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DA ANOTAÇÃO À ESCRITA COLETIVA NA ORALIDADE

2 TRAJETÓRIAS E DESLOCAMENTOS QUE CONSTITUÍRAM UM CAMPO

4.2 DA ANOTAÇÃO À ESCRITA COLETIVA NA ORALIDADE

Havia completado um ano que os encontros da GAM eram realizados semanalmente e o grupo de pesquisa passou a se ocupar de temas relativos ao fechamento do campo, à data de finalização da pesquisa, avaliações do processo da pesquisa, decisões sobre a inclusão na tese dos nomes dos participantes como pesquisadores voluntários, à privacidade e sigilo quanto à notação dos nomes nos diálogos escritos na tese, ao nome ou termo pelo o qual designar as pessoas participantes nos textos e artigos e à continuidade do grupo da GAM após o final da pesquisa. Isso era em março, a tese ainda estava sendo escrita e, então, foi decidido também que, no final do ano, iríamos voltar a nos reunir para discutir o seu texto.

Nesse processo de fechamento, que durou um mês, foram usados, como material de apoio, os diários dos encontros do grupo de pesquisa ordenados por data, impressos e reunidos numa única encadernação.

Na primeira vez que trouxe esse caderno ao grupo, os participantes o olharam e folhearam-no com grande admiração em ver que ali estavam escritas coisas preciosas que foram

67 ditas e anotadas a cada dia de encontro. Um usuário disse que aquilo era um livro. O grupo então discutiu a proposta de fazer um projeto de um livro com as ideias e experiências ali escritas para que outras pessoas pudessem ler. Um signo disparava o acontecimento: um livro e seus autores se engendravam simultaneamente na singularidade de um instante, na individuação3 de um momento animado pela admiração em perceber que aquele livro continha todo um ano de trabalho coletivo e se reconhecer como autores desse trabalho. Um acontecimento de autonomia coletiva, de expansão de autonomia em conexão no espaço do grupo e no tempo da duração de uma longa experiência. Um acontecimento que, de maneira extremamente condensada, disparava um sentido desta própria tese, pelo menos algumas linhas desta, que faziam expandir a noção de normatividade para uma dimensão que ultrapassava a relação dual indivíduo e meio, pelo engendramento de territórios existenciais, outros sujeitos e objetos - autores e obra - antes inexistentes. Morria um campo de pesquisa, nasciam outros projetos.

Essa noção de que os ditos e escritos da pesquisa têm autor, de que não constituem um conhecimento geral e objetivo, mas acontece em pontos de vista e é singular, embora descrita no arcabouço da aposta metodológica, retorna aqui na escritura da tese, e, portanto, nos convida a rever uma trajetória do procedimento da produção dos diários. Desde o início e durante todo o processo, embora fosse uma ideia em construção, os participantes eram sempre convidados a ocuparem lugar na produção da pesquisa e, segundo a vontade de cada um, se reconhecerem pesquisadores desta. Assim, no momento do fechamento do campo, quando os participantes

3 Individuação no sentido de hecceidade, coexistência instantânea de dimensões heterogêneas, como dimensão emergente, acontecimental, sem forma. “O princípio informal de individuação é a intensidade: [...] uma individualidade única que não se confunde com a do sujeito. Que é a individualidade de um dia, de uma estação ou de um acontecimento?” (ZOURABICHVILI, 2016, p.142) “A hecceidade comporta uma passagem, uma mudança. A intensidade só vem no entre-dois, uma hora implica sempre a mudança de duas horas. A hecceidade está ligada a uma mudança atmosférica ou no espírito” (ZOURABICHVILI, 2016, p. 143) “O Intempestivo, outro nome para hecceidade... ‘O que não é histórico se parece com uma atmosfera ambiente, onde só a vida pode engendrar-se, para desaparecer de novo com o aniquilamento dessa atmosfera.”. (DELEUZE; GUATTARI 2012, p. 100)

68 puseram em evidência o “livro” da sua experiência na duração da pesquisa, a construção da ideia de pesquisador-participante tornou-se ainda mais clara para todos nós.

Revendo o procedimento, alguém poderia perguntar: por que o procedimento não foi descrito quando da discussão do método? Porque, neste caso, o procedimento foi resultado, por isso, quando agora damos tratamento ao processo resultante é que ele vem à tona. Os encontros poderiam ter sido gravados e transcritos, mas não: foram anotados em cadernos. Durante os encontros, o pesquisador acadêmico, além de ser um moderador, fazia anotações das falas dos participantes. Na composição do grupo essa presença do anotador exercia interferências: no início do processo, após os primeiros encontros, alguns vinham conversar para demonstrar uma alegria por ter alguém que escrevesse as coisas ditas e valorizasse o que estava sendo falado. Era como se, assim, aquelas palavras não caíssem no vazio e pudessem ser “colhidas” pelo anotador que, ao reuni-las, dava a elas um corpo, uma permanência.

Essa figura do anotador foi incorporada ao dispositivo. Certa vez cumprimentei o grupo e me sentei num lugar na roda esperando o início, quando um participante me interpelou: onde está o caderno? Disse que estava na minha mochila e o participante, então, pegou a mochila e me entregou para que eu assumisse meu lugar e o grupo pudesse começar. Algumas vezes durante os encontros do grupo, em certos momentos, o falante, por desejar que uma ideia fosse escrita com precisão, ditava com mais vagar para que o anotador o fizesse devidamente. Outras vezes o falante se empolgava dizendo uma ideia complexa muito rapidamente e, então, o anotador pedia que repetisse o trecho, que a ideia pudesse ser dita novamente. Isso mobilizava o grupo a buscar o que havia sido dito, e recuperar as linhas e segmentações do pensamento que circulara no grupo naquele momento, ou, então, uma ideia tendia a escapar e as pessoas tinham que se dedicar a pesca-la de alguma outra forma.

Outras vezes uma frase produzia uma afecção no anotador, seja de admiração, seja de dor, de clareza ou de confusão, e, então, o procedimento de pausar e rever o que tinha sido dito

69 se incorporava à dinâmica dialógica, para se deter e contemplar o narrado. Outras vezes o fluxo narrativo através dos interlocutores seguia com muita fluidez e o anotador simplesmente anotava, e a interferência, nestes momentos, era mais corporal, expressa na rapidez da caneta sobre a superfície da folha do caderno, no menear de cabeça, no rosto, na contração dos lábios, na postura, ou no gesto que respondia ao que era dito e anotado. Outras vezes o anotador simplesmente desistia de anotar, pois o fluxo era intenso demais e não cabia em palavras. A narrativa daquilo devia ficar para depois, pois naquela hora tratava-se largar a caneta e deixar vir, deixar “rolar”.

A anotação, portanto, fazia parte do dispositivo e da experiência coletiva, não era simplesmente um registro, pois interferia no processo e era produzida na individuação do momento – no sentido da hecceidade, do acontecimento. O texto anotado era resultante das falas e afecções produzidas no plano comum, nos locutores e no anotador. Era uma variação no interior do desenho metodológico da pesquisa, o qual, como definimos anteriormente, se orientava na perspectiva da cartografia. Essa variação constituiu, por meio de ressonâncias corporais, sensoriais, afetivas e cognitivas, um texto coletivo escrito na oralidade. Pois bem, trataremos agora de articular aquelas anotações com a escritura da tese de forma que seja uma composição.

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