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Perfis dos sujeitos estudados: a construção dos modos de participação nas culturas do escrito

3.1.3 D Rosa Maria: contatos tardios com a escrita

A casa de D. Rosa Maria159 está localizada no núcleo mais distante da igreja. A sala de estar possui uma mesa de jantar, um jogo de sofá, uma estante AH# = L * 1 1 % AP ! J E HI \ : " 2 . # 4 C 'k;8E0 D < = ; :% MA ! +. . < . = 3 C ] C11VVV . 1 1E#4-1 :1E HI ^ A%@ * & = O , I1 1 : I1 I1 P 1 1 % " + ! /

com enfeites diversos e uma mesa de canto com uma televisão e um calendário pendurado na parede. D. Rosa tem 68 anos, é viúva e destaca-se como rezadeira e benzedeira e é ainda muito procurada para benzer na comunidade. Nasceu em Lagoa Grande e se mudou junto com os pais para Barra do Dengoso quando tinha oito anos em função de conflitos por terra, conforme informado no capítulo 1 desta tese. Informou que ela e seus irmãos não estudaram quando crianças, também os pais não frequentaram escola ou aprenderam a ler e escrever. Assim como as outras entrevistadas, não se lembra de brincadeiras ou diversões na infância, apenas dos afazeres cotidianos e do trabalho na roça.

Relatou que aos oito anos já era considerada uma boa torradeira de farinha e que precisava subir em pedaços de madeira, bancos ou pedras para conseguir mexer a massa na “pedra” do forno. A diversão de que se lembrou estava relacionada a trabalhos em que se reunia um grupo maior de pessoas para fazer farinha, rapadura ou mesmo fazer uma roça. Isso porque a rotina era rompida devido ao maior número de pessoas envolvidas nessas atividades, geralmente, vizinhos próximos ou comadres que se juntavam e sempre surgia alguém para contar casos e histórias divertidos que distraíam o grupo durante o trabalho árduo. Na sequência, lembrou-se de festas de santo, novenas e terços para santos de devoção que representavam uma opção para se divertir. Principalmente, quando essas rezas terminavam com “batuque” e café com quitandas. Nessas rezas, D. Rosa era conhecida por saber dançar, equilibrando pote ou garrafa com água na cabeça.

Casou-se muito nova, aos quinze anos, e teve doze filhos. Começou a estudar quando já estava casada, mas foi uma experiência curta, durou aproximadamente dois meses, e acabou desistindo por causa de filhos pequenos e do cansaço da lida cotidiana. Aprendeu a escrever o nome, o nome dos filhos, dos pais e do esposo e treinava para não esquecer, mas não aprendeu a ler. Nessa mesma época, o esposo também iniciou os estudos, permaneceu na turma ao longo de um ano, aprendeu a ler e escrever e fazia anotações de compra e venda referentes a uma pequena venda que possuíam e de controle das lavouras que cultivava, principalmente, a de algodão. Todos os filhos estudaram, mas apenas a filha mais nova concluiu o ensino médio.

As rezas e benzeções que sabe foram aprendidas desde a infância com o pai que era um benzedor de destaque na região e durante a participação em

celebrações realizadas em sua própria casa e em casa de conhecidos principalmente durante a quaresma. Informou que frequenta a igreja da comunidade apenas em algumas situações festivas, como missas e nas festas do Divino Espírito Santo e do padroeiro São Benedito. De fato, só a vi em uma celebração festiva em 2006. Possui um amplo repertório de orações, cantos/benditos memorizados e é sempre convidada para rezar junto com D. Justiniana, sua comadre e grande parceira, segundo informou. Disse que atualmente tem perdido a memória e que se esqueceu de diversas rezas que sabia160.

Não se lembrou de ter visto livro ou catecismo na casa de seus pais, que não sabiam ler, e as orações eram ensinadas oralmente e memorizadas, com maior ou menor rapidez pelos filhos. Os escritos de que se lembra de ter visto na comunidade em sua infância e juventude eram catecismos que via nas mãos de poucos rezadores e rezadeiras e, há algum tempo, os folhetos do culto dominical. Disse que nunca comprou livros ou catecismos, mesmo quando foi ao santuário de Bom Jesus da Lapa. Lembra-se de que os padres mandavam comprar “uns livrinho”, mas informou nunca ter comprado. Dessas romarias o que mais a marcou foram algumas dificuldades vividas com filhos pequenos e as orações e cantos rezados durante a longa viagem.

