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D ISCUSSÃO SOBRE AS NO RMAS

No documento Inscrições urbanas: abordagem semiótica (páginas 68-73)

2 N ORMAS E V ALORES

2.1 D ISCUSSÃO SOBRE AS NO RMAS

Embora a relação entre normas e valores tenha sido retirada da sociologia de R. K. Merton (1970), Klinkenberg (2008, 2010) adota parcialmente essa tipologia social, pois somente os conceitos de ritualização e inovação entram no modelo de endogênese e exogênese. Assim, os outros tipos sociais serão considerados para estabelecer uma comparação entre as estruturas normativas.

Como descrita anteriormente, a tipologia apresenta um movimento de maior ou menor presença de normas e valores na formação de determinado tipo social, mas ao pensar nos três tipos desconsiderados por Klinkenberg (2008, 2010), rebelião, retirada e conformidade; observa-se uma possível inadequação em ambas as propostas. Rebelião e retirada propõem uma mudança tanto de valores, quanto de normas, o que faz pensar em dois tipos de valores e normas: norma vigente e norma inovadora, valor vigente e valor inovador. Antes de aceitar essa duplicação, verifica-se que as escolhas de Klinkenberg (2008, 2010) parecem simplificar os processos.

Considerando somente a inovação, a ritualização e a conformidade na formação dos tipos sociais de Merton, a rebelião e a retirada poderiam ser vistas como um recrudescimento da inovação e da conformidade, pois se o valor corresponde aos objetivos sociais de determinado grupo ou indivíduo e as normas estabelecem um modo de alcance desses objetivos, a rebelião seria caracterizada pela falta de representação normativa e seu objetivo seria mudar essas normas para que elas estejam conformes aos seus valores ao invés de uma total anulação de normas e valores. Já a retirada estabeleceria uma conformidade entre valores e normas, inadequados à prática social vigente, cujo efeito de sentido seria seu abandono. A inadequação representada pela rebelião e retirada não está nos valores, mas, sim, nas normas.

Desse modo, sob o viés das normas endógenas e exógenas (KLINKENBERG, 2008, 2010), os valores da rebelião estariam em desacordo com as normas exógenas e esse tipo social promoveria a criação de normas endógenas que substituiriam as normas exógenas. Do mesmo modo, os valores da retirada excluiriam as normas exógenas e seriam instituídas normas endógenas em conformidade com novos valores. A diferença entre os dois tipos sociais estaria na direção tomada para dentro ou para

fora de um padrão social, pois enquanto a rebelião visa a ser a norma vigente, igualmente àquela que foi substituída, a retirada cria suas próprias regras em um mundo à parte, sem pretensões de tornar-se um modelo.

Além da rebelião e da retirada, a conformidade é outro tipo desconsiderado pelo linguista belga. A exclusão da rebelião é facilmente entendida se ela for considerada uma inovação assim como a retirada, mas ambas estariam ligadas à conformidade. Pelo desenvolvimento da investigação, a conformidade seria mais pertinente para explicar esses dois tipos sociais, pois a inovação teria como fim a conformidade. Ressalta-se que Klinkenberg estabeleceu um modelo sobre o desvio e, portanto, a conformidade não teria lugar destacado, entretanto, ao definir as normas endógenas como “o uso corrente admitido como corrente” (KLINKENBERG, 2008, p. 3), sua validade, ainda assim, teria relevância.

Com isso, as normas endógenas ganham maior pertinência por conciliar os dois métodos de descrição, um uso corrente (norma objetiva) tomado como corrente (norma avaliativa). Além disso, a endogênese promove a inovação das normas em relação aos valores e fixa um equilíbrio entre eles, já que ela surge da instabilidade entre normas e valores para efetivar-se na formação de novas normas, por causa da urgência dos valores. Essa adequação conduziria à conformidade. Vistas desse modo, as normas endógenas seriam o resultado de um processo cujos constituintes seriam a inovação e a conformidade.

Já a ritualização estaria ligada às normas, pois os valores do grupo seriam controlados ou abafados para evitar o “desconforto” inicial que toda inadequação traz, ou seja, na tensão entre normas e valores, as primeiras sobrepõem-se às segundas. De todas as formas, nota-se a ausência de uma visão estática desses processos normativos, até mesmo a conformidade seria entendida como um momento de estabilidade tênue.

