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Capítulo 2. Da composição do traje espanhol e do traje francês do pícaro.

2.1. Designação genérica

Começaremos, então, por adoptar no nosso trabalho uma denominação genérica em língua portuguesa para novela picaresca a utilizar ao longo da nossa tese, de modo a evitar a falta de consenso terminológico nos trabalhos sobre o género picaresco em Portugal. Detectámos, na nossa leitura das fontes secundárias em língua portuguesa, três designações genéricas aplicadas às obras picarescas espanholas dos séculos de ouro: “novela picaresca” (utilizada em dez fontes secundárias consultadas: Saraiva/Lopes 1996; Figueiredo 1944; Rosa 1964; Simões 1967; Fontes 1974; Coelho 1979; Palma- Ferreira 1981; Trullemans 1983; Braga 1984; Mimoso 2006), “romance picaresco” (também utilizada em dez das fontes secundárias consultadas: Xavier 1934; Saraiva 1961; Cal 1971; Reis 1975; Pires 1983; Aguiar e Silva 1986; Gonzalez 1994; Buescu 1995; Reis/Lopes 2000; Fernandes 2003) e “novela pícara” (utilizada em apenas duas fontes secundárias consultadas: Simões 1967; Gonçalves 1994).

Iremos dividir a designação genérica em duas partes para podermos justificar as nossas opções dentre, primeiro, “romance”, “novela” ou “narrativa” e, segundo, “pícaro, pícara” ou “picaresco, picaresca”. No que toca à primeira parte da designação genérica, a concorrência das formas “romance” e “novela” decorre à primeira vista de um problema de tradução, que surge quando uma palavra numa língua de partida tem dois ou mais equivalentes na língua de chegada21.

A língua espanhola designa ambos os géneros “novela” e “romance” mediante a palavra novela. Contudo, na obra de referência dos estudos de narratologia em língua

21

Utilizámos, neste passo, a tipologia de equivalência tradutória de Otto Kade (1968) em que o problema tradutório a que nos referimos é descrito como constituindo um caso de “choise-based equivalence”: “One-to-several or several-to-one (Viele-zu-Eins): An item in one language corresponds to several in the other language” (parafraseado por Pym 2010:29, ênfase nossa).

portuguesa, defende-se que a palavra espanhola novela tem um só equivalente semântico na língua portuguesa, a palavra “romance”:

[S]e em português, italiano (novella), francês (nouvelle) e alemão (novelle) os respectivos termos remetem sensivelmente para o mesmo conceito, tal não se verifica em espanhol ou em inglês, línguas em que aqueles que são os termos correlatos (novela e novel) designam o romance; daí que nessas línguas se recorra a expressões de circunstância ou importadas (novela corta em espanhol; novella em inglês, também, com menor precisão, short story (Reis/Lopes 2000:294).

Aceitando que a tradução da primeira parte da designação genérica novela picaresca deve ser “romance”, iremos ainda problematizar a aplicabilidade deste termo literário para designar as obras picarescas espanholas. Esta problematização partirá de uma enumeração sucinta das características que contrapõem o género “romance” ao género “novela” conforme elencadas nas fontes secundárias utilizadas (Eikhenbaum 1925; Aguiar e Silva 1986; Seixo 1986; Reis/Lopes 2000; Coelho 2001; Stalloni 2001) e seguir-se-á da análise da presença ou ausência destas características na obra Guzmán, uma vez que é unanimemente considerada como a obra definidora do género picaresco. Antes de decidir que designação genérica utilizar ao longo desta monografia, iremos analisar a presença ou ausência destas mesmas características no Lazarillo, por nos parecer que esta obra apresenta diferenças formais face às demais obras picarescas espanholas que devem ser consideradas.

