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Capítulo 3. De como o pícaro chegou a Portugal, primeiro, por Badajoz e,

3.2. Cronologia dos textos de chegada

Organizando os dados da bibliografia de traduções portuguesas dos romances picarescos espanhóis à luz do conceito de cronologia do Grupo de Göttingen, iremos averiguar, em primeiro lugar, quais as datas das primeiras traduções portuguesas dos romances picarescos espanhóis e, em seguida, traçar os momentos de maior densidade de traduções dos romances do nosso corpus no sistema literário português.

Analisando as datas em que foram publicadas as primeiras traduções portuguesas dos romances picarescos espanhóis, compreendemos que estas obras tardaram até finais do século XVIII e inícios do século XIX para serem traduzidas para português e publicadas em volume. Esta constatação é para nós surpreendente se tomarmos em consideração que a publicação das primeiras traduções portuguesas foi bastante posterior à publicação das primeiras traduções dos romances picarescos espanhóis em outras línguas europeias. Contudo, parece replicar a cronologia da

importação via tradução de outras obras do Século de Ouro Espanhol, nomeadamente, o

Quijote (Abreu 1992).

Para que pudéssemos demonstrar o desencontro entre a cronologia da recepção via tradução dos romances picarescos espanhóis no sistema literário português e a cronologia da recepção via tradução destas obras nos demais sistemas literários europeus, criámos a Tabela 1, organizando as datas de publicação das primeiras traduções europeias dos romances picarescos por texto de partida (TP) e língua de chegada (LC). Na construção desta tabela utilizámos a bibliografia de Martino (1999) para o preenchimento da linha referente ao Lazarillo e a bibliografia de Laurenti (2000) para o preenchimento das restantes linhas e considerámos apenas as línguas de chegada contempladas em ambas fontes. Adicionámos uma coluna em que colocámos os anos que medeiam entre a data de publicação da primeira tradução europeia de cada romance e a data de publicação da primeira tradução portuguesa. Devemos informar que esta tabela regista a data das primeiras traduções em línguas europeias das duas partes do

Guzmán, deixando de fora as traduções publicadas antes de 1604 (data da primeira

edição da segunda parte do Guzmán).

Tabela 1: Data das primeiras traduções em línguas europeias dos cinco romances picarescos espanhóis do nosso

A Tabela 1 mostra que o sistema literário português assume um comportamento distinto dos demais sistemas literários europeus na história da tradução dos romances picarescos espanhóis. Enquanto as primeiras traduções europeias dos diferentes textos de partida foram publicadas entre a segunda metade de XVI e primeira metade de XVIII (à excepção da primeira tradução para Alemão do Estebanillo publicada apenas em 1791), a publicação das primeiras traduções portuguesas dos romances do nosso corpus teve lugar somente entre o último decénio de XVIII e meados de XIX. A importação via tradução dos romances picarescos espanhóis pelo sistema literário português foi, assim, bastante tardia no contexto europeu.

Passando agora à análise da evolução da densidade das traduções portuguesas dos romances picarescos espanhóis, organizámos no Gráfico 1 todos dados recolhidos. Neste gráfico organizámos o número de edições dos romances picarescos espanhóis traduzidos para português entre 1550 e 2010 em intervalos de cinquenta anos e por diferentes textos de partida. Incluímos também o número total de edições dos romances picarescos espanhóis traduzidos em português entre 1550 e 2010 para cada intervalo de cinquenta anos. Devemos levar em conta que o Gráfico 1 não distingue entre diferentes traduções de um mesmo texto de partida, nem reedições de um mesmo texto de chegada.

Gráfico 1. Número de edições dos romances picarescos espanhóis traduzidos em Português entre 1550 e 2010, por cada cinquenta anos.

Acreditamos que a disposição dos dados no Gráfico 1 permite, por um lado, o reconhecimento de dois picos de edição dos romances picarescos espanhóis em versão traduzida: tanto a primeira metade do século XIX como a segunda metade do século XX registam nove edições das obras picarescas em tradução portugeusa. Por outro, esclarece que o pico de densidade observado na segunda metade de XX se deve principalmente a um elevado número de edições das traduções portuguesas do Lazarillo (seis ao todo), não se registando nestes cinquenta anos qualquer edição do Estebanillo ou do Guzmán em versão portuguesa. Pelo contrário, na primeira metade de XIX, todos os romances do nosso corpus foram editados em tradução portuguesa, não havendo, assim, uma diferença acentuada entre o êxito editorial de um romance picaresco face aos demais.

