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CAPÍTULO 2 PRODUÇÃO RURAL, POLÍTICAS DE ESTADO E ORGANIZAÇÃO SOCIAL

2.2 A CRISE NA ECONOMIA DA BORRACHA E O DESENVOLVIMENTO DA AGRICULTURA

As seringueiras silvestres da Amazônia, Hevea brasiliensis, eram consideradas as de melhor qualidade para produção de borracha, superior a outras espécies de seringueiras. Em 1876, o inglês Henry Wickham levou sementes de Hevea brasiliensis da Amazônia para o Jardim Botânico de Kew, na Inglaterra. As experiências de cultivo das sementes foram bem-sucedidas e no início do

século XX, os ingleses começaram a plantar hévea nas suas colônias da Ásia (Weinstein, 1993). Em 1912, a produção de hévea na Ásia girava em torno de 1 a 2 toneladas anuais por seringueiro por hectare de plantação, enquanto a média amazônica se limitava a 400 quilos por seringueiro em 400 hectares de floresta natural. A produção de borracha na Ásia era controlada pelos ingleses, holandeses e franceses. Enquanto a Amazônia nunca passou das 42 mil toneladas atingidas em 1912, a Ásia já produzia 100 mil toneladas em 1915, passando de um milhão de toneladas nas décadas seguintes (Almeida e Carneiro da Cunha, 2002).

As firmas de Belém e Manaus foram à falência. De 1912 a 1932, a produção do Acre caiu de 12 mil toneladas para 3 mil toneladas, e o preço caiu de 24 mil réis para 4 mil réis. A crise do preço da borracha trouxe revolta entre os seringueiros, principalmente no início, quando os seringueiros não se conformavam com a queda do poder de troca por mercadorias. Nesse período crítico, houve expulsão de gerentes dos seringais, incêndio de barracões, suicídios e assassinatos de patrões (Almeida e Carneiro da Cunha, 2002).

Segundo Almeida e Carneiro da Cunha (2002), a crise deu origem a dois processos de movimento populacional em toda Amazônia: os seringueiros que tinham condições voltaram para sua terra natal ou foram para as proximidades das cidades, onde se ocuparam da extração de madeiras ou a agricultura para o abastecimento do mercado local. Outro movimento se deu “rio acima”, em busca de áreas em que a produtividade da borracha era tão alta que continuava sendo compensadora. Esse último movimento beneficiou o Acre, cuja população aumentou de cerca de 74 mil habitantes para 92 mil entre 1910 e 1920, ao passo que Pará e Amazonas sofreram perdas.

Almeida (1992) mostra que a queda no preço da borracha fez com que os patrões perdessem sua aderência ao monopólio comercial. Durante os anos de involução, os patrões que não podiam mais operar avançando mercadorias para os seringueiros escolheram alugar as estradas de seringa sem as cláusulas de monopólio nos contratos. Em Cruzeiro do Sul, em especial, a Associação Comercial do Alto Juruá decidiu estimular a agricultura, propondo a criação de escolas de agricultura e o cultivo de seringueiras. Os membros da associação também afirmaram os direitos dos seringueiros de adquirir mercadorias “onde eles desejassem” nos casos de preços abusivos cobrados pelos patrões ou de mercadorias em falta. Estima-se que essas concessões foram uma reação às convulsões sociais que reinou nos seringais nos anos de crise, uma tentativa de reter os seringueiros que ameaçavam abandonar os seringais em massa.

Nos seringais próximos à sede do município de Cruzeiro do Sul, a produção de borracha caiu para menos da metade do que vinha sendo produzido, enquanto a agricultura começou a florescer, não apenas para fornecer os seringueiros e patrões na floresta, mas para atender ao mercado urbano de farinha de mandioca, açúcar, café e outros artigos anteriormente importados. Usinas de açúcar e pastagens tornaram-se parte da paisagem do rio Moa, favorecido pela proximidade à sede do município (Almeida, 1992).

2.2.1 A produção agrícola e pecuária no período 1910-1960

Nos primeiros anos de crise na economia da borracha houve o aumento de produtos agrícolas e pecuários nas listas de exportação municipal no Vale do Juruá: em 1917, a região passou a exportar feijão e couros; em 1919, farinha de mandioca e algodão; em 1920, arroz, milho, açúcar, café, carne-seca e tabaco; em 1921, tijolo, óleo vegetal e madeira; e em 1922, aguardente de cana (Almeida, 1992).

