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1 CULTURA: DO CONCEITO GERAL À CULTURA POPULAR

1.2 A CULTURA POPULAR NO GÊNERO DO CORDEL E NO GÊNERO ORAL

DA CANTORIA DE VIOLA NORDESTINA

A partir daqui, trazemos, como recorte para esse trabalho de Literatura Popular, duas modalidades da poesia popular, o Cordel e a Cantoria de Viola nordestina, sistemas sobre os quais, por terem uma relação temporal (surgiram, praticamente, ao mesmo tempo) e de gênero (ambos os estilos são poéticos), discorreremos simultaneamente, ressaltando e, ao mesmo tempo, relatando que, embora a Literatura de Cordel pertença ao sistema da literatura escrita e a Cantoria de Viola nordestina ao sistema da literatura oral, ambas são de origem européia.

Os ilustres folcloristas e pesquisadores do assunto, Luís da Câmara Cascudo, nas obras Cinco livros do povo (1953) e Vaqueiros e cantadores (1970), e Manuel Diégues Júnior, no seu ensaio intitulado “Réquiem para a literatura popular” (1982), elucidaram a dúvida em relação à entrada da Literatura Popular no Brasil, esclarecendo que, na Europa, essa origem remonta ao século XVII, e que trazidas para o Brasil, através dos portugueses, no processo de colonização, aqui elas floresceram a partir do século XIX, tendo como ponto de partida o ano de 1830.

Essas literaturas tiveram, no Nordeste brasileiro, o seu celeiro, o ambiente ideal e propício para o seu desenvolvimento, visto que, devido ao atraso em que viviam naquele período, as pessoas, na sua maioria analfabetas e carentes, não dispunham de recursos para diversão e a literatura popular, como arte, nos mais variados gêneros, se constituía, também, em uma opção de divertimento, por ser mais acessível às pessoas e já que sua linguagem era de fácil compreensão, atraía a atenção do povo. Assim, tanto o Cordel quanto a Cantoria, que fazem parte do gênero poético popular, foram muito aceitos pela população.

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No caso do Cordel, são folhetos impressos em forma de versos que são lidos, ou seja, declamados, para deleite do público, como mostram os fragmentos dos versos de Francisco Ferreira Filho Diniz, cujo título é “Literatura de Cordel”:

É poesia popular,

É história contada em versos Em estrofes a rimar,

Escrita em papel comum Feita pra ler ou cantar. [...]

O cordel é uma expressão Da autêntica poesia Do povo da minha terra, Que luta pra que, um dia a fome e miséria, Haja paz e harmonia.12

Quanto à Cantoria de Viola, são poemas cantados para uma platéia presente no momento da performance. Apesar de parecerem simples, apresentam uma metrificação própria do seu estilo e uma variedade de gêneros poético-musicais, sem contar que são produzidos em forma de “repente”, cantado e improvisado, como podemos ver nos versos decassílabicos do repentista pernambucano Oliveira de Panelas ao falar, de maneira exaltada, sobre o cantador, sobre o ofício do poeta repentista:

Repentista, poeta, cantador, Teu cantar livremente se levanta É teu grito holocausto da garganta Como que quer matar a própria dor, Há um toque de sonho e de amor E um namoro de musa passageira, Teu cantar rasga o peito a vida inteira, Na tangente da lira nordestina, Tua voz uma eterna clandestina

Musicando a grandeza brasileira. (apud WOENSEL, 2005, p. 155)

Esses dois estilos (Cordel e Cantoria) são apreciados pelo povo não só do Nordeste como também de outras regiões. Ambos são artes poéticas executadas em voz alta, nas feiras livres e praças públicas, onde logo atraem a atenção das pessoas. O nome Cordel tem origem européia e se deve ao fato de que esse material era vendido pendurado em um barbante chamado “cordel”.

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A popularização dessas atividades artísticas tipicamente nordestinas se deu por constituírem, muitas vezes, o único meio de diversão para as pessoas. No caso do Cordel, além de ser comercializado nas feiras livres por um preço baixo, em relação a outros livros escritos, as pessoas, mesmo as que não sabiam ler, podiam mandar alguém ler e, ao ouvir, memorizar os versos. Também no caso da Cantoria, ela custava barato, já que o pagamento ficava ao gosto do público que presenciava as performances dos artistas sendo, por isso mesmo, mais acessível ao povo em geral, sem contar que não se precisava pagar ingresso para assistir à dupla de cantadores, além de ser muito atrativo ouvir os repentistas cantarem seus poemas.

