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3 OS CAMINHOS NAVEGADOS

3.1 Compreensão das concepções de cultura: seu caráter ontológico

3.1.1. Cultura Popular

Ao estudarmos cultura, particularmente no Brasil, devemos manter a atenção voltada no sentido de nos indagarmos sobre a cultura das classes sociais ou cultura popular. O entendimento é que, a uma realidade estruturada a partir das relações internas da sociedade e de um sistema de ideias, imagens, atitudes e valores, dá-se o nome de cultura popular. Definir cultura popular "significa a escolha de um ponto de vista, uma tomada de posição‟‟ (BOSI, 1986, p.62).

Eu estava lendo que a cultura popular não estava ligada só a folclore. Popular é a população, é a integração das manifestações. Eu através do fantoche conseguia dar boas aulas sobre cultura. Chegamos a fazer, eu e Marieta, também da AACC, uma apostila sobre os conceitos de arte e cultura popular para trabalhar nas escolas em Cabedelo. Um trabalho muito bom. (Evilásia de Sousa Lourenço - fundadora da AACC e ex- presidente).

Para Gramsci (1978, p. 177), a questão é colocada em termos de “estruturas ideológicas da sociedade: ao lado da dita cultura erudita, transmitida na escola formal, existe a cultura criada pelo povo, que articula uma concepção do mundo e da vida em contraposição aos esquemas oficiais”. A relação entre a temática envolvendo o popular e nacional tem sido uma constante, a ponto de Nelson Werneck Sodré afirmar que só é nacional o que é popular. O brasileiro é “caracterizado como homem sincrético, produto do cruzamento de três culturas distintas: a branca, a negra e a índia" (apud ORTIZ, 1994, p.16).

Assim, o conceito de povo brasileiro permanece ligado a este elemento popular oriundo da miscigenação cultural. Nos anos 20 e 30, no Brasil, os movimentos políticos e intelectuais se propunham redefinir a problemática brasileira, tendo a identidade nacional e a cultura popular como oposição ao colonialismo. Isto se verifica com maior nitidez quando destacamos o modernismo, movimento dos anos 20, em busca de uma identidade brasileira.

Esse movimento tem prosseguimento com as pesquisas e os estudos sobre o folclore, registrados por Mário de Andrade. O objetivo maior desses intelectuais era “compreender as crises e os problemas sociais e elaborar uma identidade que se adéque ao novo Estado Nacional” (apud ORTIZ,1994, p.18). No capitalismo, tanto as desigualdades econômicas quanto sociais, provocadas pela brutal divisão do trabalho, irão ocasionar, como consequência, a desigualdade cultural. É a cultura dos dominantes refletindo-se nas classes dominadas. A partir da ideia de refinamento pessoal, cultura se transformou na descrição do conhecimento dominante nos Estados Nacionais que se formavam na Europa a partir do fim da Idade Média.

Esse conhecimento passou a ser chamado erudito e voltou-se para as classes dominantes, em contraponto “ao conhecimento da maior parte da população, que passou a ser considerado inferior e que aos poucos passou também a ser entendido como uma expressão de cultura, a cultura popular” (SANTOS, 1994, p.54). Ao fazermos uma análise da cultura popular das populações pobres de uma sociedade, estamos classificando suas formas de

pensar e agir, procurando, com essa análise, entender o que de específico existe, sua dinâmica e lógica internas, bem como a teia política que a envolve.

Para obter legitimidade própria, a cultura dominante tem, historicamente, desenvolvido várias ações e processos, a partir das universidades e de outras instituições, que produziram saber e ciência comprometidos com essa “legitimidade”. Por atenderem, em sua grande maioria, apenas às classes dominantes, essas instituições deixaram de fora as manifestações culturais das classes dominadas, aí entendidas como cultura popular, conforme enfatiza Santos (1994, p.59):

As classes dominadas existem em relação com as classes dominantes, partilham um processo social comum; do qual não detêm o controle. A produção cultural, toda a produção cultural, é o resultado dessa existência comum, é um produto dessa história coletiva, embora seus benefícios e controle não se repartam igualmente.

