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O presente trabalho opta pela linha dos Estudos Culturais para a análise do seu objeto, visto que seus autores apresentam os meios de comunicação social como integrantes da cultura e estão atentos às formas populares de suas manifestações, com inúmeras pesquisas sobre os programas feitos para as massas. A proposta do presente trabalho é analisar a questão sob a base teórica dos Estudos Culturais, por ser uma linha que estuda a Comunicação como parte da cultura e a considera ligada às transformações sociais. As questões de identidade e dos subgrupos também são interessantes para se detectar manifestações artísticas e culturais e qual a abordagem dada pelos programas de televisão à realidade de moradores de favelas ou periferias urbanas. E, conforme texto de Itana Maria Mota Gomes, em seu livro “Efeito e recepção”, os Estudos Culturais tradicionalmente não se preocupam com qualquer mídia, mas com as mídias populares, no que a televisão aberta brasileira se encaixa perfeitamente. Na concepção de um dos fundadores dos Estudos Culturais, o britânico Raymond Williams (1994), os processos comunicativos estão inseridos no processo cultural mais amplo. Dessa forma, a cultura não pode ser compreendida sem referência à sociedade, ou seja, às práticas sociais dos indivíduos. Jesús Martín-Barbero destaca que as mensagens de massa só têm pertinência quando reelaboradas pela cultura popular, ou seja, é dentro da cultura popular que os conteúdos de massa são apropriados, interpretados e ganham sentido. Dessa forma, seu estudo gera um deslocamento da cultura do âmbito da ideologia, da sua mera reprodução, para o campo dos processos constitutivos e transformadores do social.

Kellner, afirmando que a cultura da mídia se tornou parte da vida cotidiana, ressalta que ela pode servir para disseminar formas de dominação da ideologia das relações vigentes, como fornecer instrumental para fortalecimento de identidades e manifestações de resistência. Tornando-se onipresente, a mídia passou a fazer parte dos hábitos diários da sociedade. Serve para perpetuar as relações sociais vigentes. Mas não é uma doutrinação rígida sobre ideologia, contudo, que induz à concordância do público, mas o prazer propiciado pelo consumo que leva a audiência a aderir a valores e comportamentos propostos pela mídia ou com ela criar uma identificação. Kellner toma como base fundamentos propostos pela Escola de Frankfurt, por suas perspectivas úteis sobre a sociedade contemporânea, apesar de ressaltar as limitações da Teoria Crítica. Ele destaca que tais estudos sofreram críticas posteriores por serem considerados elitistas e pessimistas. Mas ressalta o fato de que a Escola de Frankfurt foi a responsável por criar o termo “indústria cultural” por reconhecer que a cultura veiculada pelos

meios de comunicação e pelas empresas de entretenimento, como as de cinema, após a Revolução Industrial e a ascensão do capitalismo, seguem a lógica do consumo, em que todo produto cultural deve gerar lucro. Autores como Horkheimer e Adorno analisavam os produtos culturais como integrantes de um sistema que lhes dava as mesmas características de outros produtos fabricados para as massas, sendo elas a mercantilização e a padronização.

Assim, a detecção de que a cultura se insere na lógica capitalista é até hoje mérito atribuído aos frankfurtianos. Dentro dessa linha, Kellner defende que os Estudos Culturais britânicos corrigem certas perspectivas da Teoria Crítica.

A transformação do conceito de cultura passou por uma transformação radical na década de 50 na Grã-Bretanha, por meio da proposta de Raymond Williams (1921-1988), um dos fundadores do que viria a ser chamado de Estudos Culturais. No livro “Dez lições sobre Estudos Culturais”, de Maria Elisa Cevasco (2003), a autora apresenta a trajetória dessa linha de estudos.

Maria Elisa começa seu texto falando sobre o significado da palavra cultura, que tinha, até o século XVI, o sentido de cultivar, a atividade de cuidar de alguma coisa, como, por exemplo, a agricultura. A partir do século XVIII, o termo começou a ser usado como substantivo abstrato, designando um processo intelectual e espiritual da sociedade.

