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PARTE I – ENQUADRAMENTO TEÓRICO

CAPÍTULO 2. ABORDAGEM SOBRE A TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

2.4. Criticismo sobre a Teoria das Representações Sociais

O processo de afirmação, consolidação e desenvolvimento de uma teoria passa, necessariamente, pela capacidade que demonstra em responder às críticas que emergem de outros olhares, perspetivas, e contextos, e que põem à prova a sua pertinência e consistência. A ciência é um processo em construção e naturalmente beneficia da discussão científica (e também da leiga) sobre os seus fundamentos e pressupostos. Neste ponto apresentamos as principais críticas que foram/têm sido endereçadas à TRS, designadamente sobre a ambiguidade teórica, o determinismo social, o reducionismo cognitivo e a falta de agenda crítica e, concomitantemente, a contra-argumentação prestada por Moscovici, e os esclarecimentos que surgem inerentes aos desenvolvimentos assumidos por outros autores.

Uma das principais críticas à TRS incide na falta de definição do conceito de RS, tornando vaga a própria teoria, designadamente, Jahoda (1988) refere que a falta de definição formal e de fronteiras de RS permite que tudo possa ser considerado como RS. De facto, Moscovici sempre recusou dar uma definição precisa de RS porque considerava que esta iria solidificar muito um domínio de investigação em pleno desenvolvimento, bem como evitou estabelecer qualquer relação com os conceitos como o de atitudes, senso comum e ideologia, pois considerava que a exatidão na definição do conceito deve ser alcançada com a investigação, e não ser ela própria um pré-requisito (Moscovici, 1984).

McKinlay, Potter e Wehterell (1993) e Potter e Litton (1985) acusam a TRS ser circular na definição de grupo: é suposto a identificação do grupo e da representação estar na base da TRS. Por um lado, um grupo é definido por meio das RS partilhadas pelos seus membros e, por outro lado, a TRS tenta estudar a representação criada dentro de um grupo. Os autores argumentam que não é possível estudar as RS partilhadas por um grupo e ao mesmo tempo usar essa representação para definir fronteiras desse grupo.

Além disso, Potter e Litton (1985) examinam a noção de consenso e a sua abordagem por parte da TRS. Perante a ideia de que os grupos são caracterizados pelas RS que partilham as quais levam ao consenso, os autores criticam o facto de o consenso ser assumido logo à

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partida por parte dos investigadores na área das RS, em vez de ser alcançado através da análise.

Räty e Snellman (1992) concordam com Harré (1984) no que concerne à crítica de que a TRS falha na análise da relação entre as conceções científicas e as do dia a dia, em que Harré mantém que as RS são basicamente conceções individuais. Este autor questiona igualmente se fará mais sentido estudar as RS em pluralidades coletivas ou em grupos taxonómicos. Harré considerou que Moscovici estudou as RS da psicanálise em grupos taxonómicos, e não em grupos estruturados, pelo que critica que as RS não sejam manifestamente sociais, e apenas como a simples soma das representações individuais. Moscovici (1984) responderá aceitando o facto de ter estudado os grupos taxonómicos, realçando a sua importância para a compreensão sobre a forma endémica como as RS se disseminam; por outro lado, assinala que estudou grupos estruturados ao incluir no seu estudo publicações comunistas e católicas, pelo que, dadas às características da sociedade atual, as RS podem e devem ser estudadas tanto em grupos taxonómicos como nos grupos estruturados

Em 1985, Litton e Potter problematizam a TRS a partir da necessidade de ligar as representações ao estudo da linguagem e aos seus contextos de utilização, evidenciando a questão sobre o consenso e sobre as relações entre grupos; criticam que, na busca do consenso, os grupos são escolhidos a priori, omitindo a diversidade existente noutros grupos, através das escolhas metodológicas feitas pelos investigadores. Moscovici (1985) contra-argumenta respondendo que todas as representações pressupõem um consenso universal, mas não supõem a existência de consenso para todos os elementos da representação.

Em 1988, Billig vem afirmar que o conceito de RS estaria a ser utilizado com duas aceções: aceção particular, em que as RS dariam conta de um fenómeno específico dos nossos dias (apropriação quotidiana dos conteúdos científicos), e uma aceção universal, o conceito estaria relacionado com a apropriação e transformação de qualquer tipo de conhecimento, científico ou não (Billing, 1988).

