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Fayga Ostrower Horizonte – 1994 Aquarela sobre papel Arches

60 CUL-TU-RA Conjunto de características espirituais, materiais, intelectuais e emocionais que definem um grupo social [...] engloba modos de vida, os direitos fundamentais da pessoa, sistemas de valores, tradições e crenças[...] dá ao homem a capacidade de refletir sobre si mesmo. Por meio dela o homem se reconhece como um projeto inacabado [...] e cria obras que o transcendem (UNESCO, 1982, p. 1-2).

Para os fins desta pesquisa, esta acepção da Unesco se faz relevante e importante, pois trabalha com uma perspectiva complexa, contextualizada e ampla. Partindo dessa conceituação, apresentamos outros conceitos e teorias que discorrem sobre as diversas definições, simbologias, representações e disputas da cultura, os quais compõem ensaio introdutório sobre esse campo de conhecimento tão vasto.

Cultura – algo indissociável do ser humano. O indivíduo é criador, e na mesma medida ele afeta o mundo físico, a própria condição humana e os contextos culturais (OSTROWER, 1997). O conceito de cultura foi pensado por muitos campos e teóricos ao longo da história. No que se refere a esse processo, o termo no plural, para alguns referenciais, pode representar melhor tal amplitude conceitual, epistemológica.

A cultura [...] integra-se nos diferentes mecanismos sociais que perpassam pelo universo simbólico-espacial do agente, o corpo tem um papel determinante como filtro e percepção cultural, seja através dos sentidos, ou compreendida como experiências (GUTIERREZ; ALMEDA, 2004, p. 49). A palavra cultura tem origem no latim, do verbo colare, ou seja, cultivar, estando ligada diretamente ao cultivo e ao cuidado da terra, vinculado ao ato de cuidar, para que algo frutífero possa se desenvolver (CHAUI, 2008). Essa ideia de cultura se modifica no decorrer do tempo; destaca-se uma das grandes transformações de significado a partir do pensamento iluminista, por meio do qual ganha status de civilização, ligada diretamente à vida política e estruturação social. Portanto a cultura passa a funcionar como medida de avaliação das sociedades, sob a lente de um critério que categorizava o que era mais ou menos civilizado e evoluído. (CHAUI, 2008).

Novas modificações no decorrer do século XIX, com a ascensão das ciências humanas e da antropologia, com base no padrão civilizatório Europeu capitalista e na sua visão etnocêntrica de cultura, aspecto que fundamentou as ações colonialistas e imperialistas, por exemplo (CHAUI, 2008).

61 No século XX, sob fortes influências da filosofia alemã e marxista, pôde-se verificar um rompimento com a visão etnocêntrica, concebendo novas porosidades em relação ao conceito de cultura que ganha influências históricas, materiais e das estruturas sociais, manifestando-se de forma individual ou coletiva. Assim começa a ser considerada a cultura popular, a qual desde sempre existia, mas antes era negligenciada em termos de reconhecimento e estudos (CHAUI, 2008).

Esse é um demonstrativo dos aspectos sociais estruturantes agindo sobre a vida das pessoas, culturalmente delimitando mecanismos de exclusão e marginalização, como no caso da contraposição entre cultura de massa e Cultura erudita, que devem ser expostos de modo a serem atentamente percebidos e refletidos no decorrer da história, para que possamos entender qual ideia e visão estamos a defender. Temos uma ideia reduzida de cultura como forma de lazer e entretenimento, ou mesmo como grau de avaliação de civilidade, que muitas vezes se revela acrítica e controladora, em composição com as definições culturais que dimensionam a cultura em torno de um campo amplo e democrático, diverso e contextualizado, ao qualificá-la como processo de existir, de criar, da expressão dos modos de viver, sentir, fazer, construir ou sonhar.

A cultura é essencial para o desenvolvimento social e conceituá-la torna-se fundamental, exige o mergulho em diversas áreas do conhecimento e nos vários recortes temporais e políticos, no Brasil e no mundo. Abarcam-se possibilidades múltiplas de entendimento e relação com o termo, caracterizando um universo de possibilidades, teóricos e vertentes, que devem ser exploradas na busca de um sentido que seja pleno para a defesa que se deseja fazer. A cultura cria e desenha identidades, contornos que evidenciam os seres humanos sobre a vida e o existir (SILVA et al, 2017).

Thompson (2000) ressalta duas vertentes de concepções da cultura: descritivas e simbólicas. A primeira desvela algo sobre as crenças, valores, práticas de um povo, sociedade e época. A outra se debruça sobre os fenômenos da vida humana, comportamento, espírito e ações. O autor cita que não é possível uma existência desvinculada da cultura, uma existe e acontece na outra, com simultaneidade (THOMPSON, 2000).

