• Nenhum resultado encontrado

Cronoprevenção uma nova aplicação da cronoterapêutica

No documento Cronoterapêutica (páginas 33-42)

A cronoprevenção consiste na administração do medicamento ou outras intervenções de acordo com os ritmos biológicos, de forma a prevenir a doença ou um agravamento do estado de saúde dos doentes. Utiliza os mesmos princípios da cronoterapêutica, sendo que o objectivo é a evicção da doença, patologia ou outros fenómenos deletérios e não o controlo ou reversão de uma doença aguda ou crónica já existente1.

Este conceito é ilustrado pela descoberta de que baixas doses de ácido acetilsalicílico (AAS) minimizam ou previnem o risco de pré-eclâmpsia. Várias investigações mostraram que o AAS na gravidez pode prevenir a pré-eclâmpsia na gravidez de alto risco. No entanto, nem todos os estudos demonstraram estes efeitos protectores1.

Uma revisão dos estudos publicados detectou várias falhas de metodologia que poderiam estar na base destas diferenças: (1) alguns trabalhos não envolviam apenas doentes de alto risco; (2) a medicação de AAS não foi sempre iniciada no início da gravidez; (3) não foi especificado um horário para a toma da medicação1.

Um estudo prospectivo, randomizado e com ocultação dupla avaliou as diferenças nos efeitos protectores da AAS em função do horário em que a medicação era administrada. Neste estudo, foram recrutadas 341 grávidas (181 primíparas), normotensas, mas com risco acrescido de hipertensão gestacional e pré-eclâmpsia. Foram distribuídas em 6 grupos, cada um composto por cerca de 55 a 59 participantes, em que variou a medicação (placebo ou 100 mg de AAS) e o horário de toma (de manhã ao acordar, 8 horas após acordar ou antes de

30 dormir). As participantes foram seguidas desde as 12/16 semanas de gestação até ao termo, com intervalos de vigilância de 4 em 4 semanas. Conclui-se que o efeito do AAS na pressão sistólica e diastólica foi idêntico ao do placebo, se a toma ocorresse de manhã ao acordar. Quando a toma era feita 8 horas após acordar, notava-se uma redução siginificativa na pressão arterial durante as 24 horas, com uma diferença de 4.4 e 3.5mmHg para a pressão sistólica e diastólica, respectivamente. No entanto, a diferença maior verificou-se com o horário de toma antes de dormir, com uma redução de 9.7 e 6.5mmHg para a pressão sistólica e diastólica, respectivamente (Figura 3) 40.

O efeito protector da medicação para a pré-eclâmpsia, hipertensão gestacional, atraso no crescimento intra-uterino e parto pré-termo foi dramaticamente diferente de acordo com o horário em que a medicação foi administrada. A incidência de pré-eclâmpsia nos 3 grupos placebo foi de cerca de 12%. A toma matinal de AAS não foi de todo protectora (15% de incidência), mas a toma 8 horas após acordar e antes de dormir mostraram-se eficazes (1% de incidência). A hipertensão gestacional foi comum, afectando em média 30% das participantes nos grupos placebo. Novamente, a dose matinal de AAS não mostrou ser protectora (25% de incidência) enquanto a toma 8 horas depois de acordar (9% de incidência) e antes de dormir (7% de incidência) o foram. A incidência de atraso de crescimento intra-uterino atingiu os 18% nos grupos placebo. Novamente, a dose matinal

Figura 3 – Variação da pressão

arterial sistólica e diastólica média ao longo de 24 horas, relativamente à idade gestacional em mulheres grávidas a tomar aspirina, em horários diferentes. *P˂0.001. Adaptado de 39

31 não se mostrou significativamente protectora (16%), enquanto a toma 8 horas depois de acordar (7% de incidência) e especialmente o horário antes de dormir (3% de incidência) mostraram-se eficazes. Finalmente, a incidência de parto pré-termo no grupo placebo rondou os 14%, sendo que a dose matinal não mostrou uma redução do risco (12% de incidência), enquanto que a toma no período da tarde ou antes de deitar tiveram bons resultados (3% e 0% de incidência, respectivamente) 40.

Não foi só na pré-eclâmpsia que se observaram bons resultados com a alteração do horário de administração de AAS. Este fármaco também é prescrito para a prevenção primária e secundária de eventos cardiovasculares e cerebrovasculares. O AAS administrado antes de deitar, apresentou efeitos benéficos na redução da pressão arterial (7,2/4,9mmHg), enquanto a administração ao acordar provocava ligeira elevação da mesma. Esta redução era duas vezes maiores nos doentes que apresentavam padrão não-dipper (11,0/7,1mmHg) quando comparado com os dippers (5.5/3.3mmHg; p‹0.001). Assim, como já acontecia na pré- eclâmpsia, a administração de AAS é mais benéfica ao deitar, neste caso apresentando uma maior protecção relativamente a eventos tromboembólicos41.

