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IV. E MERGIR COMO UMA C OMUNIDADE

IV.4 D ESAFIO (C ONJUNTO ) F INAL

A 14 de Junho, já muito próximo do final das aulas, chegou finalmente o momento do desafio final. Alguns alunos ainda se lembravam disto porque lhe havia sido dito aquando da apresentação geral do trabalho em que se iriam envolver. Ficaram muito entusiasmados e, relembrados os parâmetros segundo os quais o jogo iria ser avaliado, foi-lhes indicado que aqui teriam liberdade total para se organizarem como entendessem melhor e que todo o processo ficava a seu cargo; lançaram-se ao trabalho.

Nesta ocasião, a professora assumiu quase exclusivamente o papel de investigadora e limitou-se a observar e ir tirando notas. Numa sala de aula bem dirigida não importa onde está o professor porque os alunos devem estar motivadas e auto-dirigirem-se. Claro que de início isto é muito estranho para professor e alunos. Daí que em algumas ocasiões os alunos tenham continuado a recorrer à professora para tirar dúvidas, sobretudo, relacionadas com a formulação das questões para o jogo (como formular a questão x em mímica, desenho, …); ou quando já tinham terminado a sua tarefa e não sabiam o que fazer.

A professora aconselhava sempre a irem auxiliar os outros que ainda não tinham concluído as regras, ou a pintura do jogo, ou ajudar a passar os cartões a limpo. A propósito desta ultima acção, alguns alunos a princípio não acharam boa ideia, pois alguns não têm a letra bonita e legível mas, face ao pouco tempo de que dispunham para o trabalho, acabaram por se envolver.

É um trabalho e um modo de estar que requer tempo para que não seja necessário um adulto impor ordem na sala de aula e para que os alunos aprendam a recorrer cada vez mais uns aos outros em vez de sempre ao professor. Esta sensibilidade está patente no comentário da Beatriz: Temos de pedir ajuda aos colegas e não muita à professora.

Os alunos são aprendentes naturais e são rápidos a expressar opiniões, oferecer sugestões e revelam grande entusiasmo e motivação quando se lhes dá espaço criativo para os seus projectos. Assim, o trabalho começou com uma reunião de turma, sentados no chão e outros em cadeiras, frente a frente mais ou menos em círculo. Espontaneamente, a Beatriz,

a Jacinta e a Maria assumiram a liderança e começaram por pedir ideias aos colegas. Começaram por tomar notas de quem era bom no quê:

Daniela: Quem desenha bem?

Tomás lembra: Também tem de haver alguém para os cartões! Eduardo: Então ficam dois a desenhar.

Filipe relembra: Não se esqueçam que nós somos 20! Jacinta diz: Temos de fazer grupos de 6!

Os alunos fizeram grupos especializados, segundo as perícias de cada um, revelando um bom conhecimento mútuo e uma clara identificação de identidades que se foram delineando e construindo ao longo do trabalho.

Outro aspecto patente, foi a preocupação em usar uma variedade de acções que concorressem para o propósito comum e que incluíssem todos no trabalho, naquilo que cada um tinha de melhor para oferecer.

Patente foi também a preocupação da tomada de decisões ser conjunta e negociada e sempre que tal tendia a não acontecer, os alunos reclamavam e exigiam negociação e tomada conjunta de decisões de modo a que tudo decorresse da forma mais justa possível para todos. Discutiram o número de elementos de cada grupo. A cada grupo foi atribuída uma tarefa.

O jogo imaginado pelos alunos foi uma espécie de Trivial Pursuit em que cada cartão continha quatro modalidades: desenho, mímica, 4 pistas e pergunta. Ora, colocar assuntos científicos em mímica e em desenho, por exemplo, requer grande imaginação (um dos três modos de pertencer de uma comunidade), atenção na formulação das questões para serem exequíveis nestas modalidades.

O título para o jogo foi negociado e discutido em turma tendo sido eleita por maioria a designação de Química e FísicoMania.

