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Produsagem, inovações ascendentes e cultura da convergência

Capítulo 1 – Letramento e cultura de fãs

1.5. Produsagem, inovações ascendentes e cultura da convergência

No interior dos coletivos e comunidades do fandom, um conceito vem à tona dominando o cenário de convergência multimídia atual, a questão da chamada

produsage. A produsage, termo utilizado por Axel Bruns, é um evento proporcionado

pelo acesso às tecnologias de produção e apropriação que permite aos usuários gerar e divulgar conteúdo em rede.

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Emponderado: Tradução para o termo ‘empower’ utilizado por Warschauer, M., Ware, M. (2008). Learning, change, and power: Competing discourses of technology and literacy.

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Produsage pode ser definido como um modo de criação de conteúdo

colaborativo que é liderado pelos usuários ou pelo menos envolve de modo crucial usuários como produtores -, onde, em outras palavras o usuário atua como um usuário híbrido e produtor, ou produser, através de toda a produção e processo virtuais.

(BRUNS, 2007, P. 3).

Como o praticante da produsage desponta uma figura com papel principal nos novos letramentos e na participação das mídias: produser, tal termo inglês é um neologismo das palavras producer (produtor) e user (usuário), doravante, este estudo aplicará as traduções produsuário e produsagem para estes conceitos.

Um produsuário é o usuário que desenvolveu letramentos para se apropriar de conteúdo, e realizar reproduções e modificações, ou mesmo produzir informação em espaços de afinidade, especialmente no âmbito da cultura digital e apoiado na disponibilidade de portais, comunidades virtuais e novas ferramentas digitais de criação, edição, remixagem, e distribuição de conteúdos midiáticos. Ele utiliza o que os artefatos lhe propiciam e assim dissemina os resultados de seu trabalho: fanfics, mashups, poemas, jogos, ilustrações, gifs animados e tudo mais que os aplicativos que souber manusear puderem lhe permitir.

Um conceito frequentemente associado ao produsuário é o prosumer, o vocábulo por sua vez é um neologismo gerado a partir dos termos consumer (consumidor) e

producer (produtor), mas que enfatiza o caráter consumidor do sujeito. O prosumer, que

tem sido traduzido para o português como prossumidor, não deve ser confundido com o produsuário, pois tem uma postura fundamentalmente distinta e ambos são resultados de épocas diferentes.

O conceito de prosumer provém da imagem gerada por Alfin Toffler (1970, 1980, 1990) e tem sido, por vezes, mencionado quando se aborda a cultura de participação e colaboração. Porém, segundo Axel Bruns (2010, p.2) esse conceito pertence a um contexto anterior que é inadequado para descrever o modelo de participação atual. Acerca do prosumer, o mesmo teórico assevera que nessa concepção

o consumidor não é apenas mais um usuário final de produtos acabados, mas ganha habilidade de modificar tais produtos de

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acordo com suas preferências (normalmente em âmbito estritamente limitado e prescrito)”10

(BRUNS, 2010, p2. Grifo nosso). Apenas por essa descrição, percebemos que o prossumidor é muito diferente do produsuário e que sua atuação é muito menos emponderada, menos engajada e limitada.

o prosumer claramente não é o desenvolvedor de novos conteúdos, originador criativo e automotivados que hoje pode ser observado em projetos de software open source, através da Wikipédia e do Second Life, mas é simplesmente um consumidor particularmente bem informado e, portanto, particularmente crítico e particularmente activo[...]11. (BRUNS, 2009, s/ página. Disponível em: http:// produsage.org/node/67).

O fenômeno no qual o usuário realiza a criação de conteúdo interativo na rede engloba um híbrido de uso e produção, haja vista que o produsuário é, primeiro, um consumidor engajado em busca do produto e, depois, o seu criador.

A prática de produsagem envolve princípios, ou mais precisamente características de trabalho colaborativo, que estão presentes na colaboração e criação de conteúdo; são elas:

(a) Trabalho baseado na comunidade: parte-se do princípio que se for maior e mais variado, o coletivo terá mais potencial e capacidade produtiva que uma equipe fechada e limitada.