Quando Ortiz (1994) pergunta o que é ou pode ser considerado popular na cultura, temos o entendimento de que a resposta aponta para as manifestações culturais vividas pelas classes dominadas em seus processos de vida em sociedade. Segundo Ayala e Ayala (1987), os artigos de Celso de Magalhães, publicados em jornais de Recife e São Luís, em 1873, são os primeiros estudos brasileiros sobre cultura popular. Esses estudos apontam para a procura dos traços nacionais, do típico, como forma de afirmação da identidade nacional, em contraponto a outras influências culturais.

No caso brasileiro, foi fortíssima essa busca dos fatores culturais próprios, e a poesia popular serviu, ao lado do folclore, como base para essa construção. Identificamos, em nossas viagens de pesquisa, desde o ano de 2000, como particularidade da cultura popular, que ela é mais forte no meio rural e em cidades interioranas. Tudo isso é ligado à noção de que a cultura popular é rústica, ingênua, sendo vista como uma ameaça perigosa às noções de ordem e civilidade. Há, pois, uma oposição entre folclore e civilização. Assim, podemos dizer que, uma característica do folclore brasileiro são as reminiscências de lendas, crenças e tradições que se extinguem e que são como uma imensa colcha de retalhos.

Para Cascudo (1973, p.22-23), uma manifestação é folclórica quando, “além de ser popular, constitui-se em sobrevivência; folclore seria então uma manifestação do passado no presente, um conjunto de fragmentos de costumes e práticas culturais desaparecidas”. Uma manifestação de cultura popular, porém, não ocorre isoladamente, por isso devemos levar em

consideração o contexto cultural em que se realiza. Hoje, o entendimento sobre cultura popular evoluiu ante a perspectiva de superar a relação de sua existência com a simples sobrevivência. Isso fica muito claro na análise de Bastide (1975, p.2) , quando faz um corte na análise de Cascudo (1973) e propõe a transformação, afirmando:

Se as estruturas sociais se modelam conforme as normas culturais, a cultura por sua vez não pode existir sem uma estrutura que não só lhe serve de base, mas que é ainda um dos fatores de sua criação ou de sua metamorfose; o folclore não flutua no ar, só existe encarnado numa sociedade, e estudá-lo sem levar em conta essa sociedade é condenar-se e aprender-lhe apenas a superfície.

Entendemos, a partir dessas questões, que o contexto e o espaço são componentes estruturais dessa análise. Para Fernandes (2005, p.28-29), as manifestações de cultura popular estão impregnadas de funções sociais, acrescentando que o folclore “inclui todos os elementos culturais que constituem soluções usuais e costumeiramente admitidas e esperadas dos membros de uma sociedade, transmitidas de geração a geração por meios informais”. O folclore, com tal ênfase envolveria vários elementos, materiais e não-materiais, e seria sinônimo de cultura popular.

É a partir dos anos 60 que o aspecto político-ideológico conquista o primeiro patamar nas discussões sobre cultura popular no Brasil. As discussões giravam em torno do “povo brasileiro, quais os grupos sociais que os constituem, as formas de atuação política e artística” (AYALA e AYALA, 1987, p.41). Nessa época, surgem os movimentos culturais, como o Movimento de Cultura Popular e os Centros Populares de Cultura da UNE (União Nacional dos Estudantes), que discutiam as questões culturais relacionando-as à política, com interferências concretas na realidade.

Já nos anos 70, sob outro olhar, “não mais o da vanguarda iluminada que vai ensinar o povo, a preocupação é a de tentar compreender sua cultura como parte de um processo de exploração econômica e dominação política” (Ibidem, p.50). Tal ênfase em nada diminui a preocupação com a cultura popular, enquanto produção historicamente determinada, elaborada e consumida pelos grupos subalternos de uma sociedade capitalista, que tem como principal característica a exploração econômica e a distribuição desigual do trabalho, da riqueza e do poder. O desenvolvimento de estudos culturais nas duas últimas décadas gerou um forte interesse pelo conceito de cultura popular e estimulou como

consequência, uma série de esforços para teorizar a ideia popular. O popular tem sido visto com frequência, principalmente pelos educadores, como um agente potencialmente perturbador de relações de poder vigentes.

