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5 EMERGÊNCIA DA PPP DE ESGOTO DO RECIFE NA AGENDA

5.1 O FLUXO DE PROBLEMAS

5.1.2 Crise Sanitária na Cidade do Recife nas Décadas de 1990 e 2000

A precariedade sanitária é uma constante na cidade do Recife e remete a uma historiografia ampla, com registros desde o povoamento colonial (MELLO, 1991; MENEZES, ARAUJO, CHAMIXAES, 1991; VASCONCELOS, 1995; COSTA e PONTES, 2000; CARVALHO, 2010). De forma mais contemporânea, tomando o período pós redemocratização, o quadro sanitário no Recife se mantém praticamente inalterado com baixos índices de coleta e tratamento de esgoto.

Na década de 199058, o índice de coleta de esgoto no Recife era de 30%

apenas, concentrado nas áreas centrais e urbanizadas (Figura 8). Do início da década de 2000 até o ano de assinatura do contrato de PPP em 2013, ver Gráfico 3, houve uma evolução lenta e gradual para os índices de coleta e de tratamento de esgoto.

Gráfico 3 – Variação dos indicadores de coleta e tratamento de esgotos na Cidade do Recife no período 2001-2013

Fonte: Elaborado pelo autor a partir da base de dados do SNIS, 2016.

Como é possível observar, no período de 2001-2013, a expansão dos serviços foi pouco significativa. Para o serviço de coleta de esgoto, a expansão foi de apenas 2,5%. Para o serviço de tratamento do esgoto coletado, existe uma variação maior, decorrente de problemas operacionais que afetam as estações de tratamento ao longo dos anos, reverberando na variação do índice de tratamento do esgoto coletado. De todo modo, vale ressaltar que nesse período também não houve uma expansão substantiva da capacidade de tratamento do esgoto59.

58 Para a década de 1990 se utilizou dados IBGE (1992), pois nesse período não existe a informação disponível

na base de dados do SNIS que serviu de referência para todos os indicadores de esgotamento sanitário utilizados.

59 O sistema de tratamento de esgoto no Recife, no período analisado (década de 1990, 2000 e 2010) era

composto por dois subsistemas: Cabanga e Peixinhos. O primeiro com capacidade para tratar 80.000m3/dia, com

redução de carga orgânica de 40%; e o segundo com capacidade para tratar 36.000m3/dia, com capacidade de

redução de 80% da carga orgânica. Ambos sistemas possuem uma capacidade de tratamento superior ao volume de esgotos coletado, sendo subutilizadas. Além desses sistemas, existe um terceiro tipo de menor alcance,

Como resultado do baixo desempenho dos serviços de esgotamento sanitário associado a fatores de precariedade urbana (racionamento de água, falta de urbanização, drenagem deficitária, etc), a cidade do Recife sediou eventos catastróficos do ponto de vista da saúde pública.

Um evento marcante da precariedade urbana do Recife, na década de 1990, foi o título de capital mundial da Filariose bancroftiana60, concentrando os maiores

índices de infectados no mundo (MACIEL, FURTADO e MARZOCHI, 1999). O bairro da Mustardinha, uma área ZEIS com alta incidência da doença, foi palco de forte mobilização popular na época. A população local protagonizou mobilizações sistemáticas pela implantação dos serviços de esgotamento sanitário no bairro como uma solução para o problema existente, como pode ser observado na Figura 11.

Figura 11 - Convocatória para a Caminhada pelo Saneamento Básico, 1992

Fonte: Arquivo comunitário de Mustardinha (1992) apud CASTRO, 2015, p.106.

Além do caso emblemático da Mustardinha, que resultou em uma série de medidas governamentais para o controle da Filariose, ainda na década de 1990, a cidade do Recife sediou outros eventos não menos catastróficos. Em 1992 a praia

denominado de Sistemas Isolados, que não estão interligados aos subsistemas apresentados acima e que adotam soluções específicas para cada caso em relação a coleta, transporte e tratamento dos efluentes (RECIFE, 1995).

