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D IFERENÇA E MEDIC ALIZAÇÃO COMO POLÍTICA PÚBLICA ?

Como uma tendência contemporânea para uma racionalização biomédica da vida subjetiva se desdobra e se reflete no plano de políticas e programas governamentais nas áreas de saúde mental e gênero?25 O contexto das políticas de saúde mental no Brasil hoje é o da Reforma Psiquiátrica, levada a cabo a partir de um amplo programa de “desinstitucionalização” dos pacientes, que busca romper com

o modelo manicomial.26 Esses programas governamentais

propõem também a criação de uma ampla e disseminada rede pública de atendimento ambulatorial e clínico, tanto nas unidades básicas de atenção à saúde já existentes, quanto na criação de outros espaços como os CAPS (Centros de Atendimento Psicossocial), espaços mais especializados, destinados aos chamados casos considerados pelos profissionais como de “maior complexidade” ou a alguns transtornos específicos, como adição a álcool ou drogas (os CAPS-ad).

É também necessário reconhecer que política pública não é apenas o documento público institucional, como os planos nacional, estaduais e municipais de saúde mental ou de saúde da mulher e os diversos programas terapêuticos, mas também tudo aquilo que os profissionais e agentes de saúde que atuam no atendimento básico à saúde fazem no cotidiano de seu trabalho, sobretudo no que diz respeito à relação com os

pacientes e “usuários”27 desses serviços. Nesse sentido, para analisar as políticas públicas, foi feita, durante a pesquisa, uma leitura atenta dos diversos planos e políticas de saúde mental, em nível nacional, estadual e municipal, assim como de alguns programas terapêuticos de unidades básicas de saúde, para chegar finalmente às práticas e discursos dos profissionais e agentes sociais que lidam cotidianamente e diretamente com as pessoas denominadas “usuárias” do sistema e dos serviços públicos de saúde.28

No que diz respeito às políticas públicas e governamentais em relação a saúde mental, as mulheres são mencionadas a partir do que seriam suas situações de “vulnerabilidade”, ligadas à noção de “ciclo de vida”, conforme veremos adiante. As Diretrizes Nacionais de Saúde Mental de 1977 definiam, entre outras coisas, a necessidade de ações de prevenção primária “visando os grupos de maior risco: gestantes, mães, adolescentes e geriátricos, no intuito de reduzir, nesta população [...] o surgimento de alterações e a promoção [sic] de níveis de saúde mental satisfatórios” (apud Cardoso, 1999:36). As mesmas Diretrizes previam a “formação de grupos de mães e gestantes” (Cardoso, 1999:37), definindo os seguintes objetivos:

No caso das gestantes, a finalidade é conscientizar a futura mãe do processo vivenciado, desfazendo fantasias, reduzindo ansiedade e orientando-a nos cuidados necessários para o desenvolvimento satisfatório do concepto.[...] promover o adequado relacionamento mãe-filho, evitando a conhecida ´síndrome de privação’

e ensejando o bom relacionamento físico, mental e emocional da criança. (Brasil, Ministério da Saúde. Diretrizes Programáticas de Saúde Mental. In:

Conferência Nacional de Saúde,6. Brasília, 1977, apud

Cardoso, 1999, p. 37)

No caso específico das políticas de saúde voltadas para as mulheres, a quase totalidade dessas políticas, (expressa por exemplo no Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher – PAISM, de 1984) é ocupada com as questões de saúde reprodutiva e prevenção. Como veremos adiante, esse quadro não mudou substancialmente, e foi apenas muito recentemente, após a II Conferência Nacional de Políticas para Mulheres, em 2007, que a necessidade de uma política de saúde mental também na perspectiva de gênero começou a ser discutida. O II Plano Nacional de Políticas para Mulheres, aprovado a partir da II Conferência, prevê, entre as prioridades em relação ao item “Saúde das mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos”:

Promover a implantação de um modelo de atenção à saúde mental das mulheres na perspectiva de gênero, considerando as especificidades étnico-raciais. (Brasil, Secretaria Especial de Políticas para Mulheres. II Plano

Nacional de Políticas para Mulheres. Brasília, 2007, p.15)

E entre as metas para o período:

Implantar cinco experiências-piloto, uma por região, de um modelo de atenção à saúde mental das mulheres na perspectiva de gênero. (Idem, p.16)

No mesmo item sobre saúde do documento, reforça-se a ênfase aos “direitos reprodutivos” e à noção de “ciclo vital” e de “ciclo de vida” das mulheres, definido pelas diversas fases de seu ciclo biológico, como mulheres no “climatério”, “jovens e adolescentes”.

A “depressão pós-parto” tem aparecido de forma mais detalhada nas preocupações do Ministério da Saúde. É citada em diversos documentos do Ministério. O Manual Técnico sobre pré-natal e puerpério, de 2006, dedica um item inteiro aos “Aspectos emocionais da gravidez e do puerpério”, introduzido da seguinte maneira:

as condutas baseadas somente nos aspectos físicos não são suficientes. Elas necessitam ser potencializadas, especialmente pela compreensão dos processos psicológicos que permeiam o período grávido- puerperal, notadamente, no caso de gestantes adolescentes que, pelas especificidades psicossociais da etapa evolutiva, vivenciam sobrecarga emocional trazida pela gravidez. (Brasil, Ministério da Saúde. Manual

Técnico. Pré-natal e puerpério. Atenção qualificada e humanizada. Brasília, 2006, p.35)

Definindo uma série de procedimentos na relação do médico ou profissional com a paciente, o documento também descreve o que seriam reações ou sintomas “típicos” para cada etapa da gravidez, culminando com os sintomas do puerpério. O documento também cita a redução dos casos de depressão pós-parto como um dos efeitos de uma política de

“acolhimento” da mulher nas unidades de saúde e principalmente na aceitação de um acompanhante de sua escolha (idem, p. 15).

