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Capítulo 1 – Letramento e cultura de fãs

1.4. Cultura de fã: coletivos sociais

No aglomerado que a inteligência coletiva abrange, o fenômeno denominado como cultura de fã é um recorte simbólico. A cultura de fã é um fenômeno em que sujeitos se agrupam em torno de um tema, ou seja, são consumidores de um determinado conteúdo. Os indivíduos nutrem um investimento afetivo em torno desse objeto, e podem ser geradores de material não legitimado. Tais fãs agrupam-se em espaços de afinidade, formando coletivos sociais dotados de valores e regras de sociabilidade e conduta.

O aspecto interessante desses coletivos é que mais que uma comunicação passiva, ou meros expectadores, eles atuam na construção de um saber compartilhado, que envolve uma estrutura relacional complexa.

Talvez ainda mais central para o caso de multiletramentos, hoje, é a natureza mutável da vida cotidiana ao longo da última década. Estamos no meio de uma profunda mudança no equilíbrio de agência, na qual os trabalhadores, os cidadãos e as pessoas são cada vez mais chamados a ser usuários, leitores, criadores e consumidores mais exigentes do que espectadores, delegados, público ou consumidores quiescentes de uma modernidade anterior. [...] Eles se contentam com ser não menos do que os atores em vez de o público, jogadores em vez

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de espectadores, agentes, em vez de voyeurs, usuários em vez de leitores da narrativa. (COPE ; KALANTZIS, 2009, p 8)8

Entre os coletivos sociais que descrevemos, um termo se sobrepõe como definição de um grupo particular, os populares fandoms. A definição Fandom tem origem na expressão inglesa Fan Kingdown (reino dos fãs) e reflete todo o público consumidor de certo tema, aplicando alguma espécie de investimento emocional entre usuário e conteúdo, com elos diretos ou escalas de engajamento. Há tantos fandoms quanto conteúdos veiculados possíveis, possuindo cada um deles os seus próprios espaços de afinidade, coletivos sociais e comunidades.

Todavia, antes que o estudo se aprofunde mais na questão dos sujeitos do

fandom, parece relevante estabelecer uma visão de certos conceitos bastante imbricados

e por vezes confusos entre si, que serão importantes para as discussões realizadas no restante desta dissertação; são eles: espaço de afinidade, portal, coletivo social, e comunidade virtual..

Quando são utilizados os termos ‘portal’ e ‘espaço’, faz-se com base nos conceitos de James Paul Gee. Segundo ele, um espaço de afinidade é um tipo de configuração social contemporânea, uma forma de afiliação social, que possui e existe em torno de um conteúdo e da geração dele, nos espaços de afinidade os indivíduos interagem com este conteúdo. Em contrapartida, um portal é aquilo que dá ao indivíduo uma porta de acesso ao conteúdo e modos de interagir com ele ou outros sujeitos (GEE, 2009).

Por coletivo social, toma-se a existência de tal agrupamento de indivíduos em torno de espaço de pertencimento coletivo; nota-se que conquanto relacionados e conectados em decorrência de um ou diversos interesses concentrados no espaço virtual, não ocorre ainda o que poderíamos chamar, em termos sociológicos tradicionais, de uma estrutura social e noções abstratas comuns que constituem uma comunidade.

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Tradução nossa: Perhaps even more central to the case for Multiliteracies today is the changing nature of everyday life itself over the past decade. We are in the midst of a profound shift in the balance of agency, in which as workers, citizens and persons, we are more and more required to be users, players, creators and discerning consumers rather than the spectators, delegates, audiences or quiescent consumers of an earlier modernity. [...] They are content with being no less than actors rather than audiences, players rather than spectators, agents rather than voyeurs, users rather than readers of narrative. (COPE ; KALANTZIS, 2009, p 8)

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Por fim, como comunidade virtual, compreende-se um conjunto de indivíduos que compartilham um espaço de afinidade, e apresentam certas noções abstratas comuns de valores, ou papéis a serem desempenhados para a manutenção da estrutura social no ambiente. Em uma comunidade há presença de vínculos sociais ou engajamento maior entre sujeitos que podem ter uma colaboração e preocupação mútua com o bem-estar de seus membros.

Não obstante essas características, verificam-se convenções e padrões comportamentais não necessariamente legitimados, e um sentimento de irmandade entre seus participantes, que podem partilhar um sistema de governança, ou desempenhar papéis fundamentais ao bem-estar da comunidade.

O ganho emocional, processos de negociação e troca de saberes nas relações entre indivíduos de uma comunidade dita virtual já eram sinalizados por Howard Rheingold, que em 1996 que fez uma definição do conceito, em seu livro A

Comunidade Virtual:

As comunidades virtuais são os agregados sociais surgidos na rede quando os intervenientes de um debate o levam por diante em número e sentimento suficientes para formarem teias de relações pessoais no ciberespaço. [...] Nas comunidades virtuais escrevem-se palavras num écran para contar anedotas, discutir, envolver-se em dialéticas intelectuais, negociar, trocar conhecimentos e apoio emocional.

