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O Messianismo, o Sacrifício e a Redenção no Cinema

Nos filmes que tratam diretamente da figura de Cristo, os ele- mentos do mito cristão de messianismo, sacrifício, renúncia, moral e redenção se expressam na própria história de Jesus. Os diretores buscam na profundidade e sedução do mito cris- tão o canal para demonstrar as suas visões de mundo, as suas ideologias, os seus pensamentos existenciais, sociais e políti- cos. Mas há no Cinema incontáveis exemplos, os quais não tratam diretamente da vida de Cristo, mas que verificamos como elementos do mito cristão, principalmente a questão do messia- nismo, do sacrifício, da redenção, da renúncia, como algo que instaura o novo, que redime, que transforma a existência.

A história de Cristo trouxe para a sociedade ocidental o “final feliz”, o messianismo, o super-homem. É impossível dimensionar a influência da estrutura e da narrativa dos evangelhos, com a sua história aclamada pelo público e pela crítica, nas artes do Ocidente, principalmente no Cinema. Nos evangelhos, surgem a dicotomia entre o bem e o mal e a sua eterna luta, a recom- pensa para os bons e o castigo para os maus e o messianismo, a personalidade que transforma, redime, ensina, faz justiça. A questão messiânica, a do herói, sofreu, é claro, transforma- ções para satisfazer gostos mundanos. Mas em Cristo encon- tra-se o primeiro super-homem, que nos trouxe a ideia do herói justiceiro e poderoso. Ele tudo pode, tudo vê. É o super-ho- mem divino, Filho de Deus. Aquele a quem todos se submetem, seguindo não os instintos deste mundo, mas o do seu reino, o Reino de Deus.

Nietzsche ao traçar o seu super-homem não se inspirou em Cristo, é claro, mas no seu inverso. Subtraindo os valores éti-

cos e morais cristãos, mas deixando a onipotência, a coragem, a altivez, a inteligência, a submissão de todos os homens à sua vontade. Nietzsche não vê em Cristo um herói só porque ele não luta, por desejar destruir os sentimentos instintivos do ser humano. “Na verdade, se existe algo essencialmente antievan-gélico é, sem sombra de dúvida, o conceito do herói. O que os Evangelhos tornam instintivo é precisamente o inver- so de toda luta heroica, de todo gosto pelo conflito: a própria incapacidade para a resistência é ali convertida em algo moral...”71, opina Nietzsche. Mas só porque Cristo utiliza méto- dos opostos do seu heroi, porém, mantém o seu potencial, que é o que importa a um super-homem, deixa de ser um herói?

O super-homem folhetinesco, da literatura e do Cinema, logicamente não fará a sua justiça no céu, após a morte, pois para isso já temos Cristo, mas aqui na terra, utilizando-se de métodos mundanos, com sentimentos e aspirações mundanas. “O super-homem é a mola necessária para o bom funciona- mento de um mecanismo consolatório; torna imediatos e imprevisíveis os desfechos dos dramas, consola rápido e con- sola melhor”72, analisa Umberto Eco em O Super-homem de Massa, definindo assim o héroi Rodolphe no folhetim “Os Mis- térios de Paris”, de 1842: “Rodolphe é um Deus cruel e vinga- tivo, é um Cristo com a alma de um Javé mau”73.

No Cinema, há inúmeros filmes que se utilizam do super-ho- mem em sua estrutura narrativa, variando muitas vezes ape- nas na maneira de ser e agir. O super-homem é o messias, que tem que sofrer para redimir e ser redimido. Rambo, Zorro, Tarzan, Super-Homem, os cowboys, os detetives, os policiais, são variações do messias no Cinema. Como exemplos temos alguns filmes célebres, de grandes diretores, que expressam esta questão.

Charles Chaplin, em 1950, para manifestar toda a sua amar- gura por estar sofrendo perseguições políticas nos Estados Unidos, recorre à questão do sacrifício redentor em Luzes da Ribalta (Limelight). “Limelight faz ressaltar, de modo sublime, o tema essencial da redenção e do sacrifício que ilumina, re- trospectivamente, a morte de Verdoux, a solidão do vagabun- do, as pancadas, as agressões sofridas por todos os Carlitos e por todos os pobres diabos desde o início dos tempos”, afirma Edgar Morin.74