60 Wuchereria bancrofti é o agente etiológico da doença da filariose bancroftiana que se desenvolve em terrenos

alagados, canais e fossas rudimentares e redes de drenagem abertas, que apresentem retenção de água. Além da filariose existe um conjunto de patógenos de veiculação hídrica disponíveis em realidades de ausência de sistemas de esgotamento sanitário adequado (ALBUQUERQUE, 1993; MACIEL et. al., 1994).

de Boa Viagem foi literalmente fechada pela cavalaria da Polícia Militar em função de um surto de cólera (Vibrio cholerae). Na época, existia a suspeita de que a poluição dos rios e córregos, decorrentes da falta de esgotamento sanitário, tinha contaminado o litoral pernambucano, favorecendo a disseminação de uma epidemia de cólera e levando à sua interdição por um período de oito dias até o fim da suspeita. O episódio gerou o icônico banho de mar do então governador Joaquim Francisco que tentou afastar os rumores da contaminação se “arriscando” em banhar-se na praia de boa viagem (Figura 12).

Figura 12 – Manchete sobre o risco de contaminação de cólera no litoral pernambucano em 1992

Fonte: Diario de Pernambuco, 1992, p.1.

O fechamento de um dos principais cartões postais do estado, a praia de Boa Viagem, e a midiatização da transmissão da cólera no litoral pernambucano gerou prejuízos ao setor de turismo e hotelaria, além de uma série de protestos de pescadores do Pina que foram prejudicados com a medida61. Apesar dos contornos

políticos que a crise da cólera tomou no Recife, a ocorrência de cólera na capital pernambucana se manteve em patamares elevadas durante toda a década de 1990 (Gráfico 4).

61 O governador Joaquim Francisco foi duramente criticado pela forma como lidou com a questão da epidemia

Gráfico 4 – Taxa de casos de cólera confirmados (por 100.000 habitantes) em capitais no período de 1991-2000

Fonte: DATASUS, 2018.

De forma comparativa, somando todas as ocorrências registradas durante o período de 1991-2000, a cidade do Recife ocupou a terceira posição entre as capitais brasileiras com as maiores taxas de casos de cólera registrados, atrás apenas de Fortaleza (1°) e Maceió (2°). Outra posição de destaque pouco honorífica da capital pernambucana, no período de 1990-2000, foi o alto percentual de óbitos ocorridos em menores de 5 anos vítimas de doenças diarreicas agudas (Gráfico 5).

Gráfico 5 - Percentual de óbitos (%) por doença diarréica aguda em menores de 5 anos por capital no período 1990-2000*

Fonte: DATASUS, 2018.

Para o período de 1990-2000, Recife apresentou a quarta maior média nacional de óbitos por doença diarréica aguda em menores de 5 anos em comparação com as demais capitais brasileiras. Em linhas gerais, esse quadro revela a gravidade das doenças diarréicas agudas na cidade, evidenciando uma forte associação entre a saúde pública local e o baixo acesso ao serviço de esgotamento sanitário. Entretanto, cabe aqui a ressalva que as taxas de cólera e óbitos por doença diarréica aguda em menores de 5 anos são fenômenos com causas multifatoriais62 e que os serviços de saneamento apresentam uma forte

correlação negativa com estas, ou seja, em situações de baixo acesso aos serviços, em geral, observa-se taxas elevadas de cólera e óbitos por doença diarréica aguda em menores de 5 anos de (MENEGUESSI et al., 2015; SILVA, 2017).

Na década seguinte, nos anos 2000, ocorreram várias epidemias de dengue na cidade do Recife. Particularmente, em 2002 houve uma grave epidemia com mais de 116.000 mil casos notificados (CORDEIRO, 2008; BÖHM, 2016).

Além dos problemas de saúde pública que marcaram a Cidade do Recife nas décadas de 1990 e 2000, de forma não menos alarmante, ainda persiste na cidade a prevalência de altos índices de doenças de veiculação hídrica: doenças gastrointestinais, amebíase, hepatite, esquistossomose, dengue, filariose, leptospirose, entre outras diretamente relacionadas com baixo acesso ao serviço de esgotamento sanitário (GUIMARÃES, 2003; PASCOALINO e MORAES PEREIRA, 2009).

Para Kingdon (1995), eventos focalizadores como catástrofes ou desastres capazes de gerar comoção social auxiliam na conversão de questões em problemas merecedores de atenção governamental. No caso, o argumento aqui desenvolvido se refere a relação observada entre a existência de eventos “catastróficos” para a saúde pública local durante as décadas de 1990 e 2000 com o baixo acesso aos serviços de saneamento básico, em particular, o segmento de esgotamento sanitário. Como será apresentado, a seguir, do ponto de vista sanitário, o esgotamento sanitário entrou na agenda municipal gerando políticas públicas distintas para atender as demandas locais.

62 Em última análise, não é possível atribuir a redução dessas taxas apenas à variação do índice de acesso aos