Em 1922, 53 toneladas de mandioca e 31 toneladas de açúcar mascavo produzido no Alto Juruá foram vendidos para o Baixo Juruá ou Manaus. Por volta de 1936, o rio Juruá como um todo produzia cacau, farinha de mandioca (exportada para Manaus e Belém), açúcar mascavo, aguardente de cana, coco, arroz, óleo de copaíba, óleo de andiroba, marfim vegetal (jarina), madeira, assim como peles de lontras, cobras, jaguar e veado. O seringueiro também passou a produzir amendoim, melancia, jerimum (abobora) e batatas – plantadas nos bancos dos rios durante a estação seca para rápida colheita e pouco trabalho (Almeida, 1992).

A partir da Segunda Guerra Mundial, a economia da borracha entrou em uma nova fase, caracterizada pelo financiamento através do Estado. O Estado também se comprometeu a transportar novos trabalhadores através da “Comissão Administrativa para o Encaminhamento de Trabalhadores para a Amazônia” – CAET, criada em 1943. Esses trabalhadores, chamados de “soldados da borracha”, eram transportados do nordeste brasileiro para os centros urbanos da Amazônia e de lá para as áreas de floresta de seringueiras. A CAET assumia os custos de transporte, alojamento, despesas médicas e comida, apoiando cada seringueiro com um kit contendo roupas, redes, utensílios de comida e sacos. Seus termos de responsabilidades, no entanto, acabavam no momento em que o seringueiro era entregue ao patrão (Almeida, 1992).

A relação patrão-seringueiro voltou a ser regulada por contratos. O contrato de trabalho implicava seis dias por semana de trabalho, o que virtualmente minava as atividades de economia doméstica, como agricultura, pesca e caça. A venda de borracha para qualquer um que não fosse o patrão tornou-se um delito criminal, tendo ou não o seringueiro dívidas ativas. Outra cláusula proibitiva endividava os seringueiros por terem saído dos seringais, apesar de que os débitos poderiam ser transferidos de um patrão para outro. Essas condições recriaram o monopólio comercial que os patrões vinham perdendo desde o final do período do boom (Almeida, 1992).

Ao mesmo tempo, a agricultura foi-se fortalecendo cada vez mais nos arredores de Cruzeiro do Sul. Em 1950, o município teve um rendimento significante proveniente da agricultura, e seu distrito agrícola Japiim (que hoje é o município Mâncio Lima) foi caracterizado “como uma exceção real do panorama da economia do Acre”. Atividades similares as que vinham ocorrendo no rio Moa desde a primeira crise, em 1912, desenvolveram-se ao longo do rio Juruá, devido à vantagem dos solos férteis aluviais. Áreas remotas como a do rio Tejo passaram a receber farinha de mandioca do Rio Moa e de outros seringais e não mais do baixo Amazonas como ocorria até então. Nota-se assim que as bases econômicas da região diversificaram-se. Nesse período, atividades agrícolas, exploração de madeira e exploração de couro passaram a figurar ao lado da exploração seringueira no Vale do Juruá. (Almeida, 1992).

2.2.2 A política militar e suas conseqüências

O Golpe Militar que ocorreu no Brasil, em 1964, iniciou um período de grandes mudanças em toda Amazônia. A região passou a ser vista como a “última fronteira” para o desenvolvimento nacional: houve grandes investimentos públicos em projetos de infra-estrutura e uma série de incentivos para atividades privadas visando desenvolver a mineração, a exploração madeireira, a pecuária e a agricultura. Os projetos de infra-estrutura, como a construção de estradas, hidrelétricas, aeroportos, sistemas de telecomunicação foram financiados com apoio de bancos multilaterais e capital privado internacional, sob controle do Estado. O governo também financiou vários projetos de colonização ao longo de rodovias e no entorno das cidades (Kohlhepp, 2002; Allegretti, 2002).

No Acre, a construção da BR-364 ligando Rio Branco ao sul do país no início dos anos 1970 teve uma série de implicações. O governador do Acre, Wanderlei Dantas (1971-74) adotou uma

política para atrair investidores de São Paulo em que exaltava as virtudes das extensas e relativamente baratas terras do Acre. Na região de Rio Branco, Xapuri e Brasiléia, o chamado Vale do Acre, a chegada da estrada e de investidores trouxe um novo tipo de uso e ocupação das terras: grandes fazendeiros passaram a ocupar as áreas perto das estradas e transformá-las em campos de gado (Gomes, 2011).