Neste filme, o palhaço Calvero (uma alusão a Calvário), um velho humilhado, sozinho, desprezado, vinha transmitir a uma bailarina (Claire Bloom) que amava, tudo aquilo que foi tirado dele: saúde, talento, amor e glória. No final, ele morre nos bas- tidores do teatro enquanto a câmera se afasta e volta à cena da bailarina dançando. “Trata-se exatamente da própria tras- ladação de qualquer sacrifício, da fecundação da vida pela morte, pelo dom total de si mesmo. Assim, a evolução de Chaplin mos- tra-nos quase exemplarmente que o bode expiatório purifica- dor da Slap-stick comedy traz em si os germes de um herói que se sacrifica, podemos até dizer, de um deus que morre e sal- va... Carlitos/Calvero, que faz ver os cegos e marchar os para- líticos, caminha obscuramente para Jesus,” conclui Morin.75

Em 1952, em Os Brutos Também Amam (Shane), George Stevens faz uma parábola sobre a luta do bem contra o mal. Shane é um pistoleiro solitário, de origem desconhecida, que chega a uma cidade e liberta uma família de fazendeiro da opres- são de um pecuarista. Neste filme, a figura mítica do Messias se expressa no ato salvador e sofrido do pistoleiro Shane (Alan Ladd), que após se redimir do seu passado lutando contra e vencendo os opressores daquele lugar, segue seu destino melancólico e solitário, mas tendo operado uma transformação

nas pessoas. Em Shane, a dicotomia entre o bem e o mal é expressada até, de forma simbólica, nas cores: Shane veste- se de branco, símbolo cromático da paz e pureza, e o vilão (Jack Palance) de preto, símbolo relacionado na sociedade oci- dental com o mal.

Em 1968, Pasolini radicaliza, dentro de uma concepção sexual, a ideia cristã da redenção e realiza Teorema (Teorema), “para mostrar que a sociedade industrial formou-se em contraposição total com a civilização camponesa, e como o sentimento do sagrado foi institucionalizado pela Igreja, alienado pelo poder e substituído pela ideologia materialista do bem-estar”76. Nes- te filme, Terence Stamp personifica um anjo, que faz revelar os sentimentos reprimidos numa rica família milanesa de ideolo- gia pequeno-burguesa. O visitante não faz nada para seduzir os moradores da casa, mas através do seu fascínio, um a um, entregam-se sexualmente a ele: a empregada, o filho, a mãe, a filha e o pai.

Ao partir bruscamente, o anjo opera uma metamorfose nas per- sonagens. Elas não conseguem ser fiéis à mensagem recebida: a filha fecha o punho para nunca mais abrir, enlouquecida; o filho faz experiências vanguardistas em pintura, urinando nas telas; o pai doa a fábrica aos operários e parte nu para o deser- to; e a mãe se prostitui com estudantes. Só a humilde emprega- da vive a sua paixão até o sacrifício. Ela se alimenta de urtigas e levita, transformando-se em fonte de vida para outros: deitada na terra retirada por uma escavadeira, salva um operário ferido, que lava o braço ensangüentado na água de suas lágrimas, não restando do corte sequer a cicatriz, num autêntico milagre. “Para o mundo burguês - capitalista ou comunista - que substi- tuiu a alma pela consciência, não há salvação.” 77

Em 1988, o diretor polonês Krzysztof Kieslowski, que já discu- tiu a moral cristã através da série de TV, Decálogo, faz uma alegoria do sacrifício, remissão de pecados, redenção e arre- pendimento no filme Não Amarás (Krotki Film O Milosci/A Short Film about Love). A tentativa de suicídio de um jovem apaixonado por uma mulher mais velha e liberada (Magdalena, uma alusão à Madalena dos evangelhos), transforma-a, faz-la questionar sua vida, arrepender-se. O jovem rapaz, puro, tor- na-se o cordeiro de Deus que, através do amor e do sofrimen- to, redime a mulher que ama.

Como exemplo da ideia do messianismo, no contexto hollywoo- diano dos filmes de ação e ficção científica, temos O Extermi- nador do Futuro I (1984), de James Cameron, e Matrix (1999), de Andy Wachowski. O primeiro conta a história de uma mulher perseguida por um andróide que veio do futuro, cujo filho será um revolucionário, líder da resistência humana na guerra con- tra as máquinas. Já o segundo mostra um jovem atormentado por estranhos pesadelos. Mais tarde descobre que, assim como as outras pessoas, é vítima do Matrix, um sistema inteligente e artificial que manipula as mentes das pessoas, criando a ilusão de um mundo real. Um líder da resistência está convencido de que este jovem é o aguardado messias capaz de enfrentar o Matrix e conduzir as pessoas de volta à realidade e à liberdade.