Existem vários outros exemplos de cronoprevenção com aplicação prática, não podendo deixar de salientar o uso das estatinas, eficazes na prevenção primária e secundária de eventos cardiovasculares em doentes com dislipidemia. Sabe-se que a taxa de biossíntese do colesterol é mais alta após a meia-noite e mais baixa de manhã e no começo da tarde. Este ritmo circadiano deve-se às mudanças de actividade da HMG-CoA redutase. Em geral, as estatinas com semi-vida curta (lovastatina, sinvastatina e fluvastatina) são mais eficazes a diminuir o LDL quando tomadas à noite, enquanto as estatinas com semi-vida longa (fluvastatina – fórmula de libertação lenta, rosuvastatina e a atorvastatina), têm efeitos similares independentemente do horário de toma42. No entanto, novas evidências demonstraram que existe uma influência

32 significativa nos efeitos lipídicos e não lipídicos desses fármacos, dependendo da altura em que são tomados, em doentes que foram submetidos a intervenção coronária percutânea. O seguimento durante um ano de 152 destes doentes, mostraram que a toma nocturna de atorvastatina (40mg/dia no primeiro mês e 10mg/dia após), estava associado com uma frequência menor de eventos cardiovasculares major, uma taxa de reestenose mais baixa, uma diminuição mais pronunciada do nível de colesterol total, LDL e triglicerídeos, a um aumento do HDL e uma diminuição da disfunção endotelial, quando comparados com a toma matinal43.

Conclusão

Apesar de ser uma área relativamente recente na medicina, a cronoterapêutica já tem provas dadas e está integrada no dia-a-dia do médico, utilizada muitas vezes de forma inconsciente, quase como que fazendo parte do senso comum. Seja a prescrição de estatinas antes de dormir, ou de antagonistas dos receptores H2 ao final da tarde42, estas práticas bem enraizadas tiveram origem em estudos e na aplicação da cronoterapêutica.

A grande vantagem da cronoterapêutica é o facto de representar uma forma fácil, barata e eficaz de melhorar os tratamentos farmacológicos, seja através de um aumento de eficácia, seja pela diminuição de efeitos adversos, aumentando a qualidade de vida dos doentes.

Além de ser uma área de aplicabilidade virtualmente transversal na farmacologia e terapêutica, a sua importância impõe-se quando o tratamento de determinadas patologias apresenta um arsenal medicamentoso limitado, problema com que se depara muitas vezes a oncologia.

Não só propicia uma melhor aplicação dos medicamentos existentes, como permite a utilização fármacos anteriormente descartados devido à sua elevada toxicidade, realçando o

33 exemplo da oxaliplatina, fármaco rejeitado inicialmente para o tratamento do carcinoma colorectal e que, posteriormente, foi integrado no seu tratamento graças à diminuição dos efeitos adversos aquando da utilização da cronoterapêutica4.

Assiste-se hoje a uma “revolução silenciosa” na farmacologia e terapêutica, graças à cronoterapêutica. Ainda há muito trabalho a fazer e muitas opções a explorar, mas claramente é algo que merece tanto o investimento financeiro efectuado, como todo o empenho que os investigadores têm dado a esta área da medicina.

Bibliografia

1.Smolensky MH, Peppas NA. Chronobiology, drug delivery, and chronotherapeutics. Advanced Drug Delivery Reviews.2007;59: 828–851.

2.Hermida CH, Smolensky MH. Chronotherapy of hypertension. Current opinion in nephrology and hypertension. 2004;13(5):501-5.

3. Lemmer B, Labrecque G. Chronopharmacology and chronotherapeutics: definitions and concepts. Chronobiology International. 1987;4(3):319-29.

4. Levi F, Schibler U. Circadian Rhythms: Mechanisms and Therapeutic Implications. Annual review of pharmacology and toxicology. 2007;47:593-628.

5. Rebuelto M; Chronopharmacology and antimicrobial therapeutics. Current clinical pharmacology.2006; 1(3):265-75.

6. Borgs L, Beukelaers P, Vandenbosch R, Belachew S, Nguyen L, Malgrange B. Cell “circadian” cycle: new role for mammalian core clock genes.. Cell Cycle. 2009; 8:6, 1-6.

7.Mormont MC, Lévi F. Circadian-system alterations during cancer processes: a review. International Journal of Cancer.1997; 70:241-247.

34 9. Lamont WL, James OF, Boivin BD, Cermakian N.From circadian clock gens expression to pathologies. Sleep Medicine. 2007; 8, 547-556.

10.Darlington TK, Wager-Smith K, Ceriani MF, Staknis D, Gekakis N, Steeves TD, Weitz CJ, Takahashi JS, Kay SA. Closing the circadian loop: CLOCK-induced transcription of its own inhibitors per and tim. Science. 1998; 5;280(5369):1599-603.