Essa tensão é gerada também pela maior dinamicidade dos valores em relação às normas, que tendem a ser modalizadas pelo dever e precisam manter certa estabilidade para a promoção de sua recursividade, ao passo que os valores tendem a adequar-se às modalidades volitivas, mais instáveis, e não precisam ater-se

obrigatoriamente a nenhuma norma específica21. Logo, considera-se que o regime dos

valores repercute no regime normativo por meio de um aumento no grau de sua intensidade. Segundo a proposta a seguir, ritualização, inovação e conformidade pertenceriam a níveis do processo de formação das normas endógenas e exógenas.

Nesses termos, a conformidade, relativa às normas endógenas, ocultaria uma tensão interna entre contínua mudança de valores e estabilidade normativa. Isso ocorreria dentro de uma faixa de controle, quer dizer, as normas não estariam conformes a todos os valores, mas, sim, aos que estruturassem a identidade do grupo social ou da variação linguística por sua alta intensidade, cuja autenticação seria dada pelo grau de recursividade. A partir do momento que houvesse um aumento no conjunto de valores fixados fora dessa faixa de controle, seria detectada uma anomalia, cuja inadequação aumentaria pela repetição da norma, ocasionando maior desgaste na sua capacidade identitária. Duas possibilidades seriam previstas nessa situação: a autorregulação, por meio de uma inovação, ou a compensação normativa, geradora da ritualização. No primeiro caso, retorna-se à fase inicial de conformidade, no segundo, um aumento de intensidade das normas impediria a expansão desses novos valores até o ponto de serem seguidas por inércia, prescrição ou imposição, criando uma conformidade instável.

Uma gradação é observada em cada fase descrita, mais ou menos exprimiriam as quantidades necessárias para a formação das fases. Da conformidade para a inovação é necessário um aumento nos valores consolidados fora do regime normativo, da conformidade para a ritualização, um aumento nas normas concomitante a uma diminuição nos valores; da ritualização para a inovação, é necessária uma retomada nos valores. Aumentos e diminuições mostram o jogo de tensões característico das relações entre normas exógenas e endógenas, para isso, é necessário recorrer à teoria que reflita apropriadamente sobre essas formulações.

É a semiótica tensiva, cuja maior reflexão se encontra na obra de Claude Zilberberg, que fornecerá os parâmetros para o desenvolvimento de um modelo normativo, pelo qual serão estudadas as conservações e mudanças ocorridas na história das inscrições urbanas. A formulação de uma estrutura normativa não está

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21 Lembrando que o estudo das normas trata das inscrições urbanas, originadas na segunda

metade do século XX. Em outros períodos históricos as relações entre normas e valores talvez sejam diferentes.

bem definida nos textos de Merton (1970) e Klinkenberg (2008, 2010), principalmente, no que se refere ao conceito de valor. Ambos os autores concentraram-se em delinear as relações entre os termos, sem aprofundar suas características processuais, contudo, suas propostas deixam balizas para o desenvolvimento dessas estruturas. Nessa perspectiva, os estudos sobre valor e processos tensivos de significação ganham pertinência.

2.2 VALOR

O conceito utilizado na sociologia não tem abrangência metodológica, se for transposto estritamente para a teoria da significação. Embora Klinkenberg (2008, 2010) o utilize inicialmente tal qual está na obra de Merton, parece que ao longo de seus textos o conceito é tomado mais como princípio, assim, dos objetivos sociais almejados pelo grupo, fica a ideia de direção, cujo conteúdo se aproxima da teoria da linguagem.

Esse sentido, intrínseco a todo valor, pode ser estruturado anteriormente aos juízos sociais. Os mecanismos de formação do valor são produtores da rede de valor social, ou seja, há um esquema anterior ao uso. A moralização é resultado dessa estrutura e não o contrário, pois o bom, o belo e o justo são respostas ao sistema de valores estabelecido internamente. Dessa forma, o modelo recebe um caráter mais abstrato, pois visa chegar às funções do sistema.

