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DA APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR AOS

A aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) a determinado tipo de contrato depende da existência de uma relação de consumo. Nesse sentido, Cavalieri Filho (2019) explica que se entende como tal “a relação jurídica que tem num dos polos um consumidor e no outro um fornecedor de produtos ou serviços [...].”

Khouri (2021) destrincha a relação de consumo da seguinte maneira:

A relação de consumo vai comportar dois elementos fundamentais: o subjetivo e o teleológico. O subjetivo manifesta-se na qualidade dos partícipes dessa relação. É que necessariamente deverão estar nela envolvidos um fornecedor e um consumidor. Já o elemento teleológico se manifesta no fim da aquisição do bem ou serviço, qual seja, a destinação final. A doutrina fala também na presença de um elemento objetivo, que seria o produto ou serviço. Quando se adquire um produto, em princípio, tem-se um contrato de compra e venda. Quando se adquire um serviço, em princípio, tem-se um contrato de prestação de serviços. Em linhas gerais, esses são os dois contratos com os quais o CDC mais se preocupa, embora se aplique também o CDC aos contratos de seguro, mútuo, locação, permuta etc.

Sendo assim, qualquer espécie de contrato, seja ele de prestação de serviços, de compra e venda ou de locação, por exemplo, pode se submeter ao CDC, se caracterizada a relação de consumo (CAVALIERI FILHO, 2019).

Além disso, tratando-se o Código do Consumidor de lei principiológica, isto é, baseada em princípios e cláusulas gerais, aplica-se a todos os ramos do Direito em que se figuram relações de consumo (CAVALIERI FILHO, 2019).

Salienta-se que o que acontecerá, neste caso, é o diálogo das fontes, em que a lei especial (CDC) e a lei geral (CC) se complementam, conforme amplamente esmiuçado no item 2.2 deste

trabalho quando houve a análise do contrato civil e do contrato de consumo (CAVALIERI FILHO, 2019; TARUCE, 2021).

Observa-se, então, que os sujeitos da relação de consumo são o consumidor e o fornecedor. O conceito de consumidor extrai-se do art. 2º, do CDC, segundo o qual: “consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.” (BRASIL, 1990b).

Apesar da aparente simplicidade da definição, há diversas teorias a respeito da qualificação do consumidor como destinatário final do produto ou serviço. A teoria adotada pelo Código do Consumidor brasileiro é a finalista ou subjetiva, em que predomina a inteligência de que o consumidor deve ser o destinatário final fático e econômico, conforme leciona a doutrinadora Claudia Lima Marques (2010 apud TARTUCE, 2021):

Destinatário final seria aquele destinatário fático e econômico do bem ou serviço, seja ele pessoa jurídica ou física. Logo, segundo essa interpretação teleológica, não basta ser destinatário fático do produto, retirá-lo da cadeia de produção, levá-lo para o escritório ou residência – é necessário ser destinatário econômico do bem, não adquiri-lo para revenda, não adquiri-adquiri-lo para uso profissional, pois o bem seria novamente um instrumento de produção, cujo preço será incluído no preço final do profissional para adquiri-lo. [...] Essa interpretação restringe a figura do consumidor àquele que adquire (utiliza) um produto para uso próprio e de sua família, consumidor seria o não profissional, pois o fim do CDC é tutelar de maneira especial um grupo da sociedade que é mais vulnerável.

Destarte, trata-se a teoria finalista daquela que utiliza o conceito mais restritivo de consumidor, tendo em vista a ideia de atingir exatamente aqueles mais vulneráveis, razão primeira da existência do Código de Defesa do Consumidor, nos termos do seu art. 4º, I (BRASIL, 1990b; MARQUES, 2019).

Por outro lado, há também diversos julgados e outros doutrinadores que defendem a teoria maximalista ou objetiva, que expande a definição de consumidor, entendendo que ele não precisa ser o destinatário econômico do bem, isto é, basta retirá-lo da cadeia de produção, não importando se será utilizado para satisfazer interesses profissionais (SOUZA et al., 2018). A definição de fornecedor, por sua vez, consta no art. 3º do CDC, que assim determina (BRASIL, 1990b):

Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

Da leitura do artigo, percebe-se que o conceito é bastante abrangente, além do que não é exaustivo, mas apenas enunciativo, o que corrobora com o objetivo do CDC, que é o dar a maior amplitude possível à delineação do fornecedor (SOUZA; et al, 2018).

