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Aprofundando o legado conceitual de seus antecessores, Stuart Hall (1997, p. 33) se debruça sobre a “centralidade da cultura”. Essa expressão indica a forma como a cultura penetra e perpassa cada recanto da vida social contemporânea, “mediando” tudo. Seus pensamentos se inserem dentro de estudos das ciências humanas que passaram a ver a cultura como condição constitutiva da vida social, em vez de apenas uma variável. Isso não quer dizer que “tudo é cultura”, mas que os significados são formados dentro dessas condições da prática social. Dessa maneira, Hall (1997) especifica essa visão dizendo que não defende que não haja nada além do discurso, mas que “toda prática social tem o seu caráter discursivo”.

A televisão funciona por intermédio da linguagem. E Stuart Hall (1997) defende que a cadeia comunicativa não é linear, apesar de estar inserida em um circuito. A mensagem é uma estrutura complexa de significados. Em um programa de televisão, por exemplo, a mensagem não seria, portanto, completamente transparente. Ela contém uma relativa autonomia e passa a ser organizada em seus sentidos quando entra em contato com o público. Sobre produções que circulam na mídia, a comunicação se dá pela operação de códigos dentro de uma “corrente do discurso”, dentro de regras de linguagem. Uma vez transmitido, o discurso deve ser “traduzido”, podendo gerar práticas sociais. “Se nenhum ‘sentido’ é apreendido, não pode haver ‘consumo’. Se o sentido não é articulado em prática, ele não tem efeito” (HALL, 2006, p. 366-381). A interpretação faz parte, portanto, das práticas sociais.

Os seres humanos são seres interpretativos, instituidores de sentido. A ação social é significativa tanto para aqueles que a praticam quanto para os que a observam: não em si mesma, mas em razão dos muitos e variados sistemas de significado que os seres humanos utilizam para definir o que significam as coisas e para codificar, organizar e regular sua conduta uns em relação aos outros. Estes sistemas ou códigos de significado dão sentido às nossas ações. Eles nos permitem interpretar significativamente as ações alheias. Tomadas em seu conjunto, elas constituem nossas ‘culturas’” (HALL, 1997, p. 16).

Dentro desse contexto, a identidade emerge não apenas do sujeito, mas de seu diálogo com conceitos e definições que são representados por discursos de uma cultura. Hall (1997) destaca também que, no mundo moderno, as culturas nacionais se constituem em uma das principais fontes de identidade cultural, que, por sua vez, é formada e transformada por meio de representações. Para ele, “a nação não é apenas uma entidade política, mas algo que produz sentidos” (HALL, 1999, p. 49). A língua é meio essencial para a padronização. Além disso, a cultura nacional se tornou uma “característica-chave” da industrialização e um dispositivo da

modernidade. Apesar de discursos que frequentemente fazem alusão a uma unidade nacional, Hall (1999) salienta que as nações, hoje, são “híbridos culturais”, constituídas de profundas divisões e diferenças internas.

No caso brasileiro, a favela carioca se tornou um símbolo nacional. Ela está associada aos bolsões de pobreza dos grandes centros urbanos. Tornou-se parte na paisagem do Rio de Janeiro, que foi capital do Brasil até 1960 e é sede da TV Globo. E, a partir das representações cariocas, tiveram imagens suas veiculadas para o mundo. As favelas passaram a receber grupos de classe média-alta, que as frequentam por turismo, por eventos artísticos e mesmo para obras de solidariedade. Mas para isso exigem antes segurança, em um pacto que pode ser feito com as autoridades legais ou com as paralelas. A favela, enfim, hibridiza essa relação de afeição, incerteza e ódio da sociedade dita tradicional para com os moradores pobres.

A afeição em relação à favela se dá geralmente com a mediação da arte. Entre os exemplos que se pode citar, está o fato de que ricos sobem os morros para assistirem a um show de algum artista local; e também o contrário, quando os moradores das favelas “vão pro asfalto” (expressão para designar que vão sair da sua comunidade) e ver o que está acontecendo em algum ponto da cidade. A profissionalização dos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro proporcionou a obtenção de patrocínios, que fizeram as escolas trabalharem durante o ano todo para os dias do feriado. Essas escolas de samba também se tornaram pontos de intersecção entre as classes sociais, não só pelos profissionais que circulam por lá, como também por turistas que gostam de ir à noite assistir aos ensaios da escola e dançar com seus integrantes. Essa mesma sociedade, porém, tem incerteza sobre até que ponto os pobres se sentirão tranquilos vivendo em situações que não raro os colocam em risco. O medo está no armamento de alto calibre que as quadrilhas têm para defender seu negócio, o tráfico de entorpecentes.

Canclini (1983) observa que a indústria da mídia se apropria das culturas populares – termo que ele considera mais adequado do que cultura popular. Entende a cultura como representação, reprodução e reelaboração simbólica das relações sociais. E explica o uso do termo cultura da seguinte forma:

[...] preferimos restringir o uso do termo cultura para a produção de fenômenos que contribuem, mediante a representação ou reelaboração simbólica das estruturas materiais, para a compreensão, reprodução ou transformação do sistema social, ou seja, a cultura diz respeito a todas as práticas e instituições dedicadas à administração, renovação e reestruturação do sentido (CANCLINI, 1983, p. 29).