(b) Os papéis são fluidos, ou seja, há uma mobilidade-liquidez funcional, os sujeitos executam sua participação conforme suas habilidades, conhecimentos ou interesses pessoais, podendo a qualquer momento migrar de função, exercer papéis de maior ou menor relevância. Pode ocorrer a formação de grupos menores com objetivo de tratar de problemas específicos, subgrupos que se formam e diluem-se coadunados às necessidades;

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Tradução nossa: Hier ist der Verbraucher nicht mehr nur ein Endnutzer fertiger Produkte, sondern gewinnt die Fähigkeit, solche Produkte nach den eigenen Präferenzen zu modifizieren (in der Regel in streng begrenztem, vorgeschriebenem Rahmen).

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Tradução nossa: the prosumer is clearly not the self-motivated creative originator and developer of new content which can today be observed in projects ranging from open source software through Wikipedia to Second Life, but simply a particularly well-informed, and therefore both particularly critical and particularly active, consumer.

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(c) a produsagem é caracterizada por artefatos inacabados, haja vista que o objeto está sempre em desenvolvimento, com mais conteúdo a ser agregado e revisto. O objeto está em constante evolução e pode seguir percursos palimpsésticos e divisões;

(d) a propriedade é comum, mas o mérito é individual, assim sendo, a colaboração desenvolvida será observada e desfrutada por todos coletivamente, porém permanece uma menção ao contribuinte que é gratificado com status social naquele ambiente, e um ganho emocional (compensação, reconhecimento...).

Assim como a participação em coletivos virtuais, as práticas de trabalho colaborativo envolvem também letramentos típicos; a existência de plataformas colaborativas depende de atitude crítica, o sujeito torna-se apto a avaliar que contribuições ao todo são úteis, quais podem ser otimizadas, identificar que ferramentas podem ser aplicadas, e quando é necessário adquirir novos conhecimentos para aperfeiçoar e ampliar sua capacidade produtiva.

A produção user-led, ou produção capitaneada por usuário, caracteriza-se por um desenvolvimento em ebulição, mas ordenado. Observa-se em projetos típicos da produsagem como Wikipédia, a presença de sistemas de governança como os já mencionados anteriormente, e usuários líderes que se destacam não como implementadores de ideias, porém como geradores de ideias.

Em geral, a prática de produsagem tem sido associada ao que se denomina como geração C, um termo usado pelo Trendwatching12 para se referir a um perfil de

consumidores mais ativos, atuantes em projetos de construção colaborativa. Entretanto, o termo também resume certas características típicas dos indivíduos e de uma geração: criatividade, criação de conteúdo, celebridade (em decorrência do mérito) e por último colapso casual.

Essa identificação geracional, baseada em características e não limitada por idade ou datação anual parece uma perspectiva mais coerente e coadunada com as afirmações de Clay Shirky em seu livro Cultura da participação. Segundo o teórico, as teorias de geração são mais coerentes quando focam diferenças ambientais (SHIRKY, 2011, p. 119). Desse modo, o perfil da geração participativa é um produto das oportunidades e condições que o ambiente tecnológico tem ofertado à sociedade.

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O último “colapso casual” termo remete ao colapso das noções de direito autoral, propriedade intelectual e reprodução; percebe-se que estes conceitos, outrora fundamentais, estão passando por uma profunda reformulação, todavia em uma revolução quase silenciosa, na qual os usuários têm rejeitado o direito de propriedade sem estardalhaço ou rupturas violentas de antigos paradigmas. Este é apenas um dos conflitos ocasionados pelas novas práticas letradas e propiciações de artefatos tecnológicos.