Nas fontes secundárias utilizadas, elencámos cinco grandes diferenças entre “novela” e “romance”, que nos possibilitam testar a aplicabilidade de um ou outro termo na denominação do género picaresco espanhol. Em primeiro lugar, a novela é “linear” (Stalloni 2001:69), desenvolvendo-se “sem desvios bruscos nem anacronias” (Reis/Lopes 2000:295), enquanto o romance é “redondo” (Coelho 2001:434) caracterizado por uma acção “eventualmente complicada por ramificações secundárias”

(Reis/Lopes 2001:350). Em segundo, a novela caracteriza-se por uma concentração temática, como explica Yves Stalloni: “La nouvelle a pour sujet un événement particulier, souvent unique, autour duquel s‟organise la narration” (69), enquanto o romance abarca, na sua diegese, conteúdos que podem não servir o desenlace, ou seja, catálises, como explica Maria Alzira Seixo:

[Enquanto] na narrativa a linha discursiva de base se estabelece a partir das funções nucleares (sendo as catálises, com efeito e também por definição, meras expansões descritivas ou justificativas de cada núcleo em si mesmo considerado), no romance tal linha discursiva é alterada e passa a estabelecer- se numa ligação primária que integra indistintamente funções nucleares e funções catalíticas. (1986:18)

Em terceiro lugar, a novela tem um único narrador, o mesmo que dizer, uma narração monódica (Stalloni 2001:69), enquanto o romance permite mais que um narrador. Em quarto lugar, toda a matéria narrada na novela aponta para um desenlace único que leva Eikhenbaum a identificar o desenlace da novela com uma conclusão vista como única e necessária. Pelo contrário, Eikhenbaum considera o desenlace do romance um momento de enfraquecimento, consequência da inclusão de intrigas secundárias no romance que vão, inevitavelmente, terminando ao longo da narrativa; por esta razão, o final do romance é identificado com um epílogo, pois serve como um mero balanço final que frequentemente dá conta de como se encontram as personagens principais depois de toda a acção estar concluída (83-84). Por fim, como consequência da unidade temática e da linearidade da acção, a novela é frequentemente de extensão mais breve que o romance; este tem, portanto, maior extensão que aquela, podendo inclusivamente, abarcar na sua diegese outras narrativas, como novelas intercaladas.

Utilizando a lista das cinco distinções acima expostas, podemos classificar o

Guzmán como romance devido à presença das características identificadoras deste

género e, consequentemente, a ausência das características definidoras de novela. Em primeiro lugar, a acção do Guzmán não é linear, uma vez que, tal como afirma Rico, a narração das aventuras do pícaro (a acção) é constantemente interrompida por digressões moralizantes que dividem e se entrepõem à história (2005:59). Segundo, há inúmeros episódios narrados que podem ser considerados catalíticos, como exemplo relembre-se a longa descrição da cidade de Florença desenvolvida ao longo do primeiro e segundo capítulos do livro 2 da II parte, que inclui a descrição de igrejas, do palácio, do retrato de Cosme de Médici no interior do palácio, do templo de São João Baptista e das festas, que em nada se relaciona com o desenlace. Em terceiro, observamos no

Guzmán novelas intercaladas narradas por outras personagens: um jovem frade, com

quem Guzmán de Alfarache se cruza depois do episódio do repasto de mula, conta a história de Ozmín y Daraja (I,i, capítulo 8); na segunda parte, César, um amigo do embaixador de Espanha em Nápoles, conta a história de Dorino e Clorinia (II,89-95); Sayavedra servindo Guzmán de Alfarache narra também a sua vida na primeira pessoa (II,212-227) e, tentando alegrar Guzmán de Alfarache após a morte de Sayavedra (caído ao mar), o capitão do navio lê a história de Bonifacio e Dorotea que se encontra num caderno de um remador (II,309-329). Em quarto lugar, consequente da concorrência de catálises e multiplicidade de narradores, o desenlace não pode ser identificado como conclusão mas como um final típico de romance, isto é, identificado com um epílogo. O

Guzmán apresenta um final aberto, uma vez que promete uma terceira parte que Alemán

nunca escreveu, tal como se pode constatar da leitura da última frase da obra: “Aquí di punto y fin a estas desgracias. Rematé la cuenta con mi mala vida. La que después gasté todo el restante de ella verás en la tercera y última parte (…)” (552). O mesmo que dizer

que a obra termina com a a promessa de um discurso depois do discurso, i.e., um epílogo. Por fim, a extensão desta obra é também característica do romance: duas partes, compostas por 383 e 520 páginas respectivamente.