Segundo os ensinamentos de Khouri (2021), o fornecedor do Código do Consumidor iguala-se àquele do direito comparado. Por isso, ele define-o assim:

Fornecedor é aquele que oferece ao mercado, habitualmente, bens e serviços visando ao lucro, que participa da cadeia produtiva, ou pratica alguns atos dentro desta cadeia, seja produzindo diretamente, ou distribuindo, ou simplesmente intermediando o fornecimento de bens e serviços. E, para que assim seja enquadrado, não importa que seja nacional ou estrangeiro, público ou privado, pessoa jurídica regularmente constituída ou não (entes despersonalizados). O que vai importar para o conceito de fornecedor é que ele esteja oferecendo bens e serviços, com habitualidade e profissionalidade, ao mercado.

Isto posto, considerando que a educação é um serviço que pode ser fornecido por particulares (fornecedores/prestadores de serviço), em favor de alunos ou estudantes, seus destinatários finais (consumidores/tomadores do serviço), que o retribuirão pelo pagamento de mensalidades, têm-se que os contratos privados educacionais são relações de consumo, às quais se aplica o Código de Defesa do Consumidor (MARQUES, 2019; TARTUCE, 2021).

Nesse sentido, Pasqualoto e Travincas (2016, v. 106), em artigo publicado na Revista de Direito do Consumidor, atestam que:

A afirmação de que o CDC é aplicável às relações entre os estudantes e os respectivos estabelecimentos de ensino sustenta-se no fato de que a educação, nas instituições privadas, é um serviço prestado mediante contrato. Em outras palavras, o estudante (ou seu representante legal) paga para receber um serviço, tornando-se consumidor, e a IES13, sua fornecedora.

No que concerne às características do contrato privado de educação, reforça-se a

bilateralidade, eis que a instituição de ensino se obriga à prestação do serviço educacional em

troca do pagamento da mensalidade, pelo aluno ou representante legal; bem como a

comutatividade, tendo em vista a existência de prestações equivalentes, com a possibilidade

de compensação, se houver alterações durante a vigência do contrato; e, por último, quanto à duração, classificam-se como de execução continuada, pois a obrigação persiste, mesmo havendo soluções periódicas (PEREIRA, C., 2020; GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2019, p. 481, v. 4; PASQUALOTO; TRAVINCAS, 2016, v. 106).

Outra característica importante é que são contratos de adesão, subordinando-se, portanto, à disciplina do art. 54 do CDC, o que significa que as suas cláusulas são estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor do serviço, sem a participação do consumidor (BRASIL, 1990b).

Além disso, salienta-se que tais contratos são parcialmente regulados por regras de ordem pública, como as de organização curricular, por exemplo. Isso porque a educação pode ser classificada como serviço público impróprio, considerando-se a sua prestação como utilidade pública, mesmo que o fornecedor seja entidade particular (PASQUALOTO; TRAVINCAS, 2016, v. 106).

Nesse sentido, Claudia Marques Lima (2019) enfatiza com maestria que, não se pode olvidar, o objeto do contrato privado educacional, abarca direitos fundamentais, o que coloca o consumidor direto, geralmente criança ou adolescente, em posição especialmente vulnerável. Por esse motivo, a conduta do fornecedor deve ser, mais do que nunca, pautada na boa-fé, havendo nulidade absoluta de quaisquer cláusulas que violem direitos fundamentais ou que exponham o consumidor a ridículo (art. 42 do CDC).

Esclarece-se que o princípio da vulnerabilidade, expresso no art. 4º, I, do CDC, é a espinha dorsal do direito do consumidor, sobre o qual se fundam todas as normas do Código de Consumo, em que se reconhece a necessidade de proteção do consumidor ante a sua vulnerabilidade e, com isso, busca-se estabelecer uma igualdade real entre as partes (CAVALIERI FILHO, 2019).

Diante de todo o exposto, não resta dúvidas quanto à relação de consumo existente entre as instituições privadas de ensino e seus alunos/representantes legais, o que acarreta a aplicação direta do Código de Defesa do Consumidor e de toda a sua principiologia voltada à proteção do consumidor (BACHUR; MENDES, 2016; TARTUCE, 2021).

Além do mais, convém explicitar, conforme brevemente mencionado no item 2.3, que o CDC adotou para a revisão contratual por onerosidade excessiva a teoria da base objetiva do negócio jurídico, do alemão Karl Larenz, em que não é necessário comprovar a imprevisibilidade do fato superveniente, tampouco a vantagem excessiva da outra parte, mas apenas a existência de um desequilíbrio contratual entre prestação e contraprestação, que é a quebra da base objetiva propriamente dita (TARTUCE, 2018, p. 198).