Em relação aos documentos que possui e como os organiza e guarda, informou que a certidão de nascimento foi feita para se casar, aos quinze anos. Após o casamento, o esposo a levou até Janaúba e providenciou todos os documentos: carteira de identidade, CPF, título de eleitor. Aposentou-se aos 55 anos, como trabalhadora rural e, mais tarde, quando o esposo morreu passou a receber, também, uma pensão. Enquanto falávamos sobre documentos, ela saiu da sala e foi até o quarto de onde trouxe uma caixa de papel repleta de papéis diversos (notas e recibos de compra, recibos bancários referentes a recebimento do benefício) e um envelope com documentos (carteira de identidade, CPF e título eleitoral, cartão de vacina, cartão de inscrição no sindicato de produtores rurais). Disse que raramente recebia uma carta, pois “num tinha precisão de carta nem de

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bilhetes... eram recados de boca mesmo”161. Depois que ganhou um celular, há uns dois anos, passou a resolver tudo por telefone: notícias de filhos, netos e recados.

Embora tenha uma relação difícil com a escrita – disse não gostar de mexer com livros, tem apenas um catecismo, Porta do Céu, que disse nunca ter lido – ela realiza diversas operações que envolvem lidar com diferentes materiais escritos. Informou que, desde a década de 1970, fazia empréstimo para custear o plantio de lavouras de algodão, milho e feijão. Negociava diretamente com o gerente do banco, assinava contratos, sacava dinheiro, fazia pagamentos de insumos, depositava dinheiro e controlava despesas, sem fazer anotações. Valia-se da boa memória e conferia tudo com o esposo que dominava os cálculos e fazia as anotações para controle.

Continua a lidar com banco tanto para receber o dinheiro da aposentadoria quanto para fazer pequenos empréstimos. Disse que não vai à cidade sozinha, atualmente, tem sempre a companhia da filha porque tem havido muito assalto a idosos. Informou que fazia o saque sozinha, diretamente no caixa, mas agora que tem as máquinas (caixas eletrônicos), entrega cartão e senha para funcionários do banco realizem as operações de que necessita. Afirmou que se confunde “com tanto número e letra... pra num errar a senha na hora de digitar eu passo tudo pras moça que trabalha lá [no banco]”162.

Foi possível observar três eventos em que estava presente: uma missa em 2006, uma vigília da semana santa e um velório, ambos em 2008. Durante a missa, a participação foi discreta, acompanhando cantos e orações em momentos de resposta coletiva. Nas outras ocasiões, foi esperada pelos donos da casa e por D. Justiniana para iniciar as rezas. O lugar que ocupou foi de uma segunda voz nas orações rezadas junto com D. Justiniana. Não pegou nos livros oferecidos ou dispostos sobre os altares ou mesas de canto e não demonstrou interesse por eles. Acompanhava todas as orações e cantos, mas não ocupou o lugar de solista ou portou-se como dirigente.

Ironizou as rezadeiras que só rezam com um livro nas mãos e diz “já pensou se a luz acaba? ((risos))”163. Mostrou-se orgulhosa do repertório que possui

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e que lhe permite rezar em qualquer lugar e em qualquer situação. Afirmou que gostaria de saber ler para não depender dos outros, principalmente quando vai à cidade. No entanto, não se sente estimulada a voltar a estudar porque as aulas para adultos acontecem à noite na igreja, muito distante de sua casa. A limitação física, o insucesso nas primeiras tentativas de estudar, a presença de alguém que resolva para ela as questões que envolvem saber ler e/ou escrever (inicialmente o esposo, atualmente, filhos solteiros, principalmente uma filha, que ainda moram com ela) e a sensação de que “já não dá mais... passei da idade pra escola... num quero quebrar minha cabeça com estudo não”, são os principais motivos apresentados por ela para não ter participado das experiências de escolarização realizadas na comunidade. Durante a segunda entrevista, revelou que quando precisa saber ou resolver algo que envolve escrita, manda a filha ajudar porque, segundo ela, “podia saber ler e resolver tudo mas cês num me deixaram estudar... eu podia saber ler também... num é... agora cês têm de me ajudar”164. Nesse caso, refere-se ao fato de ter desistido de estudar nas duas oportunidades que teve porque tinha vários filhos pequenos o que dificultava a ida para a escola.

3.1.4 Maria do Carmo: um caso de escolarização longeva influenciada pela