Podemos, assim, afirmar que o Guzmán é um romance. E, tratando-se da obra definidora do género, propomos, portanto, que a primeira parte da denominação genérica seja “romance”.

No entanto, se procedermos à análise das características acima expostas na obra que iniciou o género picaresco, o Lazarillo, concluímos que se trata de uma novela. A matéria é narrada de uma forma linear, já que Lázaro de Tormes conta a história da sua vida desde o seu nascimento até ao dia da escrita da sua autobiografia. Não há intrigas secundárias em toda a obra. Toda a matéria é narrada por Lázaro de Tormes e todas as informações são filtradas pelo seu ponto de vista (Rico 2005:35-44). O desenlace desta obra pode ser identificado com uma conclusão, pois todas as experiências narradas por Lázaro, tal como afirma Lázaro Carreter, explicam o seu final como marido consentidor: “el pregonero que soporta el deshonor conyugal es un hombre entrenado para aceptarlo por la herencia y por sus variados aprendizajes” (1978:67). E, por fim, a extensão é muito mais breve que os demais romances picarescos, cerca de 50 páginas.

A análise que acabamos de empreender veio afinal justificar a falta de consenso terminológico que havíamos detectado nas fontes secundárias sobre o género picaresco em Portugal. A saber: a série picaresca inclui não só romances picarescos como também uma novela. Por esta razão, na academia espanhola foi já discutida a aplicabilidade do termo novela às obras do género picaresco. James Parr, para citar um exemplo, afirma que o Lazarillo contém muitas das características da novela, mas nunca poderia ser

formalmente compatível com este género, uma vez que a novela surgiu apenas em meados do século XVIII (1979:375).

Porque nos é forçoso estabelecer uma terminologia para este estudo, decidimos utilizar “romance” na primeira parte da denominação genérica. Estamos conscientes que esta palavra não se aplica à totalidade das obras da série picaresca, mas também neste ponto, se revela o equivalente semântico mais adequado para novela picaresca. Os críticos de língua espanhola continuam a utilizar novela picaresca, mesmo sabendo que denomina um grupo de obras textualmente muito díspares entre si e mesmo depois de ouvirem os argumentos em favor da sua supressão de Edmond Cros (1979:209) e de Daniel Eisenberg (1979), relembrados por Ardila (2010:42-43). Julgamos que devemos utilizar o substantivo “romance”, porque é o equivalente semântico da palavra espanhola novela e porque é aplicável ao Guzmán, obra definidora do género.

Quanto à segunda parte da denominação genérica, utilizaremos o adjectivo (romance) “picaresco” e não (romance) “pícaro”. No actual Dicionário Houaiss da

Língua Portuguesa, o adjectivo “pícaro” significa algo ou alguém “ardiloso, astuto,

velhaco, (...) sagaz”, sendo que apenas o substantivo “pícaro” tem uma acepção no campo da literatura, a saber, a denominação da “personagem característica do romance

picaresco”. Pelo contrário, o adjectivo “picaresco” tem a acepção que procuramos:

“denomina o género literário no qual se descreve o comportamento dos pícaros” (Houaiss/Villar/Franco 2003:285).

Em conclusão, a denominação genérica que utilizaremos nesta investigação, e que adoptamos como tradução de novela picaresca, é romance picaresco. Propomo-nos estudar, então, a importação pelo sistema literário português de um género literário denominado romance picaresco.