A necessidade de uma política de saúde mental numa perspectiva de gênero foi também objeto de uma reunião no Ministério da Saúde, em que foram levantados diversos aspectos de uma política específica voltada para as mulheres.29 Na dimensão local da aplicação das políticas públicas, as especificidades e cada contexto evidenciam um quadro bastante heterogêneo. No caso dos programas terapêuticos de algumas unidades básicas de saúde e principalmente nas práticas dos profissionais que ali atuam, percebemos em primeiro lugar, em muitos casos, um desconhecimento dos planos de saúde mental tanto nacionais quanto estaduais, assim como dos planos

de saúde das mulheres.30 Em segundo lugar, há uma

heterogeneidade muito grande nas práticas de atendimento, que vão da distribuição de medicamentos psicotrópicos à implantação de outras formas de tratamento ou apoio, como grupos terapêuticos, grupos de idosos, grupos de mulheres em tratamento de depressão e outros transtornos, passando por aulas de alongamento e ginástica, acupuntura, homeopatia, fitoterapia e arteterapia entre outros. Mas, mesmo constatando que as práticas não são homogêneas, não se pode negar o peso que a distribuição generalizada de medicamentos como benzodiazepínicos e antidepressivos tem hoje no atendimento público (não apenas nos CAPS, especializados em saúde mental

ou psicossocial, mas também e sobretudo nas unidades básicas de saúde). Temos muitos exemplos da pesquisa de campo realizada, relatados tanto por pacientes quanto por profissionais que atuam nessas unidades, além dos números relativos à distribuição e consumo desses medicamentos, em que salta aos olhos o fato de que a maioria esmagadora de consumidores desses medicamentos na rede pública são mulheres31. Esses dados nos fazem questionar: apesar de não haver uma política explícita e consolidada de gênero de saúde mental nos programas oficiais, percebe-se que na aplicação da política de saúde, no cotidiano das unidades de saúde e dos Centros de Atendimento Psicossocial, uma política da diferença e a evidência de um discurso da diferença de gênero se faz presente; na prática há uma política sendo implantada ou reproduzida, uma política que implica na medicalização e medicamentalização de mulheres usuárias do serviço público. A pesquisa feita nos documentos governamentais e junto aos agentes e profissionais de atenção básica à saúde nos apontou para alguns pontos que consideramos importantes na discussão de uma política sobre gênero e saúde mental, sobretudo no que diz respeito ao atendimento básico e público, entre eles: 1) a necessidade de se fazer um balanço crítico de algumas práticas institucionais que acabam reforçando a desigualdade de gênero; 2) a constatação de uma realidade de hipermedicalização e hipermedicamentalização das mulheres com o uso de psicofármacos; 3) a confusão entre

democratização e universalização do acesso à saúde e a distribuição massificada de medicamentos, o que implicaria em repensar o atendimento básico em saúde mental em relação à necessidade de uma política terapêutica (e psicoterapêutica) menos medicamentosa, ou seja; 4) necessidade de uma política de saúde mental que ofereça outros tratamentos além da medicamentalização, como acompanhamento terapêutico sistemático, entre outros; 5) a necessidade de se repensar os modelos de cuidado, saúde, doença, sofrimento e cura também nas políticas oficiais de saúde da mulher e de saúde mental; 6) a ruptura com um modelo de saúde da mulher assentado na visão biologicista do “ciclo de vida” e das fases da vida reprodutiva das mulheres como determinantes de maior ou menos “vulnerabilidade” destas a problemas de saúde mental. Além destes pontos especificamente voltados à questão de gênero e saúde mental, é preciso uma reflexão sobre o processo de desinstitucionalização dos pacientes internos trazido pela Reforma Psiquiátrica e o que parece ser o seu contraponto no plano da política pública, a crescente medicamentalização e patologização dos pacientes na atenção básica.

Essas questões se evidenciam não apenas pela leitura das políticas governamentais ou pelas falas dos profissionais de saúde. É sobretudo através do confronto entre os discursos das políticas de governo em torno de saúde mental e de saúde da mulher, as plataformas políticas dos movimentos sociais e as experiências sociais de mulheres de camadas populares em

seus cotidianos que somos levadas a questionar sobre o que seria então essa “perspectiva de gênero” vista como necessária nas políticas de saúde mental. O que constatamos é que, nos diferentes discursos - de quem elabora as políticas públicas, da indústria farmacêutica e dos próprios movimentos (como veremos a seguir) - a perspectiva de gênero se reduz à definição do que seriam especificidades femininas quanto à aflição e ao sofrimento, especificidades em geral ligadas à noção de “ciclo de vida” biológico, que remeteria a uma maior “vulnerabilidade” das mulheres em situações como adolescência, gravidez, pós-parto e menopausa, prevalecendo um modelo físicalista e de racionalização médica da diferença de gênero. Um argumento a ser desenvolvido é de que uma perspectiva crítica de gênero nas políticas de saúde da mulher (incluindo saúde mental) deveria ter o sentido exatamente inverso ao constatado: deveria ter como objetivo rever as práticas que reforçam concepções reificadoras e reprodutoras da diferença sexual. Isso implicaria não apenas em mudanças no texto dos planos governamentais, mas também na formação dos profissionais de saúde e no questionamento dos próprios paradigmas do discurso e dos saberes biomédicos, historicamente comprometidos com a reprodução da diferença e da desigualdade.