11.Paschos GK, Baggs JE, Hogenesch JB, FitzGerald GA .The role of clock genes in pharmacology. Annual Review of Pharmacology and Toxicology. 2010;50:187-214.

12.Lévi F, Okyar A, Dulong S, Innominato PF, Clairambault, J. Circadian timing in cancer treatments. Annual Review of Pharmacology and Toxicology. 2010; 50:377-421.

13- Berne RM, Levy MN, Koeppen BM, Stanton BA. Fisiologia. 5º edição. Rio de Janeiro: Elsevier Editora Ltda; 2004

14.Lévi F. Chronotherapeutics: the relevance of timing in cancer therapy. Cancer causes & control. 2006; 17(4):611-21.

15.Fu L, Pelicano H, Liu J, Huang P, Lee C. The circadian gene Period2 plays an important role in tumor suppression and DNA damage response in vivo. Cell Press.2002; 111(1):41-50.

16. Altinok A, Lévi F, Goldbeter A. Identifying mechanisms of chronotolerance and chronoefficacy for the anticancer drugs 5-fluorouracil and oxaliplatin by computational modeling. European Journal of Pharmaceutical Sciences.2009; 36:20-38.

17.Hori K, Zhang QH, Li HC, Saito S. Variation of growth rate of a rat tumour during a light-dark cycle: correlation with circadian fluctuations in tumour blood flow. British journal of cancer. 1995; 71(6):1163-8.

18.Abolmaali K, Balakrishnan A, Stearns AT, Rounds J, Rhoads DB, Ashley SW, Tavakkolizadeh A. Circadian variation in intestinal dihydropyrimidine dehydrogenase (DPD) expression: a potential mechanism for benefits of 5FU chrono-chemotherapy. Surgery. 2009; 146(2):269-73. 19.Schmiegelow K, Glomstein A, Kristinsson J, Salmi T, Schrøder H, Björk O. Impact of morning versus evening schedule for oral methotrexate and 6-mercaptopurine on relapse risk for

35 children with acute lymphoblastic leukemia. Nordic Society for Pediatric Hematology and Oncology (NOPHO). Journal of Pediatric Hematology and Oncology. 1997; 19(2):102-9.

20. Lévi F, Misset JL, Brienza S, Adam R, Metzger G, Itzakhi M, Caussanel JP, Kunstlinger F, Lecouturier S, Descorps-Declère A, et al. A chronopharmacologic phase II clinical trial with 5- fluorouracil, folinic acid, and oxaliplatin using an ambulatory multichannel programmable pump. High antitumor effectiveness against metastatic colorectal cancer. International Organization for Cancer Chronotherapy. 1992 ;69(4):893-900.

21. Lévi FA, Zidani R, Vannetzel JM, Perpoint B, Focan C, Faggiuolo R, Chollet P, Garufi C, Itzhaki M, Dogliotti L, et al; Chronomodulated versus fixed-infusion-rate delivery of ambulatory chemotherapy with oxaliplatin, fluorouracil, and folinic acid (leucovorin) in patients with colorectal cancer metastases: a randomized multi-institutional trial. Journal of National Cancer Instute. 1994; 86(21):1608-17.

22. Lévi F, Zidani R, Misset JL and for the International Organization for Cancer Chronotherapy. Randomised multicentre trial of chronotherapy with oxaliplatin, fluorouracil, and folinic acid in metastatic colorectal cancer Lancet.1997; 350(9079):681-6.

23.Lévi F, Zidani R, Brienza S, Dogliotti L, Perpoint B, Rotarski M, Letourneau Y, Llory JF, Chollet P, Le Rol A, Focan C. A multicenter evaluation of intensified, ambulatory, chronomodulated chemotherapy with oxaliplatin, 5-fluorouracil, and leucovorin as initial treatment of patients with metastatic colorectal carcinoma. International Organization for Cancer Chronotherapy. 1999; 85(12):2532-40.

24. Giacchetti S, Itzhaki M, Gruia G, Adam R, Zidani R, Kunstlinger F, Brienza S, Alafaci E, Bertheault-Cvitkovic F, Jasmin C, Reynes M, Bismuth H, Misset JL, Lévi F. Long-term survival of patients with unresectable colorectal cancer liver metastases following infusional chemotherapy with 5-fluorouracil, leucovorin, oxaliplatin and surgery. Annals of oncology . 1999; 10(6):663-9.

36 25. Rich T, Innominato PF, Boerner J, Mormont MC, Iacobelli S, Baron B, Jasmin C, Lévi F. Elevated serum cytokines correlated with altered behavior, serum cortisol rhythm, and dampened 24-hour rest-activity patterns in patients with metastatic colorectal cancer. Clinical Cancer Research. 2005; 11(5):1757-64.