Decidimos estudar a importação via tradução do romance picaresco espanhol no final do século XVIII e primeira metade do século XIX, porque, de acordo com os resultados da nossa pesquisa, terá sido unicamente neste escopo temporal que os cinco textos do nosso corpus foram traduzidos para Português. Adicionalmente, e, mais uma vez, de acordo com os resultados da nossa pesquisa, parece-nos que na Literatura

Portuguesa de finais de Setecentos e primeira metade de Oitocentos ter-se-á verificado um conjunto de fenómenos de recepção do género picaresco que, noutros sistemas literários europeus, formaram parte do processo de apropriação do género picaresco. Estes fenómenos consistem na publicação de pseudo-traduções, pseudo-originais e aproximações. No entanto, para que se compreenda a pertinência de alguns dos títulos que aqui exporemos, é-nos forçoso antever alguns dos resultados que serão expostos no próximo capítulo. Tal como tentaremos mais à frente demonstrar, o romance de Lesage

Gil Blas circulava no sistema literário português de então como uma obra pertencente à

série picaresca, constituindo uma das obras picarescas de maior sucesso, especialmente, até 1830. Por esta razão, consideraremos as pseudo-traduções, pseudo-originais e aproximações relativas a esta obra como parte do fenómeno de apropriação do género picaresco.

No que toca às pseudo-traduções, em 1824 são reeditados dois romances originais portugueses que haviam sido publicados em 1804, Vida e aventuras de Sancho

Cravenna e Loja de Óculos Políticos. Estas duas obras são apresentadas da seguinte

forma no periódico Gazeta de Lisboa: “Vida, e Aventuras de Sancho Cravenna, ou o Homem dos Sete Officios: novella traduzida de Mr. Le Sage, Author de Gil Braz, Diabo

Côxo, Oculos Politicos e outras obras de bom gosto neste genero (16 de Janeiro de

1824:58). Portanto, visto tratarem-se de dois textos não-traduzidos que são apresentados como traduções de textos de Lesage e escritos no “mesmo genero” de Gil Blas, consideramos que estamos perante duas pseudo-traduções.

Relativamente aos pseudo-originais, o peritexto das duas últimas traduções do nosso corpus (1848 e 1849, veja-se anexo 6) é bastante lacunar: não contém nome de autor, nome de tradutor, indicação que se trata de uma tradução, nem informação sobre

a língua de partida. Não há nenhum neologismo ou palavra francesa ou espanhola na página de título: o nome Guzmán de Alfarache é traduzido para português Gusmão d‟Alfarache e na versão traduzida do Buscón – Historia Jocosa do Gran’Tacanho - não se inclui o nome próprio do personagem – Don Pablos – o que muito provavelmente alertaria o leitor para uma possível origem espanhola. Logo, tratando-se de dois textos traduzidos que não são apresentados como traduções, consideramos que esses dois textos de chegada do nosso corpus constituem dois pseudo-originais.

Com relação às aproximações, julgamos ter encontrado dois textos portugueses, cada um oferecendo uma versão nacional do protagonista de um romance da série picaresca. O primeiro oferece uma versão nacional de Gil Blas, como se pode depreender da leitura do título: O Gaiato do Terreiro do Paço, ou o Gil Braz Portuguez (anónimo 1845) (Bonnardel 1846:89). O segundo consiste num romance inacabado de Alexandre Herculano que oferece uma versão nacional de Lazarillo de Tormes: O

galego: vida, ditos e feitos de Lázaro Tomé (1845) de Alexandre Herculano42.

Em conclusão, a nossa análise da cronologia da importação via tradução dos romances picarescos espanhóis pelo sistema literário português permitiu compreender que estas obras foram pela primeira vez publicadas em tradução portuguesa e em volume nos finais do século XVIII e princípios do século XIX. Compreendemos também que as primeiras traduções portuguesas dos romances do nosso corpus foram publicadas bastante mais tarde do que as primeiras traduções dos romances picarescos em Alemão, Francês, Italiano, Inglês e Neerlandês. A análise da cronologia mostrou ainda a existência de dois momentos de maior densidade de edição dos romances picarescos espanhóis em tradução portuguesa: a primeira metade do século XIX e a

42 Para uma primeira análise paratextual e textual deste romance como aproximação portuguesa de

segunda metade do século XX. Decidimos focar a nossa investigação no período histórico entre 1792 e 1849, uma vez que neste período se observaram os demais fenómenos de recepção que, segundo os estudos sobre o género picaresco na Europa, conformam o comportamento paradigmático da apropriação do género picaresco como modelo textual. As sete traduções publicadas entre estas datas constituirão a partir de agora o nosso corpus de textos de chegada.