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Os seres humanos têm direito a ser felizes e a escolher os seus caminhos

PARTE IV: PARA UMA NOVA ONTOLOGIA DOS SERES HUMANOS

4.1. Os seres humanos têm direito a ser felizes e a escolher os seus caminhos

A ideia de felicidade faz parte de uma longa tradição que atravessou a história individual e colectiva de muitas pessoas singulares e de muitas comunidades181. Ora constituiu a promessa de um Paraíso Celeste nas grandes narrativas das religiões do Livro, Judaísmo, Cristianismo e Islamismo, ora designou outras tantas visões totalizadoras de um mundo de paz, de absoluta segurança, de prosperidade e fraternidade entre os homens. Dizemos totalizadoras no sentido em que seriam o culminar de um plano perfeito, objectivo e projecto coincidentes na sua génese e na sua meta, de cariz teleológico. A felicidade como o resultado do domínio da natureza tendo por base o controlo exercido pelo conhecimento científico e tecnológico, ou seja, a crença de que o conhecimento, as Luzes, são o meio e o fim a alcançar para erradicar o mal, o erro, a doença e até a morte do território dos humanos. A felicidade como o ponto de chegada à realidade de uma sociedade sem classes, sem guerras e conflitos, superadas as diferentes etapas da história económica social e politica que poriam fim ao sistema capitalista e ao modelo de sociedade e de politica burguesas, afirmando finalmente o comunismo como o anunciado paraíso na Terra182. Colocada no Céu ou na Terra, a ideia de felicidade canalizou todos os esforços, sacrifícios e engenho humano, numa luta contínua para alcançá-la, sempre na crença esperançosa da sua concretização. A ideia de felicidade aglutinou, assim, a fé dos homens e das mulheres em torno de um 181 Numa visão mais próxima e num contexto diferenciado, um pequeno país localizado no sopé da Cordilheira dos Himalaias, o Butão, inscreveu na ordem do dia o conceito de Felicidade Interna Bruta (FIB), que engloba várias dimensões como: crescimento económico, desenvolvimento social, espiritual e cultural, e preocupações ambientais. Numa conferência realizada em São Paulo, no Brasil, e a propósito deste tema, Karma Dasho Ura, na qualidade de coordenador das pesquisas sobre a FIB no Butão, sintetizou as diferentes variáveis em nove itens fundamentais: 1. Bom padrão de vida económico; 2. Gestão equilibrada do tempo; 3. Bons critérios de governação; 4. Educação de qualidade; 5. Boa saúde; 6. Vitalidade comunitária; 7. Protecção ambiental; 8. Acesso à cultura; 9. Bem-estar psicológico. (Cf. www.dhnet.org.br)

182 A mais contemporânea visão totalizadora brinda-nos hoje com a noção de que os mercados são a felicidade por excelência. Seremos felizes se competirmos pela primazia de consumirmos. A quantidade infindável de bens que necessitamos para sermos felizes, sob a forma de produtos para o consumo, é um manancial inesgotável de recursos materiais e humanos. Medimos, assim, a felicidade pela quantidade de bens mais ou menos supérfluos que temos ao nosso dispor. Seremos tão mais felizes quanto mais consumirmos. Nesta lógica imparável, a máquina do mercado alimenta os nossos desejos e cria necessidades onde nem o desejo alcança. Ironicamente, dizemos nós, felizmente que os recursos do planeta e da imaginação também têm os seus limites. Alcançaremos um ponto de ruptura ou de saturação que só esperamos que não seja demasiado tarde. O desenvolvimento sustentável não poderá suportar esta lógica desenfreada e louca de uma máquina de consumo que se alimenta a si própria. Já encontramos sinais no momento presente, de que tal como Crono devorou os seus próprios filhos, também a imparável máquina encontrará no seu seio as fontes da sua própria ruína. A profunda crise económica e crise financeira que vivemos são disso um exemplo.

