu, Tata Kinamboji (Candomblé Angola), Mãe Inês (Umbanda), Babá Obaita (Candomblé Ketu), ainda os representantes de instituições do Estado como Major Guerra da Polícia Militar, Michel Durans da SEJUDH65 e Izabela Jatene da SEIPS66, Juliana Fonteles da OAB, Jorge Faria da OAB e Johny Giffoni da Defensoria Pública. Conforme falas iniciais do presidente da mesa, essa “audiência pública” foi organizada para atender pedidos das comunidades de terreiro de Belém, preocupados com as ameaças, os assassinatos e outros tipos de violências sofridos. Contudo, a primeira pergunta que me faço, quando ouço as falas preliminares dos pais e mães de santo presentes é: Quais assassinatos? Quais violências tão alarmantes assim? Ter notícias de invasões de terreiros, expulsões de pais e mães de santo das suas casas, nas periferias cariocas já era de conhecimento, pois, mesmo que de maneira menos chamativa, tais notícias chegam em rede nacional a partir de matérias jornalísticas de jornais e revistas online. Não foi o caso do Pará. Não se tem conhecimento público acerca desses tipos de violência, sobretudo quando envolve a correlação a crimes de ódio religioso. Mas nessa reunião pude constatar que: 1. O GT já fora articulado no CONSEP sobretudo com a mediação da professora Zélia Amador de Deus que faz parte do conselho como representante do CEDENPA, mas outras representações no conselho também auxiliaram como OAB, CEDECA67 e SDDH68, bem como a participação de um grupo de

65 SEJUDH – Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Estado do Pará 66 SEIPS – Secretaria Extraordinária de Integração e Políticas Sociais 67 CEDECA – Centro de Defesa da Criança e Adolescente

afrorreligiosos; 2. Foram relatados 7 casos de assassinatos de pais e mães de santo; 3. 5 casos de violências que estão sendo acompanhados pelo GT e; 4. A Policia Civil e Militar tende a associar os casos relatados de assassinatos e violência a um quadro de violência geral pelo qual a sociedade como um todo está sujeita, sem estabelecer a correlação de intolerância ou racismo religioso para o acometimento dos crimes. Ou seja, apesar de ouvir comentários entre os povos de terreiro, a sistematização dos dados pelos próprios afrorreligiosos nos mostram uma situação delicada e complexa de solucionar.

O GT foi pensado incialmente como um grupo de trabalho que além de fazer pressão para investigar e solucionar as causas dos assassinatos e punir os criminosos, construir uma parceria com a Secretaria de Segurança Pública por meio da sensibilização e conhecimento acerca dessas tradições que são tão perseguidas, pelos atuais adversários, representado sobretudo pelos evangélicos neopentecostais e pelo próprio poder público através das suas polícias.

“[...] nós continuamos sendo perseguidos quando nós vamos na delegacia e o delegado não conhece, diz: ah, é briga de vizinho, vamos fazer as pazes, (inaudível), aí eu pergunto: se fosse uma igreja que batesse o sino dela chamando fiéis pra missa, se fosse uma igreja evangélica que cantasse o hino e fizesse vigília teria o mesmo tratamento? Quando chega um policial, bate no meu terreiro e me chama de marginal, e não vem com uma postura de que eu sou uma sacerdotisa, ele vem com uma postura que somos marginal, e nós não somos, nós somos tão sacerdotes como o pastor, quanto uma freira, quanto qualquer cidadão porque nós temos direito nas leis de cultuar o que nós acreditamos (aplausos), eu acredito na natureza, nós acreditamos no nosso Deus, e explicar que nós vivemos num país laico, isso é um desabafo de uma mulher que já apareceu no programa do Ratinho, já fui chamada de filha do demônio, coisa que a gente passa e nada acontece porque não temos dinheiro pra pagar advogado e o Ministério Público não se interessa [...]” (Relato de Mametu Nangetu. RELATÓRIO, 2017, p.3)

Um campo de batalha para o coletivo de afrorreligiosos que articularam a criação do GT no CONSEP é implementar uma nova forma de tratamento para eles, enquanto membros de terreiros, em casos de crimes de intolerância religiosa. Há no relato acima de Mametu Nangetu, dois grandes adversários a se combater, cada qual com um modus operandi nocivo: o ódio reproduzido contra tudo que advém da religiosidade de matriz africana por parte dos neopentecostais e o racismo e desconhecimento estrutural por parte do Estado no que se refere esse segmento da sociedade, assim como sua inabilidade para propor soluções e políticas públicas de segurança pública. O GT visa dar conta da segunda situação, sobretudo.