Essa transformação na paisagem em virtude dos novos investimentos econômicos ocorreu por alguns fatores: desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o único mercado para a borracha amazônica tornou-se a nascente indústria brasileira de pneus. Mesmo assim, a política protecionista adotada pelo Estado, que estipulava os preços da borracha no mercado nacional e controlava a importação do produto, não conseguiu que a produção de borracha na região fosse maior que as 42 mil toneladas produzidas em 1912. E os empresários começaram a se queixar que a produção de borracha amazônica era insuficiente para a crescente demanda industrial e os custos, bem maiores do que a borracha importada da Ásia (Almeida, 1992).

O governo federal ainda lançou um ambicioso projeto para modernizar a produção de borracha no início dos anos 1970. O Programa de Incentivo à Produção de Borracha Vegetal – PROBOR foi implantado juntamente com o Ministério de Indústria e Comércio e a Superintendência da Borracha – SUDHEVEA. Oferecendo fundos governamentais generosos e suporte técnico, a SUDHEVEA esperava estimular os produtores de borracha a desenvolver plantações de seringueira na Amazônia (Almeida, 1992).

O PROBOR, no entanto, não deu certo. O projeto não contemplou os seringueiros – a não ser na fase final do projeto – e muitos patrões-comerciantes que receberam o financiamento usaram-no para comprar títulos de terra, fazer pasto e criar gado. Os patrões-comerciantes jamais haviam investido seus próprios recursos no cultivo de seringueiras, nem durante os anos do boom, nem no período de declínio que se seguiu, ainda menos nos anos pós-guerra. Em 1987, diante de uma série de denúncias que levaram à investigação do PROBOR, os financiamentos foram suspensos e o projeto foi abandonado (Almeida, 1992).

Além dos fundos da SUDHEVEA, os patrões do Acre também tiveram acesso ao crédito do Banco do Brasil para fazer a comercialização de mercadorias com os seringueiros. Mas assim como o financiamento do PROBOR, o crédito do Banco do Brasil foi usado para comprar gado, mercado de capitais e luxos supérfluos. Em 1972 o Banco do Brasil fez uma intervenção federal para reduzir

essa euforia. Como resultado, muitas escrituras de propriedade no estado passaram para o domínio do banco, as quais foram vendidas para prósperos comerciantes locais e investidores do sul do país (Almeida, 1992; Allegretti, 2008).

Junto com a estrada, a política de incentivo e a falência dos seringais, veio a especulação fundiária. Até então, grande parte dos seringais no Acre não tinham títulos legalizados. Alguns seringais eram do tempo em que a região foi contestada pela Bolívia e pelo Peru, ou então haviam sido obtidos em Manaus, quando o Amazonas reivindicava áreas do Acre. A questão da propriedade dos velhos seringais era antiga: em 1910, o Movimento Autonomista - que durante 100 dias conseguiram emancipar o estado – decretou que todos os seringais estabelecidos seriam considerados propriedades legais como uma das primeiras atitudes do movimento. O movimento, porém, não obteve êxito e o decreto foi ignorado. Em 1913 o governo federal ainda chegou a propor um prazo de três anos para que os patrões validassem seus títulos de terra através da compra. Os patrões não aceitaram, sob os efeitos da primeira crise da borracha (Costa, 2010).

Foi somente durante o Regime Militar que os seringais tornaram-se legalizados pelo recém-criado Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA. Num esforço conjunto de validar as transações comerciais, foram feitos vários acordos entre patrões, Estado e cartórios. Isso tornou possível a venda de grandes áreas pertencentes aos seringais a novos investidores. Em meados da década de 1970, cerca de um terço das propriedades do Acre passaram para as mãos de pessoas de fora do estado. Empresários do setor privado, a maioria do Sul e Sudeste do país, iniciaram um processo de exploração de madeiras-de-lei nessas áreas, que depois foram transformadas em campos de gado (Almeida, 1992; Almeida, 2004; Costa, 2010).