Tem sido visto, além disso, como uma ameaça em seu potencial de fazer com que se vislumbrem práticas sociais e formas populares que afirmem tanto a diferença como os diferentes modos de vida. Alguns educadores têm enxergado a cultura popular como um conjunto de conhecimentos e prazeres desvinculados da vida, em geral, e da vivência escolar como prática, em particular. Em contraponto a essa postura de alguns, outros acreditam (GIROUX, 1988) que a cultura popular é o terreno das mensagens, imagens, formas de conhecimento e investimentos afetivos que definem as bases para se dar oportunidade à “voz” de cada um, dentro de uma experiência social.

As práticas culturais populares exibem numerosas diferenças que, em parte, se devem às lutas inerentes às relações vigentes de gênero, classe, raça, etnia, idade e religião. A questão maior que se coloca é que essas diferenças continuam a ser usadas para gerar e manter desvantagens e sofrimento para as classes subalternas. Existem, na atualidade – e isso é uma unanimidade entre os pesquisadores da área – uma complexa e diversificada gama de manifestações culturais. Por isso não mais podemos generalizar quando falamos em cultura popular. A tarefa, no momento, é procurar entender o que é afinal e o que significa a cultura popular na vida em sociedade.

A cultura popular, como já dissemos, está situada em seu contexto. Verificamos que ela insere-se em um processo social e cultural de amplitude considerável, “devendo-se considerar sua ligação com as condições de existência e com os interesses de seu público integrante do grupo societário dos explorados” (GIROUX, 1988, p.56). No mundo e na sociedade capitalista, as desigualdades não ocorrem só no campo econômico, mas estendem- se aos outros bens produzidos pela sociedade, inclusive a cultura, existindo a partir daí uma relação entre os economicamente dominados e os política e culturalmente, também, dominados. Inacessíveis, os bens econômicos interferem diretamente, afetando as práticas culturais populares.

Apesar dessa dificuldade e de ressentir-se do apoio econômico, a cultura popular é constituída não apenas de produtos, mas também de práticas que refletem a capacidade criativa e por vezes inovadora das pessoas. É possível que a cultura popular contenha aspectos

de uma imaginação coletiva capaz de fazer com que as pessoas transcendam o conhecimento e a tradição recebidos. Nesse sentido, a cultura popular poderá revelar aspectos de um contra discurso útil na organização de lutas de superação da dominação.

Nessa direção, dialogamos com Bosi (1986):

Uma prática cultural por si só não carrega consigo a política que a gerou, como se esta houvesse sido gravada a fogo para toda a eternidade; vamos considerar que é exatamente o contrário que ocorre, o seu funcionamento político depende da rede de relações sociais e ideológicas em que está inserida como consequência das formas pelas quais ela se articula com outras práticas, em determinado espaço e conjuntura.

A leitura que fazemos indica que Gramsci (1981) admirava essa capacidade que tem a cultura popular de absorver e reelaborar elementos urbanos já afetados de novas tecnologias. Uma vez que há necessidade de se conquistar a permissão para que formas de expressão popular se incorporem à cultura dominante, a cultura popular nunca ficará livre de ideologias e de suas práticas. Do mesmo modo, as formas de expressão popular, para serem adotadas em benefício do fortalecimento do poder individual e do poder social, têm de ser renegociadas e reapresentadas.

A cultura popular possui algumas características funcionais, sendo uma delas a coesão interna, onde cada hábito, crença ou técnica tem seu significado na economia como um todo. Outra característica é a vivência não consciente, mas emotiva, havendo ainda uma terceira que define uma reelaboração constante onde os temas se refazem, reafirmando que nem tudo é herdado pura e simplesmente.

Na cultura popular, novo e antigo se entrelaçam. Para melhor compreendermos a cultura popular, segundo Canclini (1987, p.43) temos que considerar vários fatores:

A especificidade das culturas populares não deriva apenas do fato de que a sua apropriação daquilo que a sociedade possui seja menor e diferente; deriva também do fato de que o povo produz no trabalho e na vida formas específicas de representação, reprodução e reelaboração simbólica de suas relações sociais (...). O povo realiza estes processos compartilhando as condições gerais de produção, circulação e consumo do sistema em que vive. As culturas populares são construídas em dois espaços: as práticas profissionais, familiares, comunicacionais, através dos quais o sistema capitalista organiza a vida de todos os seus membros e um segundo, que são as práticas e formas de pensamento que os setores populares criam para si próprios, mediante os quais concebem e expressam a sua realidade, o seu lugar subordinado na produção, na circulação e no consumo.