Para elaborar as questões para o jogo, os alunos não segmentaram a matéria pelos grandes temas de pesquisa (classificação dos materiais, separação de misturas e transformações químicas e físicas). Antes preferiram identificar os vários temas de pesquisa

de cada grupo, juntá-los e sorteá-los pelos grupos, assumindo que todos teriam conhecimento de tudo e todos dominariam todos os conteúdos científicos abordados uma vez que tinham sido discutidos em turma e lidos por todos. Além disso já havia ocorrido um teste de avaliação para o qual todos tiveram de estudar todos os assuntos.

A estratégia da maioria dos grupos que elaboravam as questões foi mais uma vez dividir as tarefas e atribuir um cartão para fazer a cada elemento. Ao serem questionados quanto a isto e ao facto de assim ser mais difícil ajudarem-se uns aos outros, os alunos responderam que assim era mais rápido. Todavia, terminou primeiro o grupo que pensou e elaborou as questões em conjunto! Em grupo, analisaram os cartões feitos por cada um, para verificarem se as perguntas estavam bem formuladas e eram viáveis.

Apesar do entusiasmo e da visível mobilização geral, existiu um conjunto de alunos que permaneceu calado e pouco interveniente na planificação do jogo: António, Carolina, Helena, Lúcia. Alguns não por desconhecimento das matérias, mas porque naturalmente são mais reservados.

Porém, em trabalho colaborativo não é necessário a participação de toda a gente a todo o momento. Este foi o culminar de todo o trabalho desenvolvido ao longo de quase três meses e foi a ocasião que esteve mais próxima do trabalho colaborativo visto se terem registado indícios de tal, tais como: assunção inicial de tarefas e responsabilidades que, ao longo do jogo, foram variando um pouco em função das circunstâncias emergentes e dos prazos para conclusão do mesmo. Outros traços emergentes foram o diálogo, a negociação e a variabilidade de participação.

Os conflitos e a negociação foram evidentes nos diálogos dos alunos:

Eduardo queixa-se: A Beatriz é surda e não ouve ninguém!

Tomás: Porque é que não decidimos todos em conjunto em vez de estares tu (Beatriz) a decidir tudo! Jacinta: Então, vocês não dizem nada!

Beatriz: Queres tirar à sorte?

Tomás: É que há pessoas que podem não estar de acordo! (a sugestão para formar os grupos acaba por ser tirar à sorte)

Maria relembra que se ficarem pessoas juntas que não se dão bem, não conseguirão acabar o jogo. Beatriz: Está bem!.. então quem é que quer pintar o jogo?

(agora já seria o critério das relações interpessoais)

Eduardo diz que isso é mau: Os grupos deviam ser aleatórios. Vocês fazem grupinhos e depois os outros ficam de fora

Beatriz: Ok! Então tiramos à sorte os grupos para fazerem tabuleiro, cartões, desenhar, fazer as regras.

Outros comentários a este respeito emergiram nas reflexões diárias dos alunos, ao escreverem sobre aquilo que tinham achado mais difícil na concepção do jogo:

- A conversação em grupo para discutir as tarefas de cada um. Fazer as questões sobre os temas [Augusto,14 Jun] - Trabalhar num grupo grande onde há pessoas que não se interessam pelo trabalho é difícil [Jacinta, 14 Jun.] - O organizar os alunos da turma para o jogo que vamos fazer [Isabel, 14 Jun.]

- Organizar os grupos para cada tema. Cada um achava que devia ser como ele dizia e ninguém se entendia. [Jacinta, 14 Jun.]

- Foi organizar as tarefas por grupos [Ana, 14 Jun.]

- Acho que foi um comportamento mau da parte de alguns dos meus colegas que decidiam tudo e quando alguém chamou atenção nesse aspecto eles diziam que nós é que não dávamos ideias! [Lúcia, 14 Jun.]

A parte do desenho do tabuleiro de jogo e elaboração dos cartões acabou por ficar por grupos de especialidade e a redacção das perguntas para os cartões foi feita por grupos sorteados. As regras (v. anexo L) foram elaboradas por um pequeno grupo que depois as apresentou e discutiu com a turma.