As estradas e os incentivos fiscais que acompanharam a investida capitalista no Acre nos anos 1970 não chegaram até o rio Juruá. Cruzeiro do Sul formava um sistema independente da influência econômica da capital Rio Branco. Por conta do extrativismo da borracha, as cidades integravam-se diretamente aos centros regionais – Manaus e Belém e não entre si. A especulação fundiária, no entanto, foi inevitável e grandes áreas de seringais foram vendidas aos comerciantes locais e investidores paulistas. Seguindo a tendência dos novos investimentos econômicos na região, eles usaram as áreas para exploração madeireira (Almeida, 2004).

2.2.3 As transformações na economia e a história de ocupação das localidades Vila São Pedro e Comunidade Croa

Os casos de ocupação da Vila São Pedro e da Comunidade Croa ilustram bem as tranformações que ocorreram na economia do Vale do Juruá: com a primeira crise da economia da borracha, muitos seringueiros foram para as proximidades das cidades, onde se ocuparam da extração de madeiras ou a agricultura para o abastecimento do mercado local. Esse movimento foi responsável pela constituição da Vila São Pedro, nos arredores de Cruzeiro do Sul.

Antigos moradores da Vila São Pedro contam que mudaram-se para lá porque “nos seringais o patrão não deixava plantar nem bem de raiz”, demonstrando como a vida nos seringais estava difícil. Segundo esses moradores, a sua renda era garantida, sobretudo, pela serragem (corte de madeira) e criação de porcos. A agricultura era voltada para subsistência. Estima-se que nos anos 1940-1960, a produção agrícola da localidade girava em torno do arroz, feijão, milho, cana de açúcar, tabaco e mandioca. A partir dos anos 1970, a renda gerada pela agricultura, em especial, a produção de farinha de mandioca, passa ser considerada por esses moradores como central para a economia familiar local.

Ainda segundo os relatos, esses moradores continuaram vinculados aos patrões- comerciantes no sistema de aviamento em que operava a economia da borracha, mesmo estando fora dos seringais: eles forneciam a produção madeireira, agrícola e pecuária no barracão mais próximo em troca de mercadorias industrializadas. Porém, eles não precisavam mais se submeter aos contratos locais do seringal, tampouco ao pagamento da “renda”, a porcentagem cobrada pelos patrões-comerciantes sobre a produção de borracha pelo aluguel das estradas de seringa.

Já a ocupação da Comunidade Croa se deu nos anos 1960, em uma área que pertencia ao seringal “13 de maio”, mas que era usada somente como repositório de recursos naturais. Nesse caso, tanto a presença do extrativismo da borracha, como a abundância de alimentos como caça e peixe foram os fatores que motivaram a mudança de seringueiros para o rio Croa. Contam os seringueiros do Croa que eles vendiam a borracha para o “finado” patrão Manuel Messias,

proprietário do seringal “13 de Maio”. Após a sua morte, seu filho César Messias tornou-se o patrão daquelas terras, também conhecida como “Seringal do Japonês”1617.

O extrativismo da borracha constituiu a principal atividade econômica da Comunidade Croa até início dos anos 1990, quando o governo encerrou os subsísdios que financiavam a economia da borracha baseada em seringais silvestres. Nesse momento, o extrativismo da borracha foi sendo substituída pouco a pouco por uma pequena agricultura comercial. Arroz, milho, mamão, banana e farinha de mandioca passaram a ser comercializados na localidade. A população, que já criava porcos em conjunto com o extrativismo da borracha, também passou a criar gado.

16 O nome “Seringal do Japonês” refere-se ao fato do seringal “13 de Maio” ter sido adquirido pelo sr.

Tonoru Okaiama. Não se sabe ao certo em que data isso ocorreu. Mas as informações contidas no mapa do Projeto Fundiário Alto Juruá, do INCRA, de 1981, indicam que o sr. Tonoru Okaiama foi proprietário do seringal “13 de Maio” anteriormente aos anos 1980

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IBAMA/MMA/ARPA. “Identificação e criação de Novas Unidades de Conservação. Mapeamento Comunitário Participativo para subsidiar a proposta de criação de UC de Uso Sustentável nas áreas dos rios Croa, Valparaíso e margem direita do rio Juruá - Cruzeiro do Sul – AC”. Relatório de Atividades. Consultora responsável: Silvana Rossi. Rio Branco, 2007.

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