Com essa carga de controle sobre a cultura popular, ela passa, muitas vezes, a internalizar concepções que atendem as classes dominantes e que passam a parecer como se fossem de toda a sociedade, exercendo a hegemonia (categoria gramsciana) e a direção político-cultural sobre os demais grupos sociais.

Para as elites econômicas, que entendemos como dominantes, existe a crença de que vive racional e honestamente o progresso, enquanto o homem do povo vive miticamente as suas tradições. Quando isso ocorre, ela atua no sentido de manter e reproduzir a dominação e as desigualdades. Em paralelo, pode construir também, não para a reprodução, mas para a transformação da estrutura social vigente. Isso se dá porque também expressam a consciência de produtores e consumidores em relação às desigualdades e veiculam as posições contestatórias dos mesmos em relação à ideologia dominante.

Nessa corrida pela uniformização da cultura e da ideologia, já registramos a atuação da indústria cultural como sendo uma indústria “com a função de difundir, para o conjunto da população, produtos culturais elaborados por especialistas, implicitamente, padrões cognitivos, estéticos e éticos que lhes são subjacentes” (CANCLINI, 1987, p.14). Com o surgimento da indústria cultural, houve uma profunda reelaboração da cultura a partir de elementos da cultura erudita e de outros oriundos da própria indústria cultural.

Como a cultura não existe no ar, solta, é preciso que compreendamos que a elaboração e difusão de produtos culturais ocorrem a partir de suportes material, organizacional e financeiro. O produto cultural está vinculado à estrutura social geral e só se mantém “na medida em que a cultura é reproduzida, reelaborada em caráter permanente, e que se transforma quando se modificam as condições histórico-sociais no âmbito das quais é produzida” (AYALA e AYALA, 1987, p.61).

Assim sendo, uma manifestação deixa de ser popular, quando seus produtores passam a depender financeira e materialmente para a sua realização, de uma instituição pública ou privada. O mercado introduzido pela indústria cultural é o elemento novo interposto e vem criar uma distinção no interior da cultura popular. Na indústria cultural, temos uma cultura de massa, travestida de popular, que é outorgada às massas segundo a concepção das classes dominantes (CANANÉA, 2011).

A cultura de massa veio substituir, junto ao povo, tanto a cultura popular quanto a cultura erudita. Nossa cultura, a cultura latino-americana, e para nós, a cultura brasileira, tem

sido compreendida como dominada. A dominação característica da modernidade, de seu modo de ser, é a base comum em que a relação dominador - dominado se funda e se estabelece.

Nesse aspecto, afirma Bosi (1986, p.11):

É precisamente porque acredito deveras nas potencialidades das pessoas comuns que eu critico a cultura de massas. Porque as massas não são pessoas, não são o homem da rua ou o homem médio, nem sequer aquela ficção da condescendência liberal, o homem comum. As massas são, antes, o homem - como - não - homem, isto é, o homem em relação especial com os outros homens que o impossibilita de funcionar como homem.

Pensamos nesse contexto, ou seja, que a cultura popular apresenta-se com a face da realidade social, alicerçada nas desigualdades econômicas, culturais, sendo fundamentalmente um reflexo das contradições da sociedade. Em sua dialética, tudo assimila, mas tudo refaz. Ao estudar a trajetória de criação e o caminhar cultural da AACC, esta pesquisa utiliza, como referencial principal, o ser humano que produz cultura. Não podemos compreender o sentido humano da cultura sem explicá-la por meio do homem e da mulher que a produz e de suas relações econômicas e identitárias, e é por isso, o nosso interesse nas raízes culturais populares desse grupo – a AACC.

A tarefa permanente da AACC, por meio de um processo educativo, caracterizado como popular, é certamente, o fortalecimento identitário do modo de vida e das relações cultuais, socioeconômicas, educacionais e políticas dos cabedelenses, interferindo, a partir da valorização cultural própria do seu destino, inserida no contexto da sociedade. Compreendendo que a cultura é fundamental para o fortalecimento dessa identidade, destacaremos a construção do conhecimento a partir dos saberes da vida e da ciência.