ponto axial que constitui a matéria de muitas religiões e civilizações que se formaram na base do seu eixo. A ideia de felicidade foi o émulo que deu razão de ser ao espírito das Luzes, do progresso do conhecimento, que erradicaria todos os males que desde sempre perseguiram a humanidade, não num outro mundo, mas na vida dos seres singulares e colectivos, cujo progresso material e espiritual resultaria das novas possibilidades, trazidas pela ciência e pela técnica e, por um modelo de sociedade secular de uma modernidade redentora. A ideia de felicidade foi e é o eixo das grandes utopias. Entendemos por utopia um sonho semeado de desejos, que é bom no seu optimismo de base, mas que se revela enganador, e até assustador, nos modos de concretização. As utopias fascinam e arrastam multidões, mas o preço que os humanos têm de pagar para alcançar as suas metas é demasiado elevado e nada realista. Além disso, as utopias agregam muitas vezes autoritarismos, visões unilaterais, imposições de estados ou de líderes que querem a todo o custo concretizar os seus projectos fantasmagóricos. Num tempo mais recente o cientismo, o comunismo e o nazismo, constituem grandes utopias cujas marcas ainda se fazem sentir na nossa sociedade. Quando dizemos que os

humanos têm direito a ser felizes e a escolher os seus caminhos não pretendemos

afirmar qualquer transcendência ou qualquer utopia, qualquer religião ou qualquer corrente politico-filosófica totalizadora. Tão pouco pretendemos pensar ao nível de uma sociedade global, de um modo globalizado e homogéneo orientado por um pensamento único. Pensamos a um nível mais local e singular da vida das mulheres e dos homens da sociedade ocidental do século XXI. E, nesta sociedade secular e democrática, de espírito urbano e regulada por instituições e leis que são o produto do esforço comum de toda uma comunidade, sociedade imperfeita e com erros, mas que criou as condições essenciais para a afirmação do sujeito no seio da colectividade. Quando dizemos que os

seres humanos têm direito a ser felizes pensamos no dia-a-dia, na existência concreta

das mulheres e dos homens que procuram a sua realização pessoal e colectiva. Pessoal, porque leva em conta os seus desejos, as suas ambições, as suas forças e as suas fraquezas e, colectiva, porque a sua afirmação enquanto pessoas, é causa e efeito desse mesmo colectivo, carece do reconhecimento indispensável, da colaboração, da negociação e do apoio sem os quais não se poderia concretizar. Esta felicidade só é possível pela condição da liberdade, pela possibilidade de escolher entre os vários caminhos possíveis, assumindo a responsabilidade dos seus actos e das suas escolhas. Esta felicidade não é um fim em si mesmo, é um meio, é um processo de consecução de

uma existência concreta de sucessos e de insucessos, de avanços e eventualmente de retrocessos, de riscos assumidos porque a vitória não é tanto um prémio final mas a aventura de percorrer um caminho, de se assumir a si mesmo como caminho, num trajecto pessoal e colectivo. O que pretendemos dizer é que chegados a este momento da nossa história colectiva, nós, mulheres e homens, queremos ser nós próprios a decidir o que fazer das nossas vidas e, para isso, trabalhamos no sentido de criarmos as forças comuns, as instituições que nos apoiam nos nossos projectos. A felicidade está em podermos decidir se queremos ou não constituir uma família, se queremos ou não apostar tudo numa carreira, se queremos ou não ser mães e pais. A felicidade pressupõe a liberdade de escolher sem imposições do exterior, de uma qualquer autoridade que prescreveria para nós o que seria uma vida boa. Mas a felicidade está também na responsabilidade inerente às nossas escolhas. No tema particular que tratamos neste trabalho a felicidade é não só o direito de escolher ser mãe ou pai, ou optar por um percurso mais centrado no eu singular. A felicidade é a liberdade de escolher mas limitada pela responsabilidade que coloca condicionamentos à partida e à chegada. A felicidade, tal como a entendemos, pode implicar conflitos, dúvidas, tensões e geralmente implica. Devemos estar preparados para as escolhas do caminho. O mundo não é perfeito e a perfeição é uma utopia. Talvez cientes das nossas fragilidades e vulnerabilidades sejamos mais capazes de cooperar no sentido de melhorarmos a nossa condição. A felicidade enquanto trajecto requer, assim, o cuidado permanente e atento. Cuidado connosco e com os outros porque pertencemos todos a um património comum183.

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