Durand (2001) aponta que ao longo do tempo a cultura também se dinamiza, enriquece-se e se diversifica, afinal os processos de trocas e transmissões aumentam o repertório humano, ampliam as sensibilidades e o universo do fazer, das aprendizagens e das transformações.

62 Para apresentar uma perspectiva diferente e pós-moderna acerca da definição e das abrangências da cultura, recorre-se a Bauman (2012), que defende o uso do termo cultura a partir de sua complexidade, que pode ser considerada como conceito, estrutura e práxis. Bauman (2012) relata três conjuntos de conceitos relacionados à cultura: hierárquico, diferencial e genérico. O hierárquico dialoga com a postura cultural da atitude civilizatória, que era usada como justificativa para o colonialismo e a exploração dos povos, como se uma cultura fosse superior a outra, um caráter de medida avaliativa (BAUMAN 2012). O diferencial promove uma reflexão que, para Bauman (2012) diferencia a espécie humana de outras e distingue grupos culturais uns dos outros, uma teia de relações complexa que gera fragmentação e isolamento. O terceiro conceito dialoga mais com o que o autor defende, como conceitos genéricos que expressam a cultura como atividade humana de forma vasta, os arranjos e rearranjos das ações, compondo material que está em constante transformação (BAUMAN, 2012).

Já em uma dimensão mais ampla, socialmente inserida, cultura como estrutura, para Bauman, consiste no fato de que “estrutura é uma rede de comunicação no seio de um conjunto de elementos ou ainda o conjunto de regras de transformação de um grupo de elementos inter-relacionados e de suas próprias relações” BAUMAN, 2012, p. 185). Em outra categoria de análise, o autor pensa a cultura como práxis, isto é, como aquilo que se relaciona aos modos de vida e ações no mundo, aos significados e criações que os sujeitos desvelam no ato de existir; nessa categoria, a cultura é a aplicabilidade dos acontecimentos cotidianos, criativos, concretos (BAUMAN, 2012).

No cenário atual de liquidez3, Bauman (2013) ressalva que as definições se fazem importantes tanto para concretizar subjetividades, quanto para solidificar ações, como por exemplo, na formulação das políticas. Definir cultura na era do consumo pode ser um desafio, mas não tentar entendê-la e/ou desvelar e preservar suas manifestações pode representar um descaso com a potência dessa dimensão humana, que representa, em diversas escalas, certa resistência ao ato do consumir/comprar/descartar imediatamente. Culturas são muitas! São vastas são as significações e simbologias desse campo ao longo dos tempos e recortes históricos, porém deve haver esforço para a constituição de uma fundamentação, que esboce a conceituação de referência para um povo, território, comunidade ou sociedade, com fatores singulares e próprios, para que sejam solidificadas

3 Em seus trabalhos Zygmunt Bauman ressalta conceitos como a Modernidade Líquida, que se traduz em como as ações e relações humanas perdem facilmente as formas, são intensamente fluidas e tem seus formatos dinamicamente modificados seguindo a rapidez da lógica de vida atual (2012).

63 ações e reflexões a partir desse marco. Temos, por exemplo, que “uma política cultural que defina seu universo a partir do pressuposto de que ‘cultura é tudo’ não consegue traduzir a amplitude deste discurso em mecanismos eficazes que viabilizem sua prática” (BOTELHO, 2001, p. 75).

Nesse sentido, a cultura também pode ser compreendida como objeto amplo de estudo, pesquisa e ação, como direito essencial humano, sendo indissociável da diversidade que expressa a vida em todas as suas dimensões e transformações dinâmicas. Portanto, ao pensar sobre essas conceituações, desvela-se uma necessidade de compor com referências e terminologias que fundamentem nossos aportes teórico-práticos de maneira crítica e consciente, sabendo que mesmo no âmbito das conceituações o plural existe e nada é imutável.

No cenário atual, a cultura, como produção humana e importante dimensão da vida, tem sido distorcida perante lógicas enrijecidas da sociedade capitalista, o que reforça a necessidade de buscar reflexões, objetivando construções sensíveis que dialoguem na perspectiva da luta pela diversidade. Portanto uma visão hegemônica da história e das definições dessas dimensões pode ser perigosa. Tentar definir ou categorizar pessoas, grupos e/ou criar versões para cada formato de existência pode fragmentar as identidades culturais.

