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Cuti (Ourinhos, 1951 ): a cor e o corpo na escrita.

Poeta, contista, dramaturgo e ensaísta, Cuti, pseudônimo de Luiz Silva, e um dos fundadores do Quilombhoje e dos Cadernos Negros, é hoje um dos pilares da literatura negra brasileira, com uma obra expressiva tanto na criação quanto na crítica literária.

Se o marxismo inspirou Solano Trindade e o catolicismo, Oswaldo de Camargo, Cuti, a exemplo de outros poetas surgidos no i nal dos anos 1970 e início dos anos 1980, faz parte de uma geração desiludida com as ideologias redentoras. Não é mais tempo de espera, como diria a canção de Geraldo Vandré (“Vem vamos em-

bora, que esperar não é fazer...”), mas de indignação e do protesto,

que constituem uma forma de conhecimento bem como uma arma

para desmontar a exclusão e o preconceito. Insistindo que a consciência dos negros deve despertar para seus próprios valores, a voz do poeta é uma voz coletiva e ele se dirige especi- i camente para os “seus”, pressupondo ao longo de toda a sua obra o “leitor negro”, i gura e intenção ausente do conjunto da literatura brasileira.

Pode-se dizer que a obra de Cuti é atravessada pelas marcas da negrura e do “enfrentamento da questão racial” entre eu-nós negros x eles (brancos). Dessa forma, segundo Maria Nazareth S. Fonseca, “o escritor explicita os graves conl itos com que se deparam os afrodescendentes e os preconceitos que insistem em ressaltar no corpo negro os detalhes de uma diferença que faz da cor da pele, do tipo de cabelo, do desenho dos lábios e do nariz atributos de rejeição que a sociedade legitima”; logo este “corpo em diferença [afronta] as imagens [do] preconceito, restaurando com o ferro em brasa da exclusão as marcas produzidas (...) desde a escravidão” que se tornam verdadeiras armadilhas psicológicas para o sujeito (FONSECA, 2011:16), como se lê no poema “Ferro”:

Primeiro o ferro marca a violência nas costas

Depois o ferro alisa vergonha nos cabelos Na verdade o que se precisa

é jogar o ferro fora é quebrar todos os elos

ou ainda nas situações de violência – policial, social, histórica – internalizadas e que pesam, particularmente, sobre o homem negro:

às vezes sou o policial que me suspeito me peço documentos

e mesmo de posse deles me prendo e me dou porrada

às vezes sou o porteiro

não me deixando entrar em  mim  mesmo a não ser

pela porta de serviço (...)

um dia fui abolição que me lancei de supetão no espanto

depois um imperador deposto a república de conchavos no coração

e em seguida uma constituição que me promulgo a cada instante17

A cor e o corpo negros são temas recorrentes na obra de Cuti; mais do que a voz, eles têm uma signii cação em si, funcionam como símbolos e dei nem a particularidade de uma enunciação e a própria identidade do sujeito. Do contrário, como reconheceríamos um(a) negro(a) se não for por seus traços físicos, traços dos quais é impossível se desfazer? Sabemos que um homem, com alguma engenhosidade pode se “disfarçar” de mulher, e vice-versa, exemplo que já nos deu a literatura brasileira na obra Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, com o perso- nagem Diadorim, encarnado numa minissérie de TV pela atriz Bruna Lombardi. Um poema de Cuti nos fala da cor e da pele ostentada, onde o orgulho se mancha da ironia e denúncia de uma libertação que não promoveu a igualdade:

Minha bandeira minha pele 

Não me cabe hastear-me em dias de parada  após um século da hipócrita liberdade vigiada 

minha bandeira minha pele  Não vou enrolar-me, contudo 

e num canto  acobertar-me de versos  Minha bandeira minha pele (...)18

Dentre os escritores negros contemporâneos, Cuti também se distingue pela formação aca- dêmica e experiência crítica: em seu doutorado na Unicamp examinou em perspectiva com- parada a obra de Lima Barreto e de Cruz e Sousa; mais recentemente, conforme já estudado anteriormente, Cuti também tem se voltado para a consolidação – teórica e crítica - do campo da literatura negra brasileira. No poema “Tradição”, o poeta registra, portanto, sua ai liação literária às vozes negras que considera como marcos de uma tradição ininterrupta na literatu- ra brasileira, de Machado de Assis (um voz mais “escondida”) à vertente ultracontemporânea do “rap” (observe o jogo com a palavra “a-rap-iado” em lugar de “arrepiado”):