As culturas populares, para Canclini (1983), são constituídas em dois espaços: nas práticas profissionais, familiares, comunicacionais através das quais o sistema capitalista organiza a sociedade; e nas práticas e formas de pensamento que os setores populares criam para si próprios, mediante as quais concebem e expressam a sua realidade. A interação entre as culturas hegemônicas e populares é uma constante. Todas as classes, por exemplo, são expostas à televisão, que apresenta uma linguagem hegemônica. Mas, além de transmitir a ideologia dominante, leva em consideração formas populares de expressão, na medida em que tem o objetivo de atingir o conjunto da sociedade.

Pode-se dizer, portanto, que a subcultura das favelas, em diversas representações, passou de emergente para integrante da cultura nacional. A favela vem sendo representada no Brasil no cinema, na televisão, na Internet. Aparece nos noticiários frequentemente, para não dizer diariamente. Suas proporções crescem tanto que o brasileiro já se acostumou com o fato de que terá de conviver com ela. O foco do presente trabalho está em compreender como foi a representação dada para a favela pela Rede Globo em uma de suas novelas de horário nobre. Para Williams (1994), a cultura está inserida na vida. Ver-se-á como a novela “Duas caras” explorou e difundiu a cultura da favela na televisão.

5 OBJETO DA ANÁLISE: A FAVELA DE DUAS CARAS

Exibida pela TV Globo de 1º de outubro de 2007 até 31 de maio de 2008, a novela “Duas caras” foi ao ar de segundas a sábados. Para a presente análise, a novela foi gravada no seu período de exibição e depois decupada. Cada capítulo durava, em média, uma hora. Ressalta-se apenas uma curiosidade na exibição: o último capítulo foi exibido num sábado e não em uma sexta-feira, como de costume. Portanto, não teve repetição no dia seguinte. O título da novela foi inspirado em uma investigação policial, batizada de “Operação Duas Caras”, realizada pela 59ª DP de Duque de Caxias, município da Grande Rio de Janeiro, para prender policiais militares do 15º BPM da mesma cidade, suspeitos de envolvimento com o tráfico de drogas. Foi descoberto que o grupo recebia propinas semanais para não fazer operações em favelas.

Em um primeiro momento, considerou-se a escolha de uma dezena de capítulos, dos 210 que a compõem. Como um assunto na maioria das vezes demandava mais de um capítulo, temas relevantes relacionados à favela levavam mais de um dia para serem concluídos, dentro das várias subtramas. E, por ser uma narrativa televisiva com oito meses de duração, percebeu-se que a análise se tornaria mais produtiva se determinadas temáticas associadas à favela fossem destacadas da trama. Observou-se também, que tais temas estiveram presentes ao longo de toda a novela.

Essas temáticas foram classificadas da seguinte forma:

a) a formação da favela da Portelinha e suas características: com análise dos dez primeiros capítulos da novela, exibidos nos dias 1º, 2, 3, 4, 5, 6, 8, 9, 10 e 11 (menos no dia 7, que era domingo) de outubro de 2007. Esses episódios apresentam como começa a favela e quem são seus moradores, o seu líder e seus oponentes;

b) o preconceito: com análise dos capítulos dos dias 11 de outubro de 2007, 17 de outubro de 2007, 19 de outubro de 2007, 26 de fevereiro de 2008 e 9 de maio de 2008. Esses episódios apresentam o caso de Evilásio e Júlia e outros casais de classes sociais e raças diferentes;

c) a violência: com análise de capítulos que apresentam diversas questões ligadas à violência na cidade do Rio de Janeiro: as vítimas de balas perdidas, no capítulo de 12 de outubro de 2007; as milícias e os confrontos armados, nos capítulos dos dias 3, 4 e 5 de janeiro de 2008; a violência fora da favela (ou generalizada), nos capítulos de 16 de novembro de 2007 e 9 de fevereiro de 2008; a corrupção da polícia, nos capítulos

dos dias 24 de dezembro de 2007, 9 de janeiro de 2008 e 3 de abril de 2008; a violência que advém do uso de drogas, nos capítulos dos dias 24, 25 e 26 de abril; e o protesto da sociedade civil no capítulo de 10 de maio de 2008;

d) a omissão do Estado: com análise do capítulo do dia 10 de abril de 2008, com a sabatina de Juvenal na UPM, em que ele diz que atua na favela porque o Estado não se faz presente;

e) inclusão: da marginalidade à lei: com análise do último capítulo, no dia 31 de maio de 2008. Aqui se conclui a trama, e Evilásio é eleito vereador.

Para delinear o horizonte social em que a novela foi veiculada, serão apresentadas referências de informações sobre fatos relacionados à favela e à realidade brasileira do período, pesquisadas em jornais e revistas, em sua versão impressa ou on-line. São eles O Globo, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, Correio do Povo, Zero Hora e Revista Veja.

No entanto, antes de adentrar propriamente na análise, serão apresentadas informações sobre o autor, Aguinaldo Silva, uma sinopse da novela e uma lista dos principais personagens.

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