Mais tarde, e porque o tempo escasseava, todos ajudaram a pintar o jogo e a fazer os cartões. Formaram-se 5 grupos de 3 elementos cada para fazer 3 cartões completos cada grupo (os 6 cartões por grupo inicialmente previstos pela turma iriam requerer tempo de que não se dispunha, como referiu a Jacinta). O que perfez 15 cartões e 60 perguntas.

Para alguns alunos o entendimento destes conflitos e tensões foi entendido como uma oportunidade para melhorar, repensar atitudes. Tal como a consciência de que só com envolvimento mútuo e a colaboração de todos conseguiriam concluir a tempo a actividade em relação à qual manifestavam consideração.

Estes aspectos foram formulados nos seguintes termos quanto àquilo que haviam aprendido ou que desejavam comentar diariamente:

- Fazer um jogo é complicado, em três aulas ainda pior, mas com a ajuda de todos conseguimos [Augusto 14 Jun]

- Para trabalhar em grupo é preciso reunir as ideias de todos [Lúcia, 14 Jun.] - Trabalhar em grupo é uma forma de chegar a uma conclusão [Isabel, 14 Jun.] - É bom trabalhar em grupo [Lúcia, 16 Jun.]

- Nunca me dei muito bem com o Eduardo mas a trabalhar no desenhar do jogo começamos a entender-nos melhor [Luísa, 16 Jun.]

- Acho que quando for para fazer grupos devemos tirar à sorte, porque podemos tirar com pessoas que não se dão muito bem connosco e pode ser que nos comecemos a dar melhor [Luísa, 16 Jun.]

Mais uma vez, a questão o tempo continuava a ser uma preocupação para os alunos:

- Temos de nos despachar com o trabalho [Tomás, 16 Jun.] - Acabar o trabalho a tempo [Lúcia, 16 Jun.]

O aspecto da qualidade científica do trabalho também não foi descurado e era importante para muitos revelando consideração para com o empreendimento comum que era, para além de concluir a tarefa a tempo, conclui-la com qualidade, e fazer com que pudesse ser realmente jogada e espelhasse aquilo que se tinha aprendido. Isto está patente em comentários quanto ao que tinham considerado mais difícil na actividade:

- Encontrar algumas perguntas para os cartões [Nicolau, 16 Jun.] - Foi fazer perguntas para o jogo [António, 16 Jun.]

- Conseguir trabalhar porque alguns grupos andavam de um lado para o outro [Beatriz, 16 Jun] - Encontrar questões para os colegas conseguirem perceber, para progredir no nosso jogo [Isabel., 16 Jun.]

Para elaborarem as questões, e porque estavam numa sala com mais espaço mas sem Internet, os alunos lembraram-se de imprimir o blog da turma (reportório partilhado), reconhecendo a historia da sua prática nos seus artefactos (blog com os seus conteúdos e sua organização), acções e linguagem.

Puderam e conseguiram fazer uso dessa história porque fizeram parte dela e ela fazia parte deles agora (historia pessoal de participação). Como identidade isto traduz-se num

conjunto pessoal de acontecimentos, referências, memórias e experiências que cria relações individuais de negociabilidade da prática [WENGER, 1998].

Os alunos dividiram os temas dos post pelos grupos (que já não são os de origem). A cada grupo de cartões correspondiam 3 assuntos (questões investigadas). Isto leva-nos a pensar que não existem vários grupos na turma porque não permanecem os grupos de origem. Tiraram sempre à sorte para evitar mais conflitos.

A turma pareceu-se mais com um grupo que tem um core: Jacinta, Beatriz, Maria, Eduardo, Nicolau, Tomás e uma vasta periferia em que muitos (mais tímidos) parecem ficar “esmagados” pelo ritmo e facilidade e liderança de outros. É nítida esta separação. Porém, os movimentos na periferia que parecem ser de diversa naturezas (v. secção IV.2.1).

No final das duas aulas concedidas para a elaboração do jogo e perante o desejo dos alunos em testarem o jogo, ficou decidido que este seria jogado, pela turma, na primeira aula de Química do 8º ano.