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A cultura circunscrita pelo jornalismo

3. A EXPERIÊNCIA DO TEMPO NO JORNALISMO CULTURAL

3.1 A cultura circunscrita pelo jornalismo

Inicialmente, é fundamental pontuar que os estudos de jornalismo e a prática acadêmica que circunscreve o campo se debruçam com menor frequência à pesquisa em jornalismo cultural. Em meio a outros objetos teóricos de suposta maior relevância, ainda pouco se constrói sobre esse tema, o que pode ser uma evidência da natureza distintiva que o envolve. Para nós, é exatamente esse caráter específico, distinto de outras formas de produção jornalísticas, que torna tão válido o seu estudo.

Na base dessas especificidades, os jornalistas de cultura são considerados um caso único por personificarem a polarização temática sobre a qual o jornalismo cultural acaba, muitas vezes, por estacionar: um repórter convencional ou um crítico especializado remetendo às antigas querelas temáticas entre popular versus erudito. De fato, uma das principais características desse tipo de jornalismo é uma espécie de elitismo cultural, parcialmente explicado pelo fato de que jornalistas de cultura tendem a ter uma formação mais especializada do que outros (HOVDEN; KNAPSKOG, 2008).

O fato é que um jornalista de cultura ou crítico tende a ser convocado a escrever sobre temas que exigem um esforço retrospectivo de recuperação histórica a respeito de um determinado campo artístico, tornando necessário ao seu percurso um estudo menos generalista e, por vezes, mais especializado. Os papéis de intérprete e leitor privilegiado da cultura são reiteradamente legitimados pelo gesto instrutivo e pedagógico de apresentação de processos e produtos artísticos aos leitores.

Nesse movimento polarizador do próprio campo, é quase obrigatório delinear o que se entende por cultura, considerando as distinções sobre as formas em que ela é tematizada dentro do jornalismo. Partindo de uma perspectiva mais geral, sabe-se que a palavra cultura vem do latim colere, e seu sentido primordial referia-se à lavoura, isto é, ao cuidado com o crescimento natural. Com isso, o termo, então, assumiu um sentido principal de cultivo ou cuidado, incluindo, como em Cicero, cultura animi, o cultivo do espírito. A partir disso, identificamos inicialmente que, em todos os seus usos primevos, cultura era um substantivo que se referia principalmente a um processo, ao cuidado, à cura, às colheitas ou aos animais.

A partir do início do século XVI, o cuidado com o crescimento natural ampliou- se e passou a incluir o processo de desenvolvimento humano, um pouco mais próximo do qual usamos mais recorrentemente, e esse significado, juntamente ao original relativo à lavoura, foi o sentido principal até o final do século XVIII e início do XIX.

Outra aproximação importante de ser lembrada é a relação com o substantivo civilização, que surgiu ao final do século XIX, especialmente na língua alemã. A palavra Kultur foi emprestada do francês – primeiro grafada Cultur – e seu principal uso era ainda como sinônimo de civilização, no sentido de tornar-se “civilizado” ou “cultivado”, referindo-se a ideais de civilidade e educação.

Como substantivo independente que conhecemos hoje, cultura só passa a ser importante no final do século XVIII e não é utilizada comumente antes de meados do XIX. É interessante perceber, ao longo de uma pesquisa etimológica sobre a palavra, o quanto ela desliza entre significados que apontam para um processo abstrato ou o produto de um processo, mais relacionado ao consumo – e esse impasse ainda recai sobre as formas de uso contemporâneas. Em meio a uma complexa e ainda ativa etimologia, a escolha de um significado único poderia ser uma solução mais fácil para abordarmos a cultura sob a perspectiva do jornalismo, contudo, o que torna mais ampla e significativa a palavra é a própria sobreposição de sentidos que ela propõe.

Essa complexidade, que não está na palavra em si, mas nas variações de usos que ela indica, foi densamente desenvolvida por Raymond Williams, referência essencial, de criticidade engajada, para perscrutarmos historicamente as sobreposições de sentidos que esse conceito enfeixa ao longo de séculos. Williams (2007, p. 121) reconhece três categorias amplas e ativas de uso:

i) o substantivo independente e abstrato que descreve um processo de desenvolvimento intelectual, espiritual e estético, a partir do século XVIII; ii) o substantivo independente, quer seja usado de modo geral ou específico, indicando um modo particular de vida, quer seja de um povo, um período, um grupo ou da humanidade em geral, desde Herder e Klemm. Mas também é preciso reconhecer iii) o substantivo independente e abstrato que descreve as obras e as práticas da atividade intelectual e, particularmente, artística. Com frequência, esse parece ser hoje o sentido mais difundido: cultura é música, literatura, pintura, escultura, teatro e cinema.

