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O cuidado deve caminhar a par da justiça

PARTE IV: PARA UMA NOVA ONTOLOGIA DOS SERES HUMANOS

4.2. O cuidado deve caminhar a par da justiça

A análise sobre a articulação entre o cuidado enquanto orientação ética, ideal que se quer construir como real na existência concreta da vida dos seres humanos, e a justiça, enquanto aplicação normativa e universalista reguladora das directrizes que visam a sua operacionalidade, procura agora esclarecer a posição do “eu” singular face ao “nós” 183 D. José Policarpo, Patriarca de Lisboa, escreve, na mesma ordem de ideias que o amor fraterno não pode ser o aniquilamento do indivíduo: (…) Para eu me dar aos outros, tenho que pensar se estou bem enquanto eu. Caso contrário, não me darei aos outros, nem a ninguém. Estas palavras são retiradas de uma entrevista de D. José Policarpo e encontram-se na obra Igreja e Democracia, Diálogos com António Marujo e Jorge Wemans, Col. Palavra e Testemunho, Lisboa, Editora Multinova, 1999, pp. 69-70.

colectivo. Nem sempre o “eu” se encontra em condições mínimas de cuidar de si próprio e por inerência dos outros. Não por dificuldades intrínsecas ao género ou à maior ou menor inabilidade para desenvolver o cuidado. Cremos ter demonstrado que mulheres e homens podem cuidar com a mesma qualidade e atenção, à parte as singularidades, mulheres e homens sabem cuidar bem e mostram-se hábeis para tal tarefa. Defendemos que o cuidado não é qualquer característica inata presente na ontologia dos seres mas sim uma atitude que se presentifica no processo de aprendizagem social e cultural e na experiência de vida de cada um184. Mas o mundo não é perfeito e muitas situações de vida concreta não reúnem as condições mínimas necessárias para o desenvolvimento de uma atitude de afecto e atenção para com os outros. Num mundo de tal complexidade em que os egoísmos e os individualismos exacerbados, por um lado, e as deficiências de cariz psicológico, social, económico e cultural se acentuam por outro lado, não é suficiente um apelo teórico à responsabilidade. A educação das crianças e dos jovens poderá remediar tal situação se estas forem orientadas para um maior sentido de responsabilidade e de justiça, de cooperação e de diálogo. Mas num modelo de organização social que se quer competitivo a todo o custo o “salve-se quem puder” submerge o “ajudemo-nos uns aos outros”. Por outro lado, se para a nossa sociedade ocidental os valores tradicionais cristãos da compaixão, da piedade, da atenção ao outro constituem um capital de boas práticas e de boas vontades, cremos no entanto não serem suficientes para a responsabilidade cidadã da sociedade enquanto colectividade. A sociedade como um todo – e não deveremos esquecer que a sociedade somos todos nós seres de vida privada e de vida pública – deverá criar as condições para o assumir a responsabilidade colectiva na ordem politico-jurídica. De algum modo a atitude para o cuidado sempre esteve presente na sociedade; no seio da miséria humana sempre houve alguns que cumpriram com a sua humanidade, isto é, com a atenção ao outro, com a solidariedade e o afecto. De forma equivalente o descuido e a irresponsabilidade reinaram e continuam 184 No decorrer do nosso trabalho pensamos a noção de cuidado num sentido mais restrito referente à acção parental no mundo ocidental, o cuidado para com as crianças, o cuidado para com o outro, cônjuge ou companheiro, nas diversas representações que a parentalidade e a família podem assumir hoje. No entanto, tivemos também sempre presente que a atitude do cuidado não se esgota na nossa relação “com- os-outros” e “para-os-outros”, se considerarmos esses outros só em referência aos humanos. O cuidar é uma atitude humana por excelência e, nesse sentido, cabe pensar o cuidado em relação a toda a existência. Cuidar significa cuidar de nós e simultaneamente dos outros, cuidar a nossa casa, o planeta Terra e o Universo região onde habita e, na nossa casa, cuidar todos os seres que dela fazem parte, humanos e não humanos. Fazemos todos parte de um ecossistema que só sobrevive na intersecção e no cuidado de todos os seus elementos. O verdadeiro exercício da cidadania pressupõe, neste enquadramento, toda a reflexão e actuação que procure melhorar o mundo que é nosso e que queremos deixar para os vindouros.

a reinar na nossa sociedade que se quer democrática e fraterna. Do exposto concluímos que a atitude do cuidado é ainda um processo em construção e supõe um longo caminho a percorrer, diríamos mesmo, uma tarefa sem fim. Chegados ao dealbar do século XXI, em plena civilização tecnológica, não podemos retroceder naquilo que seria um atraso civilizacional: a atenção para com os outros. A tarefa não é só individual e particular, mas geral e colectiva. E onde falha a fragilidade humana as instituições devem estar presentes para responsabilizar ou dar atenção a todos aqueles que dela necessitem. Não vemos, por isso, qualquer incompatibilidade entre os normativos da justiça e o seu carácter universal com a moral particular de cada um. A política e a jurisprudência na sua dimensão mais nobre não são mais do que o regulamentar do cuidado e atenção para cada um de nós membros de um colectivo que é mais do que a soma das subjectividades de cada um. Melhor dizendo, cada subjectividade objectiva-se no espírito da lei que não é uma transcendência, uma exterioridade ao sujeito, mas a expressão da sua realidade concreta, se tivermos em conta o que pensamos ser uma verdadeira democracia cidadã, um espaço de tolerância, de diálogo e de abertura. Nesta linha que defendemos fazemos nossas as palavras de Maria de Lurdes Pintasilgo que julgamos traduzirem prontamente o que pensamos sobre a articulação cuidado/justiça:

A uma ética da justiça, que olha o ser humano como sede de direitos, se tem de justapor uma ética do cuidado, porque esta toma em linha de conta que o ser humano é um ser de vulnerabilidades, que em numerosas situações o impedem de se erguer para defender os seus direitos. Assim não bastará acrescentar piedosamente à democracia política, a democracia social, económica e cultural. Haverá que construir a democracia, simultaneamente sobre a justiça e o cuidado, sobre os direitos e as responsabilidades185.

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