Para Canclini (2003), no intercâmbio mundial de bens e produções culturais há uma assimetria das relações que se tornam dominantes e descolam-se do conceito de plural. As produções em cultura são tão vastas quanto a existência humana. Porém Canclini (2003) ressalta que o reconhecimento se dá apenas para alguns setores, países e corporações, poucos detém o controle sobre produção, circulação e consumo, que desestabilizam a relação democrática e revelam um cenário no qual existe a tentativa de imposição de um discurso único que vise a valorização do capital em detrimento do cultural.

A contemporaneidade nos traz elementos para uma reflexão aprofundada, que parte do pressuposto dos novos modos de vida e de relações que estão se constituindo. O cidadão contemporâneo tende a estar sempre em busca de algo sempre inacessível e suas responsabilidades tornam-se mais individualizadas: o que poderia ser solidário e colaborativo acontece, ao invés, na disputa e na competição (BAUMAN 2012). Diante do processo da liquidez, no qual tudo é provisório, instável e tão líquido que escorre ou se desfaz, perde as formas e se fragmenta perante as metamorfoses do contexto social-

64 capital (BAUMAN 2012), eis a cultura como nosso pilar mais humano. É culturalmente que se firma nosso nó de resistência.

Considerando o cenário nacional, entende-se que pensar o campo cultural é uma ação necessária e porosa, já que as dimensões da cultura se implicam e estão implicadas em aspectos diversos da constituição das sociedades e das relações humanas. O Plano Nacional de Cultura entende que “a cultura é um eixo do desenvolvimento e possibilita que os brasileiros avancem, cultural e economicamente – com justiça social, igualdade de oportunidades, consciência ambiental e convivência com a diversidade” (BRASIL, 2013, p. 9).

As dimensões da cultura, de acordo com o Ministério da Cultura, podem ser traduzidas e incorporadas em três grandes eixos: dimensão simbólica, cidadã e econômica. A dimensão simbólica acontece no cotidiano de criação e expressão de símbolos, estando relacionada com os seres humanos em suas individualidades e coletividades. “Tais símbolos se expressam em práticas culturais diversas, como nossos dogmas, costumes, culinária, modos de vestir, crenças, criações tecnológicas e arquitetônicas, e também nas linguagens artísticas [...]” (BRASIL, 2013, p. 16). A cultura como um direito essencial, básico, humano, que, expresso na constituição, deve ser colocado em prática:

Assim, os direitos culturais devem ser garantidos com políticas que ampliem o acesso aos meios de produção, difusão e fruição dos bens e serviços de cultura. Também devem ser ampliados os mecanismos de participação social, formação, relação da cultura com a educação e promoção da livre expressão e salvaguarda do patrimônio e da memória cultural (BRASIL, 2013, p. 17) Como vetor econômico, a cultura se revela possibilidade de desenvolvimento, mesmo mercadológico, porém conservando reflexões e práticas que divergem da lógica exploratória acrítica. “É por meio dessa dimensão que também se pode pensar o lugar da cultura no novo cenário de desenvolvimento econômico socialmente justo e sustentável” (BRASIL, 2013, p. 18).

O direito à cultura e à diversidade cultural se coloca como disparador teórico- prático para trabalhos que apoiam e dinamizem tal discussão, fomentando aspectos como respeito e liberdade cultural, universalidade das oportunidades e do acesso em meio a uma sociedade plural, porém que conserva hábitos homogeneizantes, individualistas e hegemônicos.

65 ...temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades (SANTOS, 2003, p. 56).

Santos (2003) aponta para uma característica da sociedade atual que apoiada, nas construções ideológicas do capitalismo, do colonialismo e do patriarcado, desvaloriza a diversidade, centralizando e fomentando ideais de padrões e modelos que tendem a homogeneizar para categorizar e mensurar. A cultura, em todas as suas dimensões, estaria submetida a esse sistema hegemônico dominante. Os modos de vida interligados à cultura, desde a produção das expressões simbólicas, estão ameaçados por um discurso que desintegra.

As perspectivas que seguem na competição neoliberal da contemporaneidade escancaram as relações de poder das estruturas dominantes, principalmente políticas e econômicas, que no encontro com o campo cultural reverberam de forma trágica, produzindo padronizações e uma cultura como produto, consumo e pasteurizada. O campo cultural, distorcido a partir da lógica capitalista neoliberal, reforça as diferenças quando eficazes para produzir e categorizar povos, invalidando a potência do que é diverso como emancipatório.

Segue a importância da reflexão sobre a racionalidade neoliberal dominante instaurada nas estruturas e relações de forma ampla, para que possamos tomar consciência e nos posicionar de forma crítica, em defesa do diverso, do diferente, pela valorização da vida.

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Sala de Sustentação II