É possível avaliar, por meio dessas acepções possíveis, o complexo de significados que compõe um liame de sentidos sobrepostos a cada vez que a palavra cultura é mencionada. Não à toa, o sentido mais difundido conforme Williams sinalizou é o que tende a contornar o conceito com o véu do consumo, pois o concebe como uma obra ou produto, ambos prática de atividade intelectual e artística, segmentando o que recorrentemente é tematizado nos cadernos e suplementos de cultura: música, literatura, pintura, artes plásticas, teatro e cinema. Esses temas mais amplos, no jornalismo, são condicionados e enquadrados sob a perspectiva da venda ou da divulgação do produto

em si, transformando-se em discos, livros, exposições, peças e filmes. Dessa maneira, identifica-se com mais clareza a passagem conceitual que é feita, dos processos aos produtos, marcando essas duas faces que se sobrepõem na pesquisa sobre a dimensão cultural que é abordada no jornalismo.

Outra posição possível de ser abordada diz respeito mais propriamente ao segundo sentido, numa concepção antropológica de cultura, a qual entende que tudo que se produz dentro do campo jornalístico passa a ser cultural pois diz respeito a práticas e processos humanos. Nessa perspectiva, igualmente possível de ser tomada, economia, política, saúde e turismo, por exemplo, são cultura. Contudo, aqui, caracterizamos a forma que o jornalismo circunscreve o conceito a partir de seus cadernos, seções e suplementos identificados por uma editoria de cultura, pensada e planejada dentro de um projeto editorial. Nesse escopo, o que se identifica é uma ideia do que é cultural muito mais próxima do terceiro sentido exposto por Williams. Essas diversas possibilidades de apreensão conceitual refletem a complexidade de sentidos e referências possíveis, as quais também marcam obscurecimentos ao optar-se por contemplar um sentido possível e deixar outros de fora. Assim, é válido ressaltar que, na aparentemente simples palavra “cultural26” existe um reflexo de apagamentos

sistêmicos, condicionados pelo jornalismo, enquanto um ainda importante legitimador de conceitos.

Nessa esteira, ainda assomam-se formas de estratificação da cultura, como alta, baixa, erudita e popular, as quais derivam de interpretações possíveis do que é produzido, numa espécie de orientação a quem deve se destinar um determinado tipo de conteúdo. Quando reduzimos a cultura a um produto a ser consumido, exclusivamente, como filme, música ou obra de arte, perdemos a contextualização e a fundamentação que a transformou no que é, seu resultado final. Assim, alta, baixa, popular ou erudita, não deveria dizer respeito de forma hierárquica ao conteúdo transmitido e, sim, a uma tendência de polarizar ou planificar determinados temas para associá-los a determinadas classes. Ao relacionarmos uma percepção degradada ao popular e outra refinada para o que é chamado erudito, enfatizamos a planificação dos produtos, um olhar redutor sobre o que é produzido a depender de quem irá consumi-lo ou fruí-lo. Se observarmos a cultura sob o viés dos processos em detrimento dos produtos, ganhamos uma outra perspectiva, mais ampla, mais densa e menos fugaz. Pensando exclusivamente a partir

26O importante adjetivo cultural parece datar da década de 1890. A palavra só esteve disponível no sentido moderno

quando o substantivo independente, nos sentidos artístico, intelectual ou antropológico, tornou-se familiar” (WILLIAMS, 2007, p. 122).

do referencial daquilo que é consumido, perdemos o viés essencial que deveria fundamentar a prática do jornalismo de cultura, a mediação dos processos.

Nessa perspectiva, Stuart Hall (2016) explica que a cultura depende de que seus participantes interpretem o que acontece ao seu redor e “deem sentido” às coisas. Para ele, são os participantes de uma cultura que dão sentido a indivíduos, objetos e acontecimentos. Quando o jornalista de cultura interpreta algo de forma limitada ou quando reduzimos um produto à alta ou baixa cultura, apagamos a abertura da obra e restringimos sua capacidade de mediação. Para Hall (2016), as coisas “em si” raramente – talvez nunca – têm um significado único, fixo e inalterável. Damos sentido pela forma que nós representamos, consumimos e nos apropriamos da cultura, investindo significado e valor, criando identidade a partir desse movimento de contínua ressignificação. O jornalismo, nesse circuito, afere reiteradamente sobre formas possíveis de leitura da cultura, fazendo sua própria mediação, em cadernos distintos, partindo de referenciais que ora desejam falar com um público mais amplo, ora com um público mais restrito. Pensando com Ricoeur, seria o próprio movimento da reconfiguração que caracteriza e dá identidade à cultura e às práticas que representamos, pelo movimento da interpretação enquanto ação mimética.