Quando se reflete acerca das inovações e conflitos gerados pelo fenômeno da produsagem, tem-se abertura para discutir uma reestrutura dos eventos de comunicação e produção para um modelo de inovação ascendente. No desenvolvimento de tecnologia e informação, percebe-se que até há pouco tempo, destacavam-se posições bem dicotomizadas entre produtor e usuário; nesse cenário polarizado, todo processo de construção e escolhas cabia a um poder industrial e institucionalizado que executava e planejava a implementação tecnológica. A este poder competia captar as necessidades de usuários, e fabricar produtos com base em uma perspectiva generalizante de necessidades, uma perspectiva globalizada. Este quadro consiste em um modelo top-

down de desenvolvimento, de natureza mais fechada, no qual as inovações seguem um

percurso vertical e descendente.

Em contrapartida, a inovação ascendente constitui uma ruptura nos processos de produção/comunicação, conhecida como bottow map innovations ou inovações horizontais (Cardon, 2005); a inovação ascendente parte diretamente da atividade de usuários que se apropriam das tecnologias; na experiência do uso, o sujeito assume uma posição de conhecimento profundo do produto, com uma perspectiva mais específica, menos global e mais local, para sanar as suas necessidades. Assi, apresenta-se apto a transformar, produzir e, de certa maneira transgredir, as barreiras entre usuário e produtor, pois são múltiplos utilizadores em um esforço coordenado para compartilhar suas inovações.

A inovação ascendente causa um rompimento de antigas premissas da relação fabricante e usuário, haja vista que revela o desencontro de interesses entre a conduta do produtor em escala industrial e as necessidades reais de seu consumidor. A motivação do inovador industrial tem limitações de custos e designer, por exemplo, ao passo que o estímulo do usuário inovador parte de seu comprometimento gratuito com a otimização,

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a astúcia, a engenhosidade e obtenção de ganho emocional (no caso, o prazer em protagonizar a produção).

Nesse modelo de inovação, as conexões e relações entre usuários são dominadas pela mobilidade; aquele que se apropria está conectado em uma rede de colaboração aberta, coletiva, e por isso bastante heterogênea, assim a inovação ascendente atende à necessidade de soluções mais ágeis (e nesse aspecto apresenta-se mais eficiente), contudo também é constitutivamente diversificada e com múltiplas versões e adaptações (o que não consiste necessariamente em uma desvantagem).

Exemplos salutares de inovação ascendente proliferam no panorama das TICs. Apesar do sistema operacional Linux e suas distribuições (Ubuntu, Debian, Fedora etc.) se destacarem, eles consistem em um mero recorte do fenômeno; outros aplicativos, alguns já assimilados pelo mercado financeiro e outros não, compartilham sua origem no fértil terreno dos usuários inovadores: Wikipedia, Youtube, Instagram...

A força geradora da inovação ascendente tornou-se tão extremada que muitas das tecnologias recentes parecem reformular táticas empresariais, com objetivo de canalizar em causa própria todo impulso produtivo e criativo; um exemplo que clarifica essa postura é a rede social Facebook, ela absorve e estimula a criação de aplicativos por parte de seus membros, ou seja, busca assimilar a produsagem em lucro próprio.

Não obstante os aspectos já examinados, a produsagem apresenta-se também como forte tendência da cultura de convergência; a cultura de convergência é o evento no qual múltiplas plataformas de mídia aproximam-se, e principiam a trabalhar em conjunto na produção de conteúdo.

O fenômeno transmidiático foi amplamente examinado por Henry Jenkis em seu livro Cultura da Convergência (2009); segundo o professor da University of Southern

California, as mídias atuais estão coexistindo e buscando integrar-se. Todavia, o evento

não está resumido à materialidade das mídias, mas sim no efeito provocado em seus receptores; a essência da convergência é antes um processo cognitivo dos usuários, que absorvem a construção de significado através de diferentes mídias, procuram-no, e aprimoram este significado por meio da interação.

A convergência não ocorre por meio de aparelhos, por mais sofisticados que venham a ser. A convergência ocorre dentro dos cérebros de consumidores individuais e em suas interações sociais com outros. (JENKIS, 2009, p. 30).

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No contexto da vida moderna, a convergência tem ganhado terreno por meio dos grandes conglomerados financeiros da indústria de entretenimento, que a utilizam como estratégia de captura do consumidor. A produção convergente solicita do consumidor um comportamento, mais ativo, engajado e coletivo, promovendo uma transformação da cultura de entretenimento e consumo.