Desse modo, os folhetos produzidos pelos cordelistas e os repentes criados pelos repentistas ou cantadores de viola se popularizaram e tiveram sucesso porque, sendo as narrativas lidas (Cordel) ou cantadas (Cantoria), em forma de versos, para o público ouvinte, que, como já dito, era formado, na sua maioria, por pessoas sem estudo ou semi-analfabetas, isso facilitava a memorização, bastando apenas prestar atenção às histórias que, além do mais, tratavam de narrativas de fatos do próprio contexto social. Os artistas abordavam os temas mais comuns e que despertavam o interesse do povo, tais como festas populares, política, a famigerada seca do Nordeste, a vida dos cangaceiros e as façanhas de Lampião (no tempo do cangaço), as disputas de famílias (muito comuns, naquela época), atos de heroísmo, mortes de personalidades, principalmente os fatos considerados como grandes tragédias, enfim, tudo que se passava no cotidiano e na vida do povo. Esses fatos eram contados em um tom jocoso ou humorístico e o fato de serem considerados engraçados ou pitorescos era mais um motivo para atrair a atenção da platéia ali presente.

Quando se referiam a romances, histórias de amor envolvendo uma tragédia no final, essas histórias romanceadas, cantadas (Cantoria) ou contadas (Cordel), eram histórias cheias de lirismo e, por isso, despertavam um fascínio e exerciam um poder de atração muito grande, despertando o interesse das pessoas que se pode comparar, atualmente, ao sucesso e à audiência das telenovelas, sem contar que, naquele tempo, os meios de comunicação eram bastante precários.

Sendo assim, esses estilos poéticos, gêneros da Literatura Popular, se transformaram em atividades típicas dessa região, tendo como representantes, da Cantoria, as figuras dos repentistas ou cantadores, que realizavam suas performances através do cântico oral realizado em dupla, e do Cordel, os cordelistas, que realizavam suas atividades (individualmente) por intermédio da escrita, eles mesmos se encarregando de vender seus produtos, de declamar seus poemas, uma atividade que podia, entretanto, ser feita por

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terceiros, pois, por se tratar de escrita, poderia muito bem ser lida por outras pessoas, ou seja, não necessariamente pelo autor do texto, inclusive em outro momento qualquer diferente do local e do tempo de produção.

Assim, a diferença que se estabelece entre esses dois gêneros é que os versos do Cordel são produzidos, geralmente, no campo da escrita, enquanto a Cantoria de Viola se dá no campo da oralidade sendo os versos dos cantadores elaborados no momento das performances artísticas, em forma de repentes improvisados. Assim, apesar desses gêneros populares estarem imbricados, já que possuem história e origem comuns, além de estarem inseridas no mesmo contexto social, apresentam diferenças quanto ao modo de produção.

A relação entre o Cordel e a Cantoria é tão forte que muitos repentistas até são homenageados como cordelistas, como aconteceu, em 1976, quando o repentista Pinto do Monteiro recebeu o título de “Cavalheiro Benemérito da ordem da Literatura de Cordel”, pelo Jornal Brasil Poético de Salvador. Isso se dá por que a partir do momento em que os cânticos orais, elaborados nos eventos de Cantoria, são gravados e transcritos, apartir do momento em que eles passam a ser escritos e vendidos em forma de folhetos, eles passam a ser considerados cordéis. Outro fator que contribui para que haja dúvidas quanto a esses sistemas é que, durante os congressos, festivais e demais eventos, sejam de Cantoria ou de Cordel, é comum a presença de cantadores e cordelistas juntos, no mesmo acontecimento. Por outro lado, muitos cantadores produzem seus folhetos tal qual fazia o repentista Pinto do Monteiro que escrevia seus repentes e os enviava para o artista e amigo Guiseppe Baccaro fazer a impressão dos folhetos e vender.

Porém há essa distinção: enquanto o Cordel, como expressão poética, se dá apenas na forma escrita, a Cantoria é uma forma de expressão oral (poético-musical), produzida na performance. Contudo, todo repentista pode ser, sim, um cordelista, desde que ele faça a transcrição dos seus poemas cantados; mas nem todo cordelista pode ser repentista porque, para ser cantador, é preciso ter o dom, isto é a habilidade e a capacidade para elaborar os versos na hora, ou seja, de improviso. O que não é tão fácil.