Para ilustrar, reproduz-se o art. 6º, V, do código de consumo, o qual dispõe que é direito básico do consumidor: “a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas” (BRASIL, 1990b, grifo nosso).

Observa-se, com isso, que o CDC, comparativamente ao Código Civil de 2002, estabeleceu requisitos mais brandos à revisão contratual por fato superveniente nas relações de consumo. Isso porque, no primeiro diploma citado, houve uma intensa valorização dos princípios da função social do contrato e da equivalência material, que, somados à vulnerabilidade do consumidor, logicamente, proíbem a onerosidade excessiva e o enriquecimento ilícito (TARTUCE, 2021).

Segundo aponta Flávio Tartuce (2021), “[...] um contrato que acarreta onerosidade excessiva a uma das partes, especialmente tida como vulnerável, não está cumprindo o seu papel sociológico, necessitando de revisão pelo órgão judicante.”

Em complemento, também em outra obra, o renomado doutrinador (2018, p. 198) afirma que a teoria da base objetiva do negócio jurídico foi concebida “diante da tendência de socialização do Direito Privado, pela valorização da dignidade da pessoa humana, pela solidariedade social e pela igualdade material que deve sempre estar presente nos negócios jurídicos em geral”.

Sobre a base objetiva do negócio jurídico, Larenz (1956 apud MELO, 2019, p. 306-307) ensina que:

A base do negócio jurídico perece quando a relação de equivalência entre prestação e contraprestação é abalada de modo significativo, conduzindo ao entendimento de que o cumprimento do contrato na forma estrita do pacto mostra-se um verdadeiro atentado à boa-fé objetiva, à função social do contrato e ao sentido de equidade e equivalência que os contratos devem retratar.

O que importa, então, é somente a alteração, pelo fato superveniente, das circunstâncias em que o contrato foi pactuado, trazendo consequências inesperadas, que ensejam a revisão contratual com o intuito de reestabelecer o equilíbrio contratual. Tal qual estabelece o art. 6º, V, do CDC, pouco interessa se o fato superveniente que causou a modificação é ou não imprevisível. Por isso, não se aplica a teoria da imprevisão (KHOURI, 2021).

Nesse Sentido, o Superior Tribunal de Justiça assim decidiu sobre o tema:

A teoria da base objetiva, que teria sido introduzida em nosso ordenamento pelo art. 6º, inciso V, do Código de Defesa do Consumidor – CDC, difere da teoria da imprevisão por prescindir da previsibilidade de fato que determine oneração excessiva de um dos contratantes. Tem por pressuposto a premissa de que a celebração de um contrato ocorre mediante consideração de determinadas circunstâncias, as quais, se modificadas no curso da relação contratual, determinam, por sua vez, consequências diversas daquelas inicialmente estabelecidas, com repercussão direta no equilíbrio das obrigações pactuadas. Nesse contexto, a intervenção judicial se daria nos casos em

que o contrato fosse atingido por fatos que comprometessem as circunstâncias intrínsecas à formulação do vínculo contratual, ou seja, sua base objetiva. Em

imprevisibilidade, foi acolhida em nosso ordenamento apenas para as relações de consumo, que demandam especial proteção (BRASIL, 2014, grifo nosso).

Portanto, resta claro que a teoria a ser aplicada às revisões contratuais das relações de consumo é a teoria da base objetiva do negócio jurídico, em que os requisitos são mais brandos do que os exigidos na teoria da imprevisão, tendo em vista a desnecessidade de comprovação da imprevisibilidade do fato superveniente que causou a onerosidade excessiva ao contrato.

4 REVISÃO E RESOLUÇÃO DOS CONTRATOS DE PRESTAÇÃO DE

SERVIÇOS EDUCACIONAIS EM VIRTUDE DA PANDEMIA DA COVID-19

Neste capítulo, far-se-á um estudo sobre revisão e resolução dos contratos de prestação de serviços educacionais em virtude da pandemia da Covid-19. Sendo assim, inicialmente, examinar-se-á a pandemia criada pelo vírus da Covid-19, detalhando-se as medidas tomadas e os impactos causados sobre a prestação de serviços educacionais. Em seguida, serão detalhadas as possibilidades de revisão e resolução contratual por fato superveniente aplicáveis aos contratos privados de ensino.

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