A circulação de conteúdos – por meio de diferentes sistemas de mídia, sistemas administrativos de mídias concorrentes e fronteiras nacionais – depende fortemente da participação ativa dos consumidores. Meu argumento aqui será contra a ideia de que a convergência deve ser compreendida principalmente como um processo tecnológico que une funções dentro dos mesmos aparelhos. Em vez disso, convergência representa uma transformação cultural, à medida que consumidores são incentivados a procurar novas informações e fazer conexões em meio a conteúdos de mídia dispersos. (JENKIS, 2009, p.30);

No panorama das mídias emergentes, percebe-se não necessariamente uma relação de sobreposição, com as velhas mídias sendo obliteradas pelas novas, mas sim um contexto de convergência no qual as novas mídias e as antigas principiam a integrar- se e interagirem nas mais diversas escalas. Nesse cenário, o computador apenas destaca- se por ser uma metamídia, agregando em si um amplo conjunto de mídias (rádio, televisão, jornal etc.) e inúmeras modalidades (sonora, escrita, visual etc.).

O teórico Jay L. Lemke, que se esforça em compor um paradigma de análise críticas multimídia, manifesta um conceito apropriado para abordar esses esclarecimentos iniciais: as constelações multimídia (LEMKE, 2005). Tais constelações também podem ser reconhecidas como franquias temáticas milionárias que agem na distribuição de produtos e serviços de um universo simbólico-semiótico que se converte em marca. A partir dele, as franquias obtém lucro e exercem controle em torno de sua divulgação. Segundo Jenkis (2009), o termo “franquia” é aplicado como referência a um empenho coordenado para imprimir uma marca e um mercado a conteúdos ficcionais, e nessas condições o conteúdo atravessa plataformas de mídia diferentes.

Para aplicar o conceito de constelação multimídia, podemos citar: O Senhor dos Anéis, Star Wars, Star Trek, Harry Potter, Game of Thrones, Glee etc.

Do ponto de vista dos estudos da linguagem no campo aplicado, esse novo cenário oferece novas possibilidades de exploração para questões já conhecidas, como as da multimodalidade e da intertextualidade, e, ao mesmo tempo, cobra a necessidade

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de uma outra abordagem semiótica dos textos e dos discursos com os quais os sujeitos contemporâneos se relacionam:

Franquias Transmitidiáticas [...] cruzam ambos os meios e gêneros, aparecendo como livros, filmes, quadrinhos, programação de televisão, computador e videogames, músicas, propaganda, passeios em parques temáticos e atrações, e, claro, imprensa, televisão e publicidade online. [...]

O que é particularmente interessante para a semiótica social é que todos estes diferentes suportes e gêneros estão fazendo significados coordenados. Cada um é 'intertexto' para todos os outros, e nenhum dos seus significados é totalmente independente de outros. Quais teorias da intertextualidade para signos lingüísticos podemos usar para dizer que um brinquedo, ou um pedaço de doce, é um intertexto de um livro ou um filme? (LEMKE, 2009, p.8)

Constelação Multimídia

Figura 1: Representação de constelação multimídia de STAR WARS13

A complexidade da transignificação, (o significado global produzido por diferentes mídias e sistemas semióticos) é um problema que não cabe abordar nesse estudo. Neste momento, a dissertação limita-se apenas a observar que o texto, quando

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transita por várias plataformas de mídia, revela um acúmulo de significados, no qual as transmidiações concorrem para que haja muitas escalas e complexidade na produção de sentido.

No mundo da convergência de mídias, toda história importante é contada, toda marca é vendida e todo consumidor é cortejado por múltiplas plataformas de mídia [...] A circulação de conteúdos – por meio de diferentes sistemas de mídia, sistemas administrativos de mídias concorrentes e fronteiras nacionais – depende fortemente da participação ativa dos consumidores. (JENKINS, 2008, p. 29)

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