O cenário intelectual da Inglaterra quando Williams (1994) apresenta sua proposta de cultura era marcado por pensadores que delimitavam o termo ao que se pode chamar de “alta cultura”, valorizando somente aquilo que era consagrado pela tradição. A missão daqueles que quisessem dedicar-se a ela seria a de preservá-la. Era, enfim, um posicionamento elitista. Podem ser enquadrados aqui o poeta, crítico e teatrólogo T. S. Eliot e o crítico literário F. R. Leavis. Conforme Maria Elisa, para eles “a vida urbana de uma sociedade industrial e a democratização da educação e do acesso às artes iriam destruir a ideia de cultura” (CEVASCO, 2003, p. 49). Para defender seus ideais, os seguidores dessa “cultura de minoria” propunham um treinamento da elite, para que tomasse conta das instituições culturais e as mantivesse no rumo da alta cultura. Outra figura que foi uma referência do mundo intelectual britânico é o crítico literário Matthew Arnold, para quem as esferas da cultura tinham de ser separadas da política e da prática, enfim, apartadas das esferas da vida real. A valorização se dava em especial à literatura e à poesia. Em meio a uma tradição desse tipo, surge a posição de Williams (1994), com uma visão mais antropológica, a de que a cultura está ligada ao modo de vida.

Williams (1994) percebe as alterações sociais de seu tempo, o segundo pós-guerra, e propõe uma mudança semântica da palavra cultura, que estaria essencialmente ligada à realidade. Seu projeto intelectual acreditava na inter-relação entre fenômenos culturais e

socioeconômicos, além da possibilidade de transformações sociais. “Definir cultura é pronunciar-se sobre o significado de um modo de vida” (CEVASCO, 2003, p. 23).

Em oposição à ideia de que uma elite definiria o que é cultura para depois difundi-la às massas, Williams (1994) propõe o acesso de todos ao conhecimento e aos meios de produção cultural. Sua concepção se baseava em um princípio de solidariedade que ele identificava com a classe trabalhadora. Williams (1994) acreditava que a cultura é muito mais extensa do que faziam crer os defensores de uma cultura de minoria. Não que isso significasse desprezar as grandes obras da cultura, mas propunha apropriar-se delas como uma herança comum e abrir o acesso aos meios de produção cultural.

Williams (1994, p. 11) destaca que há um intenso desenvolvimento do sentido de cultura como cultivo ativo do pensamento. Ele distingue, entre a gama de significados de cultura, três, que vão desde “um estado desenvolvido do pensamento”, como no caso de uma pessoa culta; “os processos deste desenvolvimento”, como é o caso das atividades culturais; e “os meios deste processo”, como as artes e obras humanas intelectuais. Este último seria o mais comum em nossa época. Estes significados coexistem com o uso antropológico e sociológico, que indica “todo o modo de vida” de um povo ou de um grupo social.

Suas ideias levantaram uma percepção materialista da cultura, a de que os bens culturais são resultados de meios que são materiais de produção, envolvidos em relações complexas com instituições, normas, formas e convenções. Dessa forma, vendo a cultura como todo um modo de vida, que capta as novas experiências da reorganização social, Williams (1994) pensava ainda na possibilidade de intervir nessa reorganização e poder democratizá-la. Essa posição certamente exprime os ideais utópicos e marxistas que fizeram parte da formação do pensador.

Com Williams (1994) abordando a cultura na sociedade e não apartada dela, são valorizadas, além das grandes obras, as modificações históricas do modo de vida de uma esfera social. O modelo teórico por ele proposto se dá em uma prática em pelo menos três níveis: a experiência concreta do vivido, com as práticas culturais de grupos ou sociedades; a formalização dessas práticas em produtos simbólicos; e as estruturas sociais, que podem vir a determinar esses produtos. Isso se dá em um campo de forças sociais, ambiente que se torna alvo de disputa pelo poder.

Dessa forma, abre-se a possibilidade de descrever a cultura na sociedade contemporânea e buscar manifestações culturais que revelem o que é emergente e pode se contrapor aos valores dominantes e hegemônicos de cada época. Esta análise da novela “Duas caras” está associada a essa perspectiva.

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