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CAPÍTULO 2: Leituras e leitores espanhóis de Murilo

1. Entre os “mestres do passado” e do presente

1.3. Dámaso Alonso

O primeiro contato entre Murilo e Dámaso Alonso data de 10 de outubro de 1958, de acordo com a dedicatória a um exemplar de Antología crítica (1956) que

164 “Apuntes para una autobiografía” In Prosa. Edição de Alejandro Duque Amusco. Madri: Espasa Calpe, 1998, p. 330.

165

Poesía superrealista. Antología. Barcelona: Barral, 1971, p. 7. 166

“Cinco preguntas en cinco minutos” In Prosa. Op. cit., p. 292. 167 Idem, ibidem, p. 399.

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registra “la compañía poética y la amistad naciente - y esperemos que larga”.169

Entre encontros e desencontros em Madri e Roma, os dois poetas mantiveram uma pequena correspondência de 19 de março de 1959 a 19 de setembro de 1969.170 Ao

relembrar um deles, na parte “Madri” de Espaço espanhol – aliás, dedicado à Dámaso e Guillén como “Grandes de Espanha” – deixou traços peculiares do amigo: “Os óculos dançam-lhe no rosto; quase descem até o queixo; a cabeça não pára. Tem eletricidade até no bigode.” (PCP, 1131).

Na biblioteca de Murilo, avulta mais o crítico do que o poeta, pois foi como crítico que Dámaso afirmou-se em sua geração: 7 volumes contra um exemplar de Hijos de la ira, na segunda edição de 1946. Antes dessa coletânea decisiva, publicara Poemas puros. Poemillas de la ciudad (1921), El viento y el verso (1925) e Oscura noticia (1944).

Denominando-o de “crítico-poeta”, Murilo não deixou em segundo plano a poesia: “(...) A mole da sua obra crítica parece ter obscurecido diante do leitor estrangeiro a do poeta. Mas na Espanha até mesmo os novíssimos admiram seus livros de poesia, inseridos na grande geração de 1927; resultantes da fértil aliança entre tradição e modernidade ‘fluyendo como la leche la ubre caliente de una gran vaca amarilla’” (PCP, 1131). Este é o 3o verso do poema inicial de Hijos de la ira, “Insomnio”, que começa de forma impactante: “Madrid es una ciudad de más de un millón de cadáveres.” Em texto da década de 60, “Poesia espanhola e realidade”, também realça a importância do Dámaso poeta, cujo Hijos de la ira abria um “novo capítulo na história da poesia espanhola”:

Contudo em certos períodos abre-se um parêntese nessa grande tradição humanístico-realista. Por exemplo a poesia espanhola deste século sofreu durante muito tempo as vicissitudes provenientes dum estreito formalismo cujo representante mais ilustre foi Juan Ramón Jimenez. O processo de desenvolvimento dessa fórmula tinha chegado ao seu ponto extremo de saturação quando Dámaso Alonso publica em 1944 o livro Hijos de la Ira, justificando anos mais tarde sua nova posição com estas palavras: ‘Não há nada que eu aborreça mais agora do que o estéril esteticismo em que se debateu durante mais de meio-século a arte contemporânea.

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V. Anexos, Dedicatórias autógrafas em livros.

170 V. Anexos, Correspondência de João Cabral de Melo Neto e Murilo Mendes com escritores espanhóis.

Hoje só me interessa o coração do homem. Chegar a ele segundo as oportunidades, seja por caminhos de beleza, seja por meio de arranhões.” (PCP, 1471)

Murilo retirou o desabafo de Dámaso do texto “Una generación poética (1920- 1936)”, de seu exemplar de Poetas españoles contemporáneos, concordando com o poeta espanhol a respeito dos impasses do formalismo em poesia.

Dámaso também se ocupou da poesia do amigo brasileiro. Na abertura do primeiro número da Revista de Cultura Brasileña, de junho de 1962, publicou sua tradução de “Poemas de Murilo Mendes”. Sua nota preliminar171, após situá-lo na

literatura brasileira, parte para a mundial, na qual participa do “grande movimento que descobre o valor poético do subconsciente, dos sonhos e dos impulsos primários, representados antes de tudo pelo ‘surréalisme’ francés”. No entanto, da mesma forma como analisou a poesia de Aleixandre, não vê em Murilo um “‘seguidor’ de uma moda”. Caracteriza a poesia dele como uma “oscilação entre elementos conceituais ligados por lógica e elementos puramente imaginativos”. Como exemplo da primeira tendência oferece Tempo e eternidade, do qual, aliás, não escolheu nenhum poema para sua seleção. Quanto aos “elementos puramente imaginativos”, pólo predominante da obra muriliana, não são de mero “amontoamento”, pois os “fragmentos que parecem inconexos se associam para produzir a intuição total do poema na mente do leitor”. Desde a “Poética” que escreveu para Poesía española. Antología 1915-1931, organizada por Gerardo Diego, defendia certa organização do poema que destoava dos princípios do surrealismo: “(...) Resuelve en palabras los elementos de su profunda conciencia, elimina los menos significativos, los enlaza por medio de un número mayor o menor de elementos lógicos y no poéticos... (El automatismo no ha sido practicado ni aun por sus mismos definidores).”172

Baseado na edição de Poemas 1925-1955 173, mencionada na nota

preliminar, selecionou 10 textos, aparte 2 de Tempo espanhol, apresentando não apenas um panorama, mas também sugerindo um percurso poético. Os seis primeiros, ou seja, a metade deles, de obras escritas entre 1930 e 1942, são mais

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V. Anexos.

172 Edição fac-simil de 2002. Madri: Visor Libros, 2002, p. 219. 173

Na biblioteca de Dámaso Alonso (Real Academia Española – Madri) não consta esse livro, apenas a tradução italiana de Giuseppe Ungaretti de Finestra del caos (1961). V. Anexos, Dedicatórias autógrafas em livros.

discursivos, de versos longos, o que indica uma preferência do próprio Dámaso, na medida em que passou a praticar versos dilatados e imagens fortes em Hijos de la ira, distante da contenção dos Poemas puros. Poemillas de la ciudad. O longo “Jandira” de O visionário, por exemplo, teria chamado a atenção de um Dámaso que experimentou também a linguagem coloquial e a técnica narrativa em Hijos de la ira. Além disso, não resistiu a um convulso “Poema barroco”, de Mundo enigma, já que o qualificativo relaciona-se com seus numerosos estudos do século XVII. Os seis poemas restantes, de obras produzidas entre 1943 a 1959, apontam para um processo de concisão da linguagem.