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A estas e outras críticas que surgiram no período entre 1960-90, em síntese, Moscovici esclarece e reafirma o seguinte: (i) quanto à ambiguidade do conceito, Moscovici é defensor de que o conceito de RS deve ser mantido em aberto e são bem vindas as ligações com outras ciências sociais e conexões; (ii) quanto à metodologia, o autor considera que as metodologias devem ser ajustadas aos objetos de estudo específicos, e devem contar uma parte importante dedicada à descrição, antes de se lançarem prematuramente na via explicativa; (iii) quanto à clarificação do “social”, o autor reitera a construção social do sentido, e que se encontra presente nos indivíduos, permitindo a articulação social- individual que se faz por via de uma representação cognitiva guiada por processos sociais; (iv) quanto à suposta manipulação do consenso dos grupos, Moscovici propõe a distinção entre Representações hegemónicas, emancipadas e polémicas, evidenciando o consenso mas também a controvérsia que se expressa em torno de um dado objeto social.

Jodelet (2008) refere que, por vezes, a obra de Moscovici também é acusada de algumas lacunas a nível dos processos de produção das RS, designadamente a ancoragem e a

objetivação, que, ainda que referido frequentemente por investigadores, nem sempre

expressam o seguimento de todas as fases evidenciadas por Moscovici. A objetivação: envolve “seleção de informação” e a sua “esquematização” que, por sua vez, permite a “naturalização”, a projeção de construtos representacionais enquanto entidades concretas da vida, ora os investigadores apenas deram atenção à 3ª fase “naturalização” (concretização das noções abstratas). Quanto à ancoragem, que explica como é dado sentido a objetos não familiares através da “inserção num modelo conceptual existente”, o produto pelo qual é usado, por via da “instrumentalização”, da designação, classificando e interpretando os objetos sociais, e também este processo foi descurado durante anos pelos investigadores, contudo, tem vindo a evidenciar-se a atenção dada à familiarização com o desconhecido.

A apreciação crítica Voelklein and Howarth (2005) vai, precisamente, no sentido de que a TRS necessita tornar-se mais crítica, servindo de motor não apenas a pensar a sociedade, mas, sobretudo, a argumentar e confrontar a própria sociedade. Howarth (2006) reconhece que tem existido um amplo debate sobre questões relacionadas com a

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educação, designadamente sobre as questões de identidades de género (Duveen, 2001) e sobre as diferenças raciais (Howarth 2002, 2004; Vala, 2013) e, ainda, em relação à saúde e ao desenvolvimento comunitário (Campbell e Jovchelovitch, 2000), não obstante, considera pouco expressivos os estudos que demonstram a sua aplicabilidade empírica, bem como a aplicação da TRS a outros domínios societais, designadamente: (i) a relação entre os processos psicológicos e as práticas sociais; (ii) a reificação e legitimação de diferentes sistemas de conhecimento; e (iii) ação e resistência na co-construção da auto- identidade.

Howarth (2006) considera que as principais críticas surgem do lado da psicologia social britânica relativamente à insipiente conceptualização da relação entre representações- práticas sociais-poder e coloca um conjunto de questões, entre as quais “Do some people have more power to impose “their” representations onto others? If, so, can these representations be resisted?” (Howarth, 2006: 67). Moscovici (1998) discutiu que no processo de formação de uma representação existe sempre uma dialética entre conflito e cooperação; a cooperação disponibiliza aos atores sociais um código comum de discussão, debate, e assim constitui a realidade social, enquanto que o conflito é o motor do debate sobre diferentes interesses, no qual as relações de poder competem entre si. Nas sociedades contemporâneas, os sistemas de conhecimento competem entre si em busca de mais seguidores, e como resultado surge mais crítica, mais debate e, por conseguinte, menos estabilidade nos sistemas de conhecimento. Este cenário de diversidade e variabilidade das ideias coletivas das sociedades atuais constitui-se “a kind of ideological battle, a battle of ideas” (Moscovic, 1998: 403) e reflete uma distribuição desigual de poder. Nesta linha de ideias, as RS não são apenas instrumentos logico-metodológicos da psicologia social, que orientam o entendimento sobre o mundo em que vivemos, mas reiteram uma visão particular da ordem social ao protegerem certos interesses particulares em detrimento de outros. Howarth (2006) argumenta que a reprodução das relações de poder depende “on the continuous and creative (ab)use of representations that mystify, naturalize and legitimize access to power […] Different representations speak to different interests and so silence, or at least muffle, others” (Howarth, 2006:79). Cabe aos atores

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sociais tirarem vantagem da natureza híbrida e polifásica das RS para reclamar o debate, e até resistir a certas dimensões da construção ideológica das realidades, uma vez que as RS influenciam o modo como estruturamos e damos sentido ao nosso mundo, mas também o modo como o mundo influi na nossa construção pessoal e social.

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