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Em tempos de transformações constantes, os antigos pensamentos não dão mais conta de solucionar os problemas contemporâneos. Uma nova proposta de pensamento não sugere a morte do antigo. Este é o pensamento de Maffesoli (2010), ao defender que “é preciso olhar muito para trás para ver muito à frente” (MAFFESOLI, 2010, p.18). O autor lembra que é preciso compreender a germinação para analisar os frutos. Tratar a digitalização da indústria cinematográfica como a morte do cinema já não traz o mesmo impacto que no fim dos anos 90.

Ao analisar o impacto provocado pelas tecnologias digitais para a realização ci- nematográfica, através de um pequeno mapeamento de como o mercado vem rece- bendo o cinema digital, Gerbase lembra que a pintura não morreu com a invenção da fotografia, nem a fotografia com o surgimento do cinema, nem este com o adven- to da televisão. O autor deixa claro, ainda, que, “assim como a cultura de massa, o cinema digital pode ser monstruoso ou amigável [...], mas sua existência não pode mais ser negada. O cinema digital está aí para ficar” (GERBASE, 2000, p. 20).

No conto Casa tomada (2005), Júlio Cortázar retrata a história de dois irmãos que têm sua casa, uma herança familiar, tomada por algo desconhecido por eles. Esta “presença” força-os a abrir mão, primeiro de alguns aposentos de sua residên- cia, e depois da própria moradia. Eles não se arriscam em descobrir quem é o “ini- migo”, apenas vão aceitando a perda de espaço, até ficarem sem nada. Nos tempos contemporâneos, alguma “coisa” está tomando conta da estrutura vigente, onde há uma quebra de paradigmas. Existem duas opções: ou se foge dessas mudanças, como os irmãos do conto de Cortázar, ou se encara, e aceitam-se as novas regras.

“Os apocalípticos e os integrados de Umberto Eco estão de volta”, garante Ger- base (2000, p. 20), e eles não discutem mais só a cultura de massa, e sim as trans- formações que a tecnologia digital está trazendo para produção de filmes – mas eles não poderão fazer nada para mudar os rumos da história. O furacão digital realmen- te destrói alguns modelos vigentes; por outro lado, ele levanta aos ares outros, dan- do uma sacudida e devolvendo ao chão, lembra Gerbase (2003, p. 102).

Teóricos, cineastas, fotógrafos e sociólogos são reunidos por autor no primeiro discurso da revolução digital no cinema (2003) para ilustrar um pensamento negati- vo, com as consequências trágicas trazidas pelas tecnologias digitais ao cinema. O resultado: sua morte. Ou melhor, a morte do cinema em sua condição como arte. Nesse estudo, os representantes destes grupos insistem em afirmar que há uma perda de valor do produto, que passará a ser eletrônico, provocando uma mesma distância entre o espectador e o conteúdo – como acontece com a programação de televisão, existindo uma regressão no espírito criativo e não sendo mais possível a criação de algo novo.

“Ao mesmo tempo que realizadores e críticos tentam caracterizar as diferenças entre o cinema tradicional e o que está surgindo - anunci- ando o apocalipse ou a manhã de uma nova era -, teóricos de várias áreas constatam a inequívoca superposição dos cenários, para de- pois avaliar se estamos vivendo uma ruptura, uma acomodação ou uma lenta metamorfose.” (GERBASE, 2003, p. 103)

Em seu último livro, intitulado Apocalipse (2010), Michel Maffesoli trabalha com o conceito do apocalipse, não no sentido de fim do mundo, ou fim dos tempos, anali- sados nos proféticos textos bíblicos, ou em profecias de Nostradamus. Aqui, o autor dá sentido ao título, a partir da ideia de que vivemos um período de transição. Os tempos estão mudando. Ao serem deixados de lado processos de produção, isso não significa a morte do todo, mas sim uma reinvenção por algo novo. Aplicando este pensamento ao raciocínio desenvolvido até aqui, o digital renova a maneira de fazer cinema, trazendo consigo benefícios, quebrando paradigmas e modos de pro- dução, mas não sem apresentar dificuldades e problemas.

“[...] sempre sabendo que isso nunca é fácil, pois o que Durkhein chamava, corretamente, de “conformismo lógico” é muito difundido, favorecendo a preguiça intelectual e as diversas formas de aquisição produzidas em todas as épocas por um fechamento dogmático à amplidão dos pensamentos elevados.” (MAFFESOLI, 2010, p. 10)

Podemos compreender que acreditar em morte do cinema – o todo – apenas por causa de uma mudança tecnológica (a troca do analógico pelo digital) é entrar em uma zona de conforto. É não aceitar o novo, ficar preso às tradições do passado, segurando-se na premissa do fim dos tempos. Não podemos dar ao apocalipse con- temporâneo um significado tão dramático. Devemos lembrar que as tecnologias digi- tais já vinham sendo absorvidas pela indústria, porém estavam menos evidentes. “É

assim que se deve compreender o apocalipse: o que revela o oculto” (MAFFESOLI, 2010, p. 17).

Não devemos temer o que pode nascer do casamento entre o cinema tradicional e o cinema digital. Se, no passado, fizemos cinema com nitrato, através de películas 8mm, 16mm, 35mm, 70mm, isso não significa que não poderemos realizar filmes com formatos eletrônicos e digitais. As imagens eletrônicas e digitais são um novo tipo de cinema, uma nova possibilidade. Cabe a nós convivermos com ambas as tecnologias. “Quando uma dessas figuras prevalece, a outra não desaparece, mas continua aí, em mezzo você, esperando o ressurgimento” (MAFFESOLI, 2010, p. 25).

Interessante notar que, se os tempos apocalípticos não trazem destruição e mor- te, e sim uma renovação e reinvenção dos processos antigos, a acessibilidade torna- se o seu grande diferencial. As tecnologias digitais, ao eliminarem as cópias de pelí- cula ou abrirem caminhos para cópias em digitais – pois, como vimos, filmes ainda são finalizados em película –, aproximam os meios e proporcionam uma convergên- cia e uma hibridização entre o analógico e o digital. “Esse alargamento que a con- cepção de cinema vem sofrendo nas últimas décadas, priorizando a convergência das linguagens no meio audiovisual” (SATT, 2010, p. 10), vem sendo chamado de

cinema expandido128. O consumo da imagem em movimento está em mutação. Co- mo percebemos a cada momento, o futuro anunciado na década de 90 é o presente dos anos 2000.