O GT conta em seu Relatório Final que suas movimentações em torno da necessidade de se organizarem para pensarem especificamente políticas de segurança pública se deu no ano

de 2015 quando da divulgação em redes sociais da formação de uma milícia vinculada à Igreja Universal do Reino de Deus, intitulada Gladiadores do Altar, fato que ocorreu em várias capitais do país, como Salvador, Fortaleza, Rio de Janeiro, São Paulo, etc. Em portais de notícia69, adeptos de Candomblé, Umbanda e outra denominações de matriz africana se mostraram preocupados com tal forma explicita de ataque publicada em uma página de rede social contendo os seguintes dizeres:

“Com a permissão de Deus! (...) limparemos nosso país de tantos falsos profetas e tornaremos a Igreja universal única religião dominante em nosso território! (...) Junte-se a nós! (...) Destruiremos cada religião enganosa até que desapareça do nosso país! Essas religiões pagãs e de origens africana ou muçulmana não serão toleradas em nosso país! Nem o homossexualismo! Faremos o trabalho que o governo não teve competência pra fazer! Junte-se a nós!” (GLADIADORES DO ALTAR apud REPRESENTAÇÃO DECRADI, 2017)

Em Belém foi protocolado uma representação em forma de Carta-Manifesto, intitulada “Carta Aberta às autoridades brasileiras: proteção das Religiões de Matriz Africana contra os “Gladiadores do Altar”, e outras questões relativas à discriminação religiosa”, contudo, por falta de provas essa representação foi arquivada pela Procuradoria Regional de Direitos do Cidadão em dezembro de 2015. Mas, como o próprio povo de santo relata, coincidência ou não, neste mesmo ano de 2015 iniciaram uma série de assassinatos e ataques a terreiros em Belém e outras cidades do Estado do Pará, acrescido do evento de intolerância religiosa perpetrado pela Prefeitura de Belém em 12 de janeiro de 2016 por parte da Guarda Municipal e Policia Militar quando interviram para impedir a Caminhada dos Povos Tradicionais de Matriz Africana nos festejos pelos 400 anos da Cidade de Belém. Junto aos órgãos de segurança pública ali presentes juntaram-se também adeptos das igrejas evangélicas, formando uma espécie de “corredor polonês”, enquanto os afrorreligiosos passavam, haviam ataques do tipo “queima senhor” e “adoradores do diabo”70.

Diante de negativas em atender cartas-manifestos, representação pública e denúncias no Ministério Público Estadual e Federal, o coletivo de afrorreligiosos de Belém e Movimento Negro do Pará, assim como a mobilização de outras entidades nacionais do mesmo segmento

69 Jornal O Globo: Adeptos de Umbanda e Candomblé pedem inquérito contra Universal e ‘Gladiadores do Altar’, https://oglobo.globo.com/sociedade/adeptos-de-umbanda-candomble-pedem-inquerito-contra-universal- gladiadores-do-altar-15683429 Acesso em 05/06/2019; Portal de notícias UOL: Em culto da Universal no CE, jovens 'gladiadores' se dizem 'prontos para a batalha', https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia- estado/2015/03/03/em-culto-da-universal-jovens-gladiadores-se-dizem-prontos-para-a-batalha.htm Acesso em 05/06/2019

70 Informações coletadas do RELATÓRIO DO GT QUE INVESTIGA A VIOLÊNCIA CONTRA A TRADIÇÃO DE MATRIZ AFRICANA E SUAS AUTORIDADES E LIDERANÇAS NO ESTADO DO PARÁ.

entraram com uma representação via CEDENPA para denunciar o clima de insegurança para toda a comunidade de terreiro de Belém e Estado do Pará. A representação, bastante fundamentada com relatos dos crimes e das pessoas que sofreram intolerância e descaso dos agentes públicos, mobilizando a todos para uma tomada de posição por parte daquele Conselho e também da Secretaria de Segurança Pública do Estado. Mas, a solicitação não foi tão rápida recebida, até porque, observaremos que toda a estrutura do Estado tem dificuldades com tudo que foge aos padrões hegemônicos da sociedade. Acompanhar as reuniões ordinárias no CONSEP é ter certeza que uma mudança de visão de mundo dependerá de muito debate e embate. Foi o que constatei nas três reuniões em que estive presente, quando a temática do GT afro estava em pauta.