O que consideramos fundamental é continuamente investigar sobre formas de leitura possíveis acionadas para refletir sobre o conceito de cultura dentro do jornalismo. Se repetidamente partirmos de referenciais redutores, que se referem ao gênero como uma forma de diversão ou entretenimento exclusivamente, a partir de uma perspectiva dominante que classifica o que é popular ou erudito, cairemos em um senso comum que padroniza e, portanto, diminui, aprisiona a multiplicidade cultural. Esse tipo de reflexão é importante porque impulsiona uma maior coerência entre o que é pensado teoricamente e o que é de feito na prática das redações. É importante que haja um movimento dialético nesse sentido para que não estejamos pensando a cultura descolada da prática, de como ela vem sendo abordada e discutida, bem como para não simplificarmos a complexidade das manifestações culturais.

A partir de um estado da arte realizado (CAVALCANTI, 2017) sobre alguns sentidos produzidos na conceituação do gênero cultural, encontramos afirmações diversas que fazem recortes sobre suas funções, objetivos, características e história. No aspecto historiográfico, principalmente, há alguns consensos no que diz respeito a marcos fundacionais. A experiência pioneira do Journal des Savants, que circulou em Paris entre 1665 e 1795, é unânime e considerada fundante para a literatura periódica; e,

também, a revista The Spectator, na Inglaterra, fundada por dois ensaístas ingleses, em 1711. Sabe-se, então, que o gênero é um dos mais clássicos dentro do jornalismo por ter suas origens já nos folhetins, no rodapé de periódicos franceses, desde então como algo que nasce à parte dos principais temas abordados pelo jornal.

Dentro da literatura explorada, vimos que, dentre muitas características apontadas, o jornalismo cultural “realiza a importante função de mediação, aproximando o público da experiência da arte, do pensamento e da cultura” (GOLIN; CARDOSO; GRUSZYNSKI; KELLER; VAZ, 2008), “converte códigos artísticos e literários – herméticos e esotéricos – em linguagem mais ampla, adequada a um auditório maior” (GOLIN; CARDOSO; KELLER; MUZYKANT, 2010), é uma espécie de “herdeiro do ensaísmo humanista” (PIZA, 2003), “oscila entre a reprodução do já existente e disponível para o consumo e a criação parcialmente permitida e existente nessa editoria” (GADINI, 2009) e constitui-se numa “plataforma interpretadora” (FARO, 2006). A literatura sobre o tema ainda coincide, de acordo com Jurado (2019), em determinar que o gênero “deve ter espírito crítico, comentários interpretativos, desenho atrativo” (ZAMBRANO; VILLALOBOS, 2010), deve “interpretar a criatividade potencial do ser humano” (RIVERA, 2003) e “não se define intrinsecamente por uma temática, mas por um modo próprio de abordagem” (VOGEL, 2008).

A profusão de conceituações relativas ao termo cultura, conforme abordamos anteriormente, revela, em parte, o que encontramos quando pesquisamos sobre jornalismo cultural. A união dessas duas palavras – jornalismo e cultura – reflete uma produção de amplo horizonte de realização que possui como ponto de encontro o gênero acordado como “jornalismo cultural”. Com base nas conceituações que abordamos, percebeu-se que, à revelia de uma demanda enfática por uma ideia de cultura mais ampla e contextual, o campo continua reforçando características relativas ao aspecto “letrado”, limitando-se quase sempre a referenciais elitizados. Os autores afirmam o caráter heurístico presente no jornalismo cultural, garantido pela capacidade e necessidade de avaliação e análise próprias do gênero. Identifica-se o destaque que alguns autores dão ao gênero como intérprete da cultura. Entendemos que existe, assim, um suposto dever-ser que envolve as ações de avaliar, analisar e interpretar, tanto por parte de quem lê quanto de quem escreve. Esse tipo de mediação específico está além da típica cobertura noticiosa tendo em vista as características textuais, mais opinativas, críticas e analíticas. Percebe-se, ainda, a referência ao ensaio, intimamente relacionado

às capacidades de contextualização, análise e argumentação, termos também recorrentes na identificação do gênero.

Após esse breve percurso em torno das conceituações mais citadas e recorrentes sobre o termo, percebe-se que algumas ideias centrais parecem se repetir e podem ser condensadas em torno de um pensar central: o jornalismo cultural se caracteriza através de um modo processual de criação, apontando para um passado em permanente latência a partir de uma repertório crítico, seletivo e, principalmente, produtor de memória.