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2.3 RUPTURAS E CRIMINOLOGIAS DESLEGITIMADORAS: O CAMINHO PARA

2.3.2 Criminologia Crítica: radicalidade e especificidades marginais

O caminho delineado até então não é linear, muito menos exaustivo, a organização apresentada de forma progressiva e com a pontuação de algumas teorias, escolas, enfoques, e seus principais autores, busca a composição das bases teóricas que permitem identificar uma epistemologia própria na compreensão de e uma Criminologia crítica.

De qualquer forma, identificam-se alguns pontos comuns, em oposição à “criminologia tradicional” pelo deslocamento do objeto da questão criminal. Retomando, se em um primeiro momento a criminologia debruçou-se sobre o estudo do criminoso e as causas da criminalidade (paradigma etiológico), a criminologia crítica será composta por estudos que se voltam especialmente ao próprio controle penal (paradigma da reação social). Conforme Baratta:

(...) o novo paradigma implica uma análise do processo de definição e de reação social, que se estende à distribuição do poder de definição e de reação em uma sociedade, à desigual distribuição deste poder e aos conflitos de interesses que estão na origem deste processo. Quando, junto à “dimensão da definição”, a “dimensão do poder” aparece suficientemente desenvolvida na construção de uma teoria, estamos na presença do mínimo denominador comum de toda esta perspectiva que podemos ordenar sob a denominação de “criminologia crítica” (2011, p. 211).

O próprio termo (criminologia crítica) não se encerra em si mesmo. Se sua constituição passa por um grande conjunto heterogêneo de pensamentos, esta

pluralidade acompanha a virada crítica e as opções políticas e metodológicas adotadas por diferentes oposições radicais (que vão à raiz) ao sistema penal.

Alguns pontos irreversíveis neste caminho merecem recapitulação. Assim, a construção da Criminologia crítica vincula-se à desconstrução das bases de sustentação da ideologia da defesa social - cotidianamente reafirmada pelo senso comum criminal (punitivo) -, e legitimação do próprio sistema penal. Primeiro, com a demonstração, consubstanciada nos aportes do etiquetamento, de que não existe igualdade no Direito Penal. A lei não é igual para todos, o crime é resultado de um processo de tipificação (criminalização primária) pautado em valores dominantes da sociedade burguesa – desigual substancialmente na realidade das relações sociais de produção -, e o status de criminoso é distribuído desigualmente a partir da atuação do poder punitivo (criminalização secundária) àqueles que de alguma forma enfrentam ou ignoram este rol de valores; irreversível a compreensão de que a seletividade é estrutural e inerente ao controle penal, tanto na tipificação de condutas quanto na criminalização de indivíduos.

Igualmente irreversível é a desconstrução do princípio da finalidade e prevenção. O princípio aponta uma função dupla da pena, prevenção geral - de dissuasão e voltada para toda a sociedade -, e prevenção especial - voltada ao indivíduo sobre o qual recai a pena, visando a reabilitá-lo no meio social e obstaculizar a reincidência -, e sua desconstrução passa pela identificação de que em oposição a estas funções oficiais existem funções latentes da pena, as primeiras um fracasso, e as segundas, sucesso.

Essa abordagem é realizada por Vera Regina Pereira de Andrade (2012), ao revisitar à fundação e desenvolvimento do sistema prisional, fazendo-o sob dois eixos: do discurso das funções declaradas da prisão e do discurso de suas funções

reais (não declaradas); legitimação e resposta de deslegitimação da prisão.

O primeiro deles consiste na justificação da utilidade da prisão elaborada pela criminologia tradicional e ancorada em uma visão seletiva e classista de criminalidade, ao construir um conceito de criminoso como uma minoria potencialmente perigosa, que se buscará combater, vinculada a pessoas de baixo estrato social e associando criminalidade à violência individual. Pensamento que culmina no que se conhece por “função preventiva especial da pena”, com o objetivo/promessa de tratamento e ressocialização dos criminosos, e que conduz às funções socialmente úteis à prisão, contempladas inclusive na legislação penal

brasileira. Trata-se, nas palavras da autora, de um “defensivismo periculosista” que permeia o senso comum dos operadores do direito, com o mito da ressocialização na ideia de que a prisão defende do crime ao devolver o criminoso à sociedade “normalizado”.