A solicitação da criação do GT no CONSEP-PA foi aprovada através da Resolução nº 306, de 30 de novembro de 2016, homologada pelo Decreto nº 1.690, de 03/02/2017 permitindo ao Grupo de Trabalho

a finalidade de proceder ao levantamento e acompanhar dentro da legalidade e sem quaisquer interferências, os casos de violência de um modo geral os homicídios de pessoas liadas as religiões de matriz africana, particularmente, os ocorridos no período dos anos de 2015/2016, analisando e projetando estratégias de segurança e proteção à vida de sacerdotes/sacerdotisas e demais membros vinculados à estrutura de direção e trabalho comunitário das referidas religiões. (Art. 1º, RESOLUÇÃO Nº306/CONSEP-PA)

Para que o GT obtivesse uma representação diversa das religiões afro-brasileiras no Pará e de entidades públicas, o grupo foi constituído por um representante do CEDENPA, que será o coordenador geral; um representante da Secretaria de Estado de Segurança e Defesa Social (SEGUP); um representante da Polícia Militar; um representante da Policia Civil; um representante da Superintendência do Sistema Penal; um representante da ouvidoria do SIEDS71; um representante da Sociedade Paraense da Defesa dos Direitos Humanos; um representante da Ordem do Advogados; quatro representantes indicados pelo Movimento de Afro religiosos e um represente do Ministério Público Estadual e um representante da Defensoria Pública caso ambos demonstre manifesto interesse. A instalação do Grupo de Trabalho ocorrida no dia 11 de abril de 2017 se deu em um espaço bastante simbólico para a memória local afro-paraense, no Terreiro de Tambor de Mina Dois Irmãos, considerado o mais antigo de Belém, com data de fundação em 1890 e por sua história foi tombado pelo Patrimônio Cultural do Pará no ano de 2010. O deslocamento da posse do GT para um espaço com memória sagrada entre os povos

de terreiro também constituiu uma conquista, sobretudo no que se refere a espaços de diálogo e construção de relações produtivas entre eles o poder público.

Fonte: Captura de imagem em rede social, 2019.

Desde a sua instalação o GT tem funcionado com a seguinte metodologia de trabalho: fazer levantamento detalhado dos casos de intolerâncias religiosa e violência sofridos por integrantes, familiares, a comunidade afrorreligiosa em geral. Ouve-se a vítima. Oferece-se assessoria jurídica. A depender do caso, se omite ou não seu nome, mas há a preocupação em gravar os relatos, solicitando à depoente riqueza dos detalhes, sobretudo quando se trata de seu algoz. Nos casos de homicídio o GT tem acompanhado as investigações com a finalidade de resolução dos casos e culpabilização conforme a qualificação de racismo por motivação religiosa. De acordo com o diagnóstico apresentado em relatório final do GT tem-se a seguinte situação:

Mesmo dentre os casos que o GT acompanhou, tanto o momento de registro da ocorrência, quanto as investigações, temos verificado a dificuldade em qualificar do relato do denunciante como racismo por razão religiosa, no caso de matriz africana, onde em vários momentos o sistema de justiça tenta direcionar a investigação para outras motivações.

Em quatro casos recentes de violência contra pais e mães de santo, a própria delegacia de combate a crimes discriminatórios e homofóbicos dificultou o registro de ocorrências de racismo (ou injuria racial), e desqualificou as queixas dos reclamantes para sugerir que registrassem as ocorrências como meras ameaças, sem considerar que essas ameaças ocorrem por motivação de identidade étnico-racial das tradições de matriz africana. (RELATÓRIO, 2017, p.48)

Ou seja, ainda há uma barreira de ordem subjetiva, quando se vê claramente a associação Figura 14 - Posse do GT Afro no Terreiro de Mina Dois Irmãos.

das religiões afro-brasileiras a produção do mal, e de ordem jurídica, quando está diretamente relacionada liberdade religiosa, no caso, a sua ruptura. No levantamento realizado por Christina Vital em “Relatório sobre Liberdade Religiosa Internacional 2010” do Hudson Institut, a autora pontua a América Latina e especificamente o Brasil como “relativamente respeitadores da liberdade religiosa”, isso quer dizer que apesar do aparato legal para o livre exercício das crenças religiosas e da laicidade do país, há um crescente aumento dos casos de intolerância, de ataques as religiões de matriz africana, “que somente a presença de leis não é suficiente para se garantir o pleno exercício da liberdade religiosa” (VITAL, 2012, p.11). Precisa-se como os dados do relatório internacional e os dados do GT aqui em análise, muito mais do que a garantia do direito no papel, é necessário à sua efetivação na prática, e para isso, somente atitudes concretas por parte do Estado para mudar esse quadro sinuoso de intolerâncias e violências por ódio religioso.

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