Assim, pelas razões até aqui apresentadas, ao se abordar o assunto Cantoria, conseqüentemente, se fala em Cordel o que, muitas vezes, leva a gerar dúvidas entre as pessoas que entendem ser a Cantoria e o Cordel uma mesma atividade artística, pois, dentro de uma mesma estrutura social, os artistas de ambos os gêneros se constituem em porta-vozes do povo, já que dele fazem parte e uma vez que as poesias cantadas ou narradas abordam temas característicos desse ambiente geográfico tipicamente sertanejo, motivo pelo qual suas artes poéticas foram tão consagradas. Nessas narrativas escritas e orais em forma de versos

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recitados ou cantados de improviso, os poetas cantadores ou os cordelistas reconstituem as histórias ouvidas que são reconfiguradas através de uma linguagem artística característica desse contexto social. Contudo, tanto o Cordel quanto a Cantoria de Viola nordestina têm suas raízes também nas fábulas, nas maravilhosas “histórias de trancoso” ou “causos” muito apreciadas pelo povo dessa região, principalmente em uma época em que o rádio e a televisão só existiam nos grandes centros urbanos.

Por outro lado, falar desses dois gêneros ao mesmo tempo prova que não deve existir qualquer fronteira que seja no campo da cultura, pois o que vale mesmo é a comunicação e a expressividade, que se realizam através do código lingüístico, visto que a língua não é simplesmente um sistema de regras, mas uma atividade sociocultural cuja relação interativa contribui de maneira significativa para tornar os seres humanizados e para a criação de novos mundos.

Além do mais, não existem culturas isoladas, elas estão em constante movimento de assimilação que as torna híbridas. O que existe, segundo Hall (2003, p. 262) são formações culturais de classes distintas e diversificadas que indicam e reforçam uma diversidade cultural muito grande, principalmente em um país como o Brasil, de formação étnica colonial tão híbrida. A Cultura Popular do Nordeste é, portanto, um exemplo dessa diversidade cultural que existe em nosso país. Sendo assim, a mídia deveria colaborar mais para a divulgação da cultura popular através dos meios de comunicação de massa como o rádio e a televisão, de suas novelas, seus filmes, seriados, programas, enfim, por intermédio da imprensa falada ou escrita, mostrando essas diferenças e a influência no cenário cultural do país, em todos os campos da arte, quer seja ela plástica ou literária.

As atividades artísticas, a exemplo dos gêneros do Cordel e da Cantoria, são expressões literárias populares que fazem parte de outro cânone literário, o cânone literário popular. E não podemos negar que possui uma beleza estética e uma força de expressividade marcante, como cultura do povo, como, por exemplo, a obra do escritor Ariano Suassuna, que tomou como fonte a tradição popular ao escrever o “Auto da Compadecida” obra, hoje tão conhecida, depois de levada ao cinema na qual é bem marcante a irreverência e a graça figurativa do personagem Chico que, conforme declarações do próprio escritor13, ele tirou do Romanceiro Popular, dos Cordéis escritos e das Cantorias dos repentistas a narrativa jocosa que envolve a cachorra apresentada nesse filme. Ele foi categórico ao asseverar que muita

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O escritor Ariano Suassuna falou da Influência da Literatura Popular na Literatura Clássica, em uma aula inaugural da Faculdade Dom Pedro II, para a qual foi convidado, em Salvador-BA, no dia 23 de agosto de 2007.

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coisa que se atribui à literatura clássica, na verdade vem da literatura popular pois é no Cancioneiro popular que encontramos as histórias que tanto agradam ao povo por se tratarem de fatos que retratam o cotidiano das pessoas, ou seja, são originários da própria vivência.

E é essa identificação contextual que desperta o interesse de quem lê ou assiste uma peça como a do escritor Suassuna. Outrossim, se as culturas são híbridas, conforme afirmam os estudiosos da cultura como Said e Hall, as literaturas também o são, tanto é que nos textos literários é comum aparecerem esses recursos como parte da intertextualidade. Por isso, encontramos modalidades da literatura popular presentes nas obras literárias dos grandes escritores da literatura brasileira dando maior sabor às narrativas e aos personagens, até mesmo pela linguagem que tão bem as caracteriza. Enfim, a Cultura Popular nas suas mais diversas formas, específica ou não, a exemplo do Cordel e da Cantoria já estão enraizadas no contexto das tradições culturais em nosso país.

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