O segundo eixo, que é a resposta deslegitimadora – deslegitimação crítica estrutural, é justamente o que fundamenta a mudança de paradigma na criminologia na passagem a uma criminologia da reação social e crítica, e que aponta a abstração das teorias da pena em razão da descrição da prisão em abstrato, que não existe; o que se tem são métodos concretos de punição relacionados funcionalmente a cada estrutura social e suas relações de produção, e a real função da pena (função não declarada) é a reprodução da ordem social capitalista e das desigualdades à ela inerentes, traduzindo-se a prisão em controle de classe, não visando ao combate da criminalidade, e sim construindo criminosos a partir de uma lógica de seletividade:

Essa construção do criminoso, essa construção social do inimigo interno, ocorre de forma desigual, e esta desigualdade a Criminologia da reação social e crítica chamou de seletividade, que aparece com lógica estrutural de funcionamento do sistema penal, no qual a prisão ocupa um lugar fundamental porque a prisão vai estigmatizar e perpetuar os indivíduos no status social onde eles se encontram e a evidência da seletividade no mundo ocidental com a observação da clientela da prisão. (ANDRADE, 2012, p. 305).

Como consequência destes dois eixos, a autora conclui que a prisão funciona a partir de uma eficácia invertida; fracassa no ponto de vista do primeiro eixo (discurso oficial) na constatação de sua completa ineficácia ao não atingir seu objetivo primordial de reduzir/acabar com a criminalidade, e triunfa na realização de sua função real, tanto como meio de controle de “indesejáveis” e excedentes quanto ao reproduzir as desigualdades da estrutura capitalista, com a incessante criminalização da pobreza.

A análise radical dos mecanismos e funções reais do Sistema Penal explicada pela autora é indispensável à posição política que assume a perspectiva crítica, na transformação social, compromissada com a emancipação, e não com a manutenção de uma ordem injusta. Não por acaso, o próprio Baratta (2004, p. 372) adiantava o caminho a ser perseguido:

Un análisis real y radical de las funciones efectivamente ejercidas por la cárcel, el conocimiento del fracaso histórico de esta institución en cuanto a los fines del control de la criminalidad y de la reincorporación del desviado en la sociedad, de la incidencia que ella tiene, no sólo en el proceso de marginalidad de los sujetos en forma individual, aun el exterminio de las fases marginales de las clases obreras, no pueden sino llevarnos a una conclusión radical en la individualización de los objetivos finales de una estrategia alternativa. Este objetivo es la abolición de las instituciones carcelarias. Derribar los muros de la cárcel tiene para la nueva criminología el mismo significado pragmático que los muros del manicomio para la nueva siquiatría.

Imprescindível também é pautar a Criminologia crítica na defesa dos Direitos Humanos, estes concebidos não em uma visão universalista, mas ligados às realidades concretas e historicizadas, o que consequentemente leva à pluralidade de Criminologias críticas em seus mais diversos contextos, que se encontram na superação do paradigma etiológico e denúncia das funções não declaradas do Sistema Penal.

No caso da América Latina, a recepção das teorias deslegitimadoras na década de setenta impactaram o campo teórico das discussões criminológicas na região, que em seguida depararam-se com a seguinte questão: quais as potencialidades da recepção criminológica crítica na superação e revelação dos problemas do controle social e penal latino-americano? E a pergunta que delineará as ainda atuais tensões e limites entre a “recepção da Criminologia crítica na América Latina e a construção de uma Criminologia crítica latino-americana” (ANDRADE, 2016, p. 256).