Sob a vasta bigodeira de machado os lábios da raça escondidos acho a lâmina do riso e o discreto escracho

em cruz i co muito à vontade para reunir setas de revolta

angústia e cravos

ensaio o arrombamento de portas com pé-de-cabra

que me empresta com o deboche de sua risada

o gama

com o lima ai o as facas entro na trama

solano eu abraço no boi bumbado socialistado

num salto a-rap-iado chego junto com os mano

nossa vida muito tato e tutano19

Pensando no seu peri l e no contexto de sua atuação docente, uma obra de Cuti, na qual se dispôs a fazer “crítica social” bastante útil e, ao mesmo tempo, intrigante. Trata-se de Moreni-

nho, Neguinho, Pretinho, publicado em 2009 na “Coleção Percepções da Diferença – Negros e

Brancos na Escola”20. O autor faz uma rel exão acerca dos nomes presentes no título e as for- mas como o racismo se manifesta por baixo desses apelidos depreciativos, que se substituem ao verdadeiro nome e acabam por reforçar a baixa autoestima das crianças negras. Focando o ambiente escolar, o ensaísta-poeta nos diz :

No campo educacional, desfazer noções de intolerância, que ao longo dos anos foram introjetadas na mente das crianças, é a grande missão do professor. Qual- quer conteúdo didático do currículo não supera a importância da ação de corrigir o rumo dos alunos. Professor é, sobretudo, professor de vida.

Entretanto, surge a pergunta: como se pode ensinar o que não se sabe? Quando um professor, ele mesmo, costuma chamar ou referir-se a seus alunos empregan- do expressões como “moreninho”, “neguinho”, “pretinho”, ou outras variantes, é possível que ele exija um comportamento diferente de seus alunos? Serenamente, a resposta é: não! Superar seus próprios limites e dii culdades de relacionamento (e chamar alguém pela cor da pele ou traços étnicos é uma dii culdade, se não for uma doença) e fazer desse propósito evolutivo um constante aprendizado são o caminho dos que se pretendem felizes, e o professor, pela responsabilidade formadora que tem, não pode i car alheio a esse propósito. À sua volta, centenas de crianças estão aguardando as indicações que as municiem não apenas de co- nhecimento técnico, mas, sobretudo, humano, para seguirem em frente ousando sonhar. Evidentemente, o relacionamento entre elas é mediado pelo professor dentro da sala de aula.

(...)

Daí que, ao reconhecer o aluno pelo nome, o professor dá mostras de não apenas ter boa memória, mas, sobretudo, de ter espírito elevado, mais ainda se souber, além de guardar os nomes, decorá-los com bons adjetivos.

Decorar é também colorir, enfeitar. E quando se trata de nome, o resultado é um sorriso que desabrocha no rosto de alguém que se sente valorizado e reconhecido. (p. 43 e 45)

Da poesia aos contos, dos ensaios ao teatro, gênero raramente praticado pelos escritores negros, passando rapidamente pela literatura infanto-juvenil (A pelada peluda da bola, 1988), Cuti destaca-se hoje como autor de uma obra variada sob muitos aspectos, talvez a mais abun- dante dentre os escritores negros contemporâneos.

Assim como Oswaldo de Camargo, Cuti mantém igualmente um site no qual disponibiliza vários textos presentes em suas diversas obras, entrevistas, pesquisas, etc (ver referências).

Referências

CUTI. Moreninho, Neguinho, Pretinho. São Paulo : Terceira Margem, 2009 (Coleção Percep- ções da Diferença – Negros e Brancos na Escola). Disponível em: www.usp.br/neinb/wp-con- tent/uploads/NEINB-USP-VOL-3.pdf (acesso em 01/12/2014)

FONSECA, Maria Nazareth Soares. “Cuti”. In: Literatura e Afrodescendência: antologia crí- tica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, vol. 3, pp. 11-29.

Portal Literafro. Disponível em: www.letras.ufmg.br/literafro/ (acesso em 01/12/2014)

Webgrafi a

Site do escritor. Disponível em: www.cuti.com.br (acesso 01/12/2014)

Vídeos

Presença do escritor Cuti na Bienal do Livro de São Paulo, 2010. Disponível em :