Fontanille e Zilberberg (2001) propõem que o valor seja uma função constituída por dois funtivos22 – as valências –, cujas dimensões, extensidade e

intensidade, estão relacionadas respectivamente ao inteligível e ao sensível. Cada dimensão é formada por subdimensões, temporalidade e espacialidade, na dimensão extensiva e, andamento e tonicidade, na dimensão intensiva; que, por sua vez, são formadas por operadores tensivos. Várias possibilidades operativas decorrem da intersecção dessas subdimensões, por exemplo, breve/longo, na temporalidade; aberto

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22 À dependência que satisfaz as condições de análise chamaremos função. [...] Aos terminais

de uma função chamaremos funtivos, entendendo por funtivo um objeto que estabelece função com outros objetos (Hjelmslev, 1971, p.55).

e fechado, na espacialidade; tônico e átono, na tonicidade e rapidez e lentidão, no andamento. Pensando em cada dimensão sob a forma de vários pontos que integram um eixo gradativo, no qual suas extremidades apontam direções operativas (subdimensões), o valor é produzido na junção de um ponto extensivo com um ponto intensivo. Essas relações geram não somente um modelo para a criação do valor, mas também para uma rede de categorias como a ubiquidade, o acontecimento, a profundidade e o ritmo (ZILBERBERG, 2010, p. 4).

Dentro dessa perspectiva, os regimes participativo e exclusivo destacam-se na elaboração da estrutura tensiva do valor, pois estabelecem conjunções, “e... e”, ou disjunções, “ou... ou”, entre as valências. Na conjunção, as valências são convergentes, menos pede cada vez menos e mais pede cada vez mais, e na disjunção, elas possuem uma relação inversa, menos pede mais e mais pede menos. A partir dos dois regimes, as operações triagem e mistura, situadas no eixo extenso, ligam-se à intensidade formando valores de absoluto e valores de universo.

Não é difícil compreender os conceitos mencionados, visto que a denominação terminológica parece definir-se claramente. O regime de triagem é determinado por seu caráter selecionador, ou seja, aquilo que se reduz rumo à unidade pertence a esse regime. Como no exemplo bíblico que deu origem ao ditado “separar o joio do trigo”. Nessa parábola, Jesus pede aos ceifeiros uma triagem “Ajuntai primeiro o joio e atai-o em feixes para queimá-lo, mas recolhei o trigo no meu celeiro” (BÍBLIA. MATEUS, 13: 24-30). Para que o trigo seja estocado, é necessário triar a erva do cereal. O regime de mistura, inverso ao de triagem, mescla os valores rumo à pluralidade. Como no famoso discurso de Martin Luther King Jr “Eu tenho um sonho de que um dia, nas rubras colinas da Geórgia, os filhos de antigos escravos e os filhos de antigos donos de escravos possam se sentar juntos à mesa como irmãos” (LUTHER KING JR., 1963, p. 4, tradução própria)23. Nesse discurso, o ativista estadunidense almeja a convivência

inter-racial pacífica, ou seja, a mistura sem conflitos entre as raças.

Cada regime possui graus de intensidade, tônico ou átono. Em um regime de mistura, a intensidade baixa (átona) formaria valores da diversidade e a intensidade alta (tônica) resultaria na universalidade, por sua vez, a triagem átona seria relacionada a valores da totalidade, ao passo que a triagem tônica levaria à unidade

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23 I have a dream that one day on the red hills of Georgia, the sons of former slaves and the sons of former

(FONTANILLE e ZILBERBERG, 2001, p. 33). Em uma representação gráfica pelo plano cartesiano, a triagem e a mistura estariam situadas no eixo das abscissas (extensidade), enquanto que suas respectivas intensidades estariam no eixo das ordenadas.

Esquema 1 – Gráfico Tensivo

Estabelecidas as primeiras bases tensivas, buscam-se os valores relacionados às inscrições urbanas. A história das inscrições urbanas descrita no capítulo 1 fornece os elementos necessários para explorar a constituição desses valores através da aplicação do modelo tensivo.

No documento Inscrições urbanas: abordagem semiótica (páginas 68-73)