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1. O TRÁGICO

1.3. Da Antigüidade ao tempo cristão

É na diminuição de significação do mundo, bem como na desgraça de um homem, de uma classe, de uma multidão ou até mesmo do gênero humano em algum período que o trágico realiza-se. Em decorrência disso, o objetivo é determinar as essenciais dissensões que possam haver entre o conceito de trágico na Antigüidade Clássica e nos tempos cristãos.

O trágico, que teve origem na tragédia grega, esquecido em alguns momentos, aventado em outros, torna-se visível no período, melhor dizendo, no momento histórico em que se vive, visto que os cortes, as interrupções, as desgraças, os arrebatamentos amorosos e sentimentais, a expiação do sujeito sem culpa, o aniquilamento, a falta, a limitação humana e social, a ansiedade da purgação ocorrem em todas as épocas e marcam a história da humanidade.

De acordo com M. Baptista Pereira (1991), não é o homem “físico” nem o homem metafísico o sujeito da tragédia, mas o homem histórico. O trágico cristão está localizado na essência, no fundamento da história humana. O arrebatamento da tragédia grega decorre do legado e das relações do indivíduo no mundo que lhe é superior, e não da peculiar individualidade. Na representação é a ação abrangente que se transforma em individual e não a individual que se torna abrangente – a situação modelo faz lembrar e reviver o conhecimento, trazendo o sentimento de pavor e compaixão da situação comum à maior parte dos homens. O cristianismo modifica esse ponto de vista acerca do mundo, concedendo novo destaque ao indivíduo – encontra-se agora um homem distinto, particularizado, com desejos peculiares, autênticos e com natureza particular, introduzido na ação que termina por conduzi- lo a fim trágico. A impossibilidade de encontrar lugar hospitaleiro no mundo e a condenação a ser um eterno errante são matérias da tragédia cristã.

Existe, no mundo cristão, o trágico social: homens destruídos pela autoridade e pela miséria; uma cultura que destrói a si própria. Existe também o trágico individual: homem afligido e aniquilado. O homem se relaciona com o destino num meio condenado pela indiferença, restando a morte e o isolamento espiritual que são as opções do ato heróico. Contudo, as relações entre um trágico e outro podem existir, segundo Raymond Williams:

Se, por um lado, a realidade é fundamentalmente pessoal, então as crises da civilização são análogas a um desajuste ou desastre psíquico ou espiritual. Se a realidade, por um lado, é essencialmente social, então os relacionamentos frustrados, a solidão destrutiva, a perda de razões para viver são sintomas ou reflexos de uma sociedade em desintegração ou decadente. As ideologias em ambos os lados, põem-se sutilmente em ação. As explicações dos outros são meramente uma falsa consciência ou racionalização; a verdade substancial está aqui, ou aqui.” (2002, p.162)

Sabe-se que o conceito grego de trágico apresenta cunho restritamente sublime, sobrenatural, divino. Exclusivamente os deuses ou os heróis – considerados semi- deuses pelos atos corajosos – atuam na tragédia, que se constitui por ações extraídas da mitologia, das lendas, apresentando, assim, caráter com pouca verossimilhança. Mesmo que a noção de trágico, no mundo cristão, presuma a concepção de Divindade, subordinando-lhe o destino da personagem principal – o herói – as personagens são humanas. A mudança das personagens divinas por seres humanos aponta divergência clara entre a concepção do trágico na Antigüidade e nos tempos cristãos.

O trágico grego apresenta marca sublime, superior, elevada. Tal faceta é facultada devido à participação de personagens fantásticas, extraordinárias. Outra questão a considerar é que o trágico da tragédia grega exibe determinismo e fatalismo, exatamente porque o herói está subordinado à autoridade sobrenatural.

Conforme Maria Amanda Borges Matias (1946), em se tratando do determinismo, no trágico grego sobressai o princípio da Fatalidade, e no cristão o da Vontade.

No primeiro, o herói age de maneira cega, arrastando-se fatalmente para o infortúnio. No segundo, as personagens – na maior parte extraídas da vida real – não agem tão iludidas, tão cegamente e já não são, como na tragédia antiga, joguetes do destino.

No trágico grego, o herói é subordinado à Moira, pois não depende dele próprio dar-se bem ou não – já está fadado. A Fatalidade e o Destino conservam-se tão intensamente presentes e invictos que, ao pensar na ordem de valores dos princípios da tragédia, chega-se à idéia de que a Moira, ou seja, o Destino, encontra-se em posição superior aos próprios deuses – abaixo deles, apenas, a vontade do herói. Esse derradeiro princípio da tragédia participa do embate dramático, com o objetivo de fazê-lo grandioso, visto que tal vontade é sempre vencida pela imutabilidade do destino fatal. (MATIAS, 1946)

O Cristianismo, ao defender o livre arbítrio e censurar o fatalismo incondicional, valoriza o homem como dono da vontade e, conseqüentemente, senhor do próprio destino. No trágico antigo, no mundo greco-romano, o homem é herói porque os deuses querem que ele seja, é da vontade deles; já no trágico cristão, no mundo cristão, o homem é herói por desejo, pelas próprias ações, por força da própria vontade.

A Fatalidade está presente no mundo grego e a Vontade no mundo cristão, o que não impede de encontrar a Fatalidade em tempos cristãos, ou que a Vontade figure na antigüidade. Como exemplo da segunda consideração, tem-se o caso de Édipo Rei, de Sófocles – ainda que encontre a Fatalidade como característica fundamental, a Vontade já está presente nessa tragédia e desempenha papel meritório. Édipo decide, por si próprio, consultar o Oráculo para saber do futuro e ao constatar que matará o pai e desposará a mãe, foge daqueles que acredita seus pais.

O Cristianismo, através da concepção da redenção e do livre arbítrio, retira das tragédias clássicas o grande fundamento do trágico: a compreensão do destino humano. O universo trágico é o da ruína, quando o homem passa a viver em desarmonia com os deuses e

com a natureza. No mundo trágico, a história é prescrita pelo Destino, no universo grego, e pela Providência, no universo cristão. Conforme Márcio Zuzuki (2001), Destino e Providência são dois aspectos, duas faces da mesma identidade absoluta.

Um aspecto do trágico cristão é o uso da liberdade que conduz à catástrofe. Os heróis trágicos se encontram diante da exigência de agir ou de se submeter, sendo, justamente, da oposição constante entre as personagens que agem e aquelas que sofrem que surge a emoção trágica. O agir está intrinsecamente unido à vontade que somente em si mesma se manifesta através da liberdade. A personagem que atua é aquela que sofre o resultado da própria ação. Segundo Guy Rachet (1973), é exatamente aqui que se manifesta um novo aspecto do trágico: a paixão. Para esse estudioso, o sofrimento físico e moral ocupa lugar indispensável na criação da emoção trágica. O cristianismo faculta ao homem relevo diferente. O homem é agora notável, específico, individualizado, incorporado na ação que o levará à situação funesta e ruinosa.

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