Sobre esta problemática, Leal (2017 p. 432-433) conclui, em extensa pesquisa sobre as bases do pensamento criminológico crítico latino-americano e a contribuição brasileira, que os principais pontos de irradiação da Criminologia crítica não poderiam ser atribuídos a apenas um lugar e estavam em plena construção nesta mesma época. Menciona a constituição do movimento da Nova Criminologia, União de Criminólogos Radicais nos EUA, Grupo Europeu na Escola de Bolonha, nas mesmas décadas do borbulhar das discussões do Grupo Latino-americano de Criminologia crítica. Portanto, não parece razoável falar em mera importação, mas sim na construção de um pensamento próprio, que obviamente não parte do zero, mas insere os enfoques das sociologias americanas e o método materialista histórico na “realidade e formação sociopolítica regional”.

Talvez seja possível falar em uma Criminologia crítica antropofágica, remontando a Mario de Andrade, que devora o(s) outro(s) (saberes) e transforma a

si mesma, deglute e apropria-se do que é útil a partir de seus contextos, histórias e práticas sociais.

A partir de uma epistemologia criminológico crítica latino-americana, lança-se luz às especificidades marginais do controle social e penal, e os aspectos estruturais do paradigma da reação social e da crítica materialista deparam-se com realidades de dramatização da violência e do exercício de poder, que atravessam as instâncias oficiais de controle na representação da crueldade que tem, em seu ponto extremo, a própria morte.

Sob este prisma, Andrade (2016) pontua que o controle penal nos países periféricos difere quantitativamente (pune-se mais) e qualitativamente (pune-se com mais crueldade) dos países do “norte”; em uma simbiose entre punição e genocídio, em complexas interações do controle nas dicotomias que se misturam entre formalidade e informalidade, público e privado, sistema penal aparente e subterrâneo.

Na compreensão das ambiguidades do controle social na região, a autora retoma conclusões de uma das principais referências na construção de um fazer

criminológico11 latino-americano, Lola Aniyar de Castro, com a criminologia da

libertação, em cuja obra homônima (2004) amplia as ferramentas da crítica, na compreensão de que, por trás de um sistema penal aparente, há um sistema penal subterrâneo com níveis ainda maiores de discricionariedade.

Aqui, na periferia, a lógica da punição é simbiótica com uma lógica genocida e vigora uma complexa interação entre controle penal formal e informal, entre público e privado, entre sistema penal oficial (pena pública de prisão e perda da liberdade) e subterrâneo (pena privada de morte e perda da vida), entre lógica da seletividade estigmatizante e lógica da tortura e do extermínio, a qual transborda as dores do aprisionamento para ancorar na própria eliminação humana, sobretudo dos sujeitos que “não têm um lugar no mundo” (ANDRADE, 2016, p. 273).

11 Respondendo se a criminologia da libertação é uma teoria criminológico latino-americana,

sobretudo frente a críticas de que não haveriam grandes inovações ou rupturas com outras críticas radicais do sistema penal, Lola explica: “Em primeiro lugar, parecia-nos óbvio que nossa proposta era de uma metodologia para construir uma criminologia latino-americana, isto é, uma forma de fazer

criminologia na América Latina, e não uma ‘teoria criminológica latino-americana’. [...] Não nos

propusemos nem propomos uma ‘teoria criminológica latino-americana’, no sentido convencional, por várias razões [...] (CASTRO, 2005, p. 105-106). Como já abordado com Leal (2017), considera-se a existência de uma criminologia crítica latino-americana, tendo na criminologia da libertação de Lola uma de suas principais referencias.

Somam-se a estas considerações, com a advertência de que o olhar sobre a pena não está no campo do dever ser, mas diretamente ligado à letalidade factual dos sistemas penais, a conclusão de Zaffaroni (2006): aqui a deslegitimação do Sistema Penal é consequência dos próprios fatos, e genocídio é também objeto, talvez o grande objeto, de uma criminologia marginal (incluída numa concepção alargada de criminologia crítica), que busca, antes de qualquer coisa, salvar vidas humanas.

3 ENTRE O CONTROLE PENAL E O MODO DE PRODUÇÃO SOCIAL