(RHEINGOLD, 1996, p. 19)

Como mencionado, no cerne desses ambientes virtuais surgem práticas de letramento específicas, envolvendo conhecimento, e políticas de governança interessantes e dotadas de configurações novas; percebe-se um processo de governança coletiva (compartilhada) e heterarquia, um sistema de poder descentralizado no qual os papéis são mais líquidos, adequando-se às necessidades dos coletivos.

Um sistema heterárquico não significa descontrole ou insolidez (com uma conotação negativa), mas apenas um modelo de governança no qual os participantes alternam o poder na gerência do ambiente, e transitam naturalmente entre funções. Os membros atuam de forma cooperativa, porém, sem um controle centralizado ou uma estrutura de controle hierárquica. São como células independentes que, no entanto, trabalham por um objetivo comum e apóiam-se mutuamente.

Os coletivos apresentam uma estrutura constitutiva: compreende-se que exista um núcleo de inovadores, composto por usuários mais engajados, com maior nível de

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envolvimento emocional e expertisse, e além deles, uma nebulosa de contribuintes, um conjunto de usuários maior que igualmente alimenta o coletivo, todavia é formado por sujeitos menos envolvidos, ou ainda em processo de inserção.

Na prática social dos coletivos, capta-se uma faceta proeminente do paradigma de aprendizagem interativa. O sujeito adquire letramentos, de modo informal, por iniciativa própria por meio da interação social com seus pares. O processo de aprender coletivamente inclui autonomia e certo autodidatismo, porém, entre as habilidades essenciais destacam-se os letramentos de categorização e localização, pelos quais o sujeito reconhece como selecionar informação e como localizar-se na infinitude que se mostra diante de si.

Assume-se que as pessoas determinam o que elas precisam saber, baseando-se em suas participações em atividades em que essas necessidades surgem e em consultas a especialistas e conhecedores que eles conhecem na ordem que lhes cabe, em um ritmo confortável e em tempo para usarem o que aprenderam. Este é o paradigma da aprendizagem das pessoas que criarem a Internet e o ciberespaço. É o paradigma mais do acesso à informação do que da imposição à aprendizagem. É o paradigma de como pessoas com poder e recursos escolhem aprender. (LEMKE, 2010, p. 469)

Não obstante os aspectos anteriores, os membros dos coletivos apresentam sofisticados letramentos de gerenciamento de imagem e autoapresentação. O sujeito, além de aprender a contribuir e formatar suas contribuições à maneira do coletivo, desenvolve também um gerenciamento identitário. No ambiente social, o indivíduo aprende que suas articulações sociais e o conteúdo compartilhado são índices de significado que manifestam sua identidade.

Assim sendo, é fundamental selecionar quais conteúdos e mensagens são veiculadas; tem-se um intricado processo de negociação e seleção de conteúdo, de gostos. Na prática, o internauta conjuga material em áudio, vídeos, imagens e textos, revelando práticas de letramento que remetem a uma construção identitária por multissemiose e multimídia

Ainda nesse aspecto, contata-se uma habilidade na construção topológica de significados, o individuo aprende a agregar o material em uma rede hipermodal, de maneira a compor objetos multissemióticos que não podem aceitar uma leitura de seus componentes isolados.

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A cultura de fã envolve também um processo de reconstrução e conflito em torno da si: a cultura de fã ganhou poder e voz por meio da facilidade de produção de conteúdo outorgada pelas tecnologias. Cada vez mais emponderados9, os sujeitos procuram meios de uma interação máxima com o conteúdo de seu interesse, passando de meros admiradores a verdadeiros geradores de um universo simbólico. Tal postura ativa e o material gerado ainda são focos de contenda com a indústria de mídia, que ora legitima, ora rechaça, ora convida e mesmo explora esse poder gerador do consumidor, em uma relação que ainda está se adequando ao potencial de participação e poder de um usuário não passivo.

Fomos atraídos pela noção de ‘cultura dos fãs’ como algo que operava à sombra da cultura comercial, sendo também uma reação e uma alternativa a ela. [...] Ao longo da última década, a web trouxe esses consumidores das margens da indústria midiática para o centro das atenções; [...] A participação é vista como uma parte normal da operação de mídia, e os debates atuais giram em torno das condições dessa participação. Assim como o estudo da cultura dos fãs nos ajudou a compreender as inovações que ocorrem às margens da indústria midiática podemos também interpretar as estruturas das comunidades de fãs como a indicação de um novo modo de pensar sobre a cidadania e a colaboração.

(JENKIS, 2009, P. 329).

Com base na colocação apresentada por Henry Jenkis, fica claro como há um grande potencial na cultura de fã, e em decorrência desse potencial é importante que ela se torne parte das preocupações da lingüística aplicada, por isso este estudo tenta realizar uma contribuição nesse sentido.

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