26. Filipski E, King VM, Li X, Granda TG, Mormont MC, Liu X, Claustrat B, Hastings MH, Lévi F. Host circadian clock as a control point in tumor progression. Journal of National Cancer Instute. 2002; 94(9):690-7.

27. Filipski E, Delaunay F, King VM, Wu MW, Claustrat B, Gréchez-Cassiau A, Guettier C, Hastings MH, Francis L. Effects of chronic jet lag on tumor progression in mice. Cancer Research.2004; 64(21):7879-85.

28. Iurisci I, Filipski E, Reinhardt J, Bach S, Gianella-Borradori A, Iacobelli S, Meijer L, Lévi F.Improved tumor control through circadian clock induction by Seliciclib, a cyclin-dependent kinase inhibitor. Cancer Research. 2006; 15;66(22):10720-8.

29. Kearney PM, Whelton M, Reynolds K, Munter P, Whelton PK, He J. Global burden of hypertension: analysis of worldwide data. Lancet. 2005; 365:217–23.

30. Hermida RC. Ambulatory blood pressure monitoring in the prediction of cardiovascular events and effects of chronotherapy: rationale and design of the MAPEC study. Chronobiology international. 2007; 24(4):749-75.

31. Stergiou GS, Nasothimiou EG. Does dosing antihypertensive drugs at night alter renal or cardiovascular outcome: do we have the evidence? Current Opinion in Nephrology and Hypertension. 2008; 17:464–469.

32. Ezeugo U, Glasser SP. Clinical benefits versus shortcomings of diltiazem once-daily in the chronotherapy of cardiovascular diseases. Expert opinion on pharmacotherapy. 2009; 10(3):485-91.

33. Page RL. Evolving Concepts in Chronotherapy with CCBs: implications for Pharmacists. (https://secure.pharmacytimes.com/lessons/200503-03.asp) (Artigo não publicado)

37 34. Fauci AS, Kasper DL, Longo DL, Braunwald E, Hauser SL, Jameson JL, Loscalzo J, editores. Harrison´s Internal Medicine. United States of America: McGraw-Hill Medical. 2008

35. Hermida RC, Calvo C, Ayala DE, Mojón A, López JE. Relationship between physical activity and blood pressure in dipper and non-dipper hypertensive patients. Journal of hypertension. 2002; 20(6):1097-104.

36.Hermida RC, Ayala DE, Calvo C, López JE, Mojón A, Fontao MJ, Soler R, Fernández JR. Effects of Time of Day of Treatment on Ambulatory Blood Pressure Pattern of Patients With Resistant Hypertension. Hipertension. 2005; 46(4):1053-9.

37. Kario K, Matsui Y, Shibasaki S, Eguchi K, Ishikawa J, Hoshide S, Ishikawa S, Kabutoya T, Schwartz JE, Pickering TG, Shimada K. An alpha-adrenergic blocker titrated by self-measured blood pressure recordings lowered blood pressure and microalbuminuria in patients with morning hypertension: the Japan Morning Surge-1 Study. Journal of hypertension. 2008; 26(6):1257-65.

38. Yusuf S, Sleight P, Pogue J, Bosch J, Davies R, Dagenais G. Effects of an angiotensin- converting-enzyme inhibitor, ramipril, on cardiovascular events in high-risk patients. The Heart Outcomes Prevention Evaluation Study Investigators. The New England Journal of Medicine. 2000; 20;342(3):145-53.

39. Sétimo Relatório do Joint National Committee on Prevention, Detection, Evaluation and Treatment of High Blood Pressure.2004.

http://www.nhlbi.nih.gov/guidelines/hypertension/jnc7full.pdf

40. Hermida RC, Ayala DE, Iglesias M. Administration time-dependent influence of aspirin on blood pressure in pregnant women. Hypertension. 2003; 41(3 Pt 2):651-6.

41-Hermida RC, Ayala DE, Calvo C, López JE. Aspirin administered at bedtime, but not on awakening, has an effect on ambulatory blood pressure in hypertensive patients. Journal of the American College of Cardiology. 2005; 46(6):975-83.

38 42. Zhu LL, Zhou Q, Yan XF, Zeng S. Optimal time to take once-daily oral medications in clinical practice. Internacional Journal of Clinical Practice. 2008; 62(10):1560-71.

43. Ozaydin M, Dede O, Dogan A, Aslan SM, Altinbas A, Ozturk M, Varol E, Turker Y. Effects of Morning Versus Evening Intake of Atorvastatin on Major Cardiac Event and Restenosis Rates in Patients Undergoing First Elective Percutaneous Coronary Intervention. American Journal of Cardiology. 2006; 97(1):44-7.

No documento Cronoterapêutica (páginas 33-42)

Documentos relacionados