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Cinema surgiu em 1895, em plena Segunda Revolução In-

dustrial. A moral burguesa-cristã, analisada por Max Weber, já

havia se sedimentado e existia um estreito relacionamento entre ciência e técnica. A ciência se fazia necessária para a redução dos custos, com vistas à produção em massa. É uma época em que se usam novas formas de energia (eletricidade e petróleo), de grandes inventos (motor a explosão, telégrafo, corantes sintéticos) e de intensa concentração industrial. Na segunda fase da Revolução Industrial, o capitalismo passou a girar em torno da indústria pesada, a produção de aço, esti- mulando a corrida armamentista, aumentando a tensão militar e política.

Em 1896, chegava ao fim a primeira grande crise do capitalis- mo, a Grande Depressão. A crise eliminou as empresas mais fracas, o capitalismo entrou na fase monopolista, dando ori- gem ao imperialismo. O principal fator da expansão colonialista era o interesse econômico, mas a ele se juntaram outros soci- ais, políticos, religiosos e culturais. Os países europeus preci- savam encontrar fontes de matéria-prima (carvão, ferro, pe- tróleo) e de produtos alimentícios que faltavam em suas ter- ras. Havia também a necessidade de novos mercados consu- midores para seus excedentes industriais, além de novos lu- gares para investir os capitais disponíveis, construindo ferrovi- as ou explorando minas. Existiam ainda os missionários evangelizadores, que desejavam converter os africanos e asi- áticos, às vezes tratando-se apenas de pretexto para justifi- car a colonização. Em 1914, 60% das terras e 65% da popula- ção do mundo dependiam da Europa. Suas potências coloniza- vam 90% da África, 99% da Oceania e 56% da Ásia60.

O triunfo da máquina trouxe o racionalismo científico. Em 1859, o inglês Charles Darwin deu início à teoria evolucionista com a publicação do livro Origem das Espécies. O estudo de doen- ças mentais levou Freud a analisar o inconsciente e a criar a Psicanálise. Augusto Comte, pai do positivismo, procurou, atra- vés da sociologia, determinar as leis que regem os fenômenos sociais, mostrando a sua influência sobre a mentalidade indivi- dual e as representações coletivas, transformando a consciên- cia moral em imperativo dos grupos sociais, negando o universalismo dos valores morais. Nietzsche exaltou a superi- oridade dos valores vitais em face da ciência e da razão, pro- curando destruir os conceitos morais vigentes. O americano William James desenvolveu o pragmatismo, afirmando ser a verdade uma ação que tem êxito.

As mudanças morais, culturais e de costumes não acompanha- vam com a mesma rapidez o progresso técnico-científico, prin- cipalmente entre o proletariado. Os aspectos do Cristianismo que não interessavam à burguesia eram desprezados, como o pacifismo, igualdade entre os homens, socialismo, mas os as- pectos morais, ascéticos, que tinham utilidade dentro da nova sociedade industrial, eram tolerados e disseminados para a população. Os intelectuais e burgueses não acreditavam ou não se interessavam mais pelos dogmas cristãos, mas o povo sim. Afinal, era em Cristo que eles encontravam conforto e rumo para as suas vidas miseráveis. Não existiam mais os imperia- listas romanos, mas havia os patrões, industriais burgueses, preocupados somente com seus lucros. Dentro deste contex- to, qual a história que, no início do Cinema, atrairia com certe- za o público e faria os donos da nova invenção obterem um lucro fácil e imediato? Logicamente, a Paixão de Cristo. Mas como retratar alguém que é comprovadamente humano, mas que tem esse significado especial de ser o Filho de Deus? Os

pioneiros do Cinema não pareciam se preocupar muito com isto. E o Verbo se fez luz e se projetou entre nós.

O público não desejava ver ou relembrar os ensinamentos fra- ternos de Jesus, mas ver com todo o movimento, a plena re- presentação daquilo que ele tinha de mais caro e importante, aquilo que dava razão e consolo para as suas vidas: o sacrifí- cio, a morte, o sofrimento e, principalmente, a ressurreição de Cristo. As pessoas sentiam mais vivo dentro de si o sofrimento do Filho de Deus, a confirmação das histórias e dogmas cris- tãos, a certeza da alegria após o sofrimento, ainda que seja depois da morte, e a sua importância, não para os ricos deste mundo, mas para Deus.

No Cinema, os evangelhos para os cristãos tornam-se vivos, reais. Os milagres e as palavras de Jesus, o seu sofrimento e significado ficam mais intensos. É o fenômeno da identificação cinematográfica, que ocorre de forma primária, no processo em que o espectador identifica-se com seu próprio olhar, de um sujeito privilegiado, que olha a projeção dos acontecimentos a partir de um ponto de vista único, ubíquo, que tudo vê. E de forma secundária, diegética, em que a identificação se dá com o próprio fato narrativo e com os personagens61, a qual pode ser observada no espectador religioso dos filmes sobre Cristo. Nas telas, os que não viram veem e creem. “Seja qual for o acontecimento maravilhoso que se passe no écran (tela), o espectador torna-se sua testemunha e participa dele. É por isso que, mesmo tendo consciência do caráter irreal do que se desenrola diante de si, o espectador vive-o emocionalmente como um acontecimento real”.62

Diante da tela o espectador reconhece Cristo, ouve os seus ensinamentos, sente a sua dor, entende a sua missão. Aquele que se diz cristão fica de frente com o seu mestre, ouve que

deve perdoar, renunciar ao mundo, amar ao seu próximo. Por um momento ele emociona-se e torna-se um verdadeiro cris- tão, mas só por um momento. Ao sair da sala de projeção tudo é esquecido, e Jesus transforma-se novamente em um ser mi- tológico. Afinal, o que foi visto foi apenas uma representação.