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CAPÍTULO 3: DIMENSÕES DISCURSIVAS SOBRE O CONTEXTO E A

3.2 DA ARQUITETURA

No contexto do São Lucas, pode-se dizer que a arquitetura atuava como um mecanismo pedagógico. A atuação do CER São Lucas enquanto instituição disciplinar do indivíduo sobre sua custódia iniciava-se no momento de “acolhimento”35do adolescente e se perpetuava pelo tempo em que o adolescente permanecia no CER. A arquitetura prisional, ou na falta dela, as adaptações arquitetônicas36

, visando transformar o São Lucas em prisão, faziam a parte silenciosa e inerte da pena. O SINASE, ao tratar da arquitetura socioeducativa, reconhece a importância deste elemento no contexto da formação humana, estabelecendo que os centros de internação sejam projetados de modo que as construções possibilitem a visão de um processo indicativo de liberdade, não de castigos e nem da sua naturalização.

Porém, os internos do São Lucas, mesmo resguardados no prédio do Estado, permaneciam tais quais os moradores do Frei Damião, Chico Mendes, Vila União, Morro da Caixa37 ou de qualquer outra comunidade da periferia das grandes cidades brasileiras, onde a população ainda convive com a precariedade dos serviços públicos.

Apesar de se tratar de uma instituição educacional, dentro do CER havia esgoto a céu aberto, proliferação de insetos, paredes sujas e deterioradas e mau cheiro38. Sobre as condições da estrutura física do CER, o Relatório ironicamente elaborado pelos técnicos do Departamento de Justiça e Cidadania, justamente o órgão responsável por prover infraestrutura do São Lucas, destaca:

O grupo ouvido apresentou consenso no que diz respeito à precariedade da construção e infra-estrutura do CER São Lucas, como também afirmou ser frágil e deficitária segurança interna e externa. [...] Com relação à estrutura física foram constatadas muitas situações emergentes. O centro apresenta problemas com o tratamento de esgoto, em alguns níveis a fossa séptica estava transbordando apresentando mau cheiro, assim como muitos banheiros do CER apresentavam entupimentos (DJUC apud ALVES, 2010, p. 42-45).

35 O SINASE divide o tempo de privação de liberdade em 03 períodos, sendo: a) fase inicial de atendimento: período de acolhimento, de reconhecimento e de elaboração por parte do adolescente do processo de convivência individual e grupal, tendo como base as metas estabelecidas no PIA; b) fase intermediária: período de compartilhamento em que o adolescente apresenta avanços relacionados nas metas consensuadas no PIA; e c)

fase conclusiva: período em que o adolescente apresenta clareza e conscientização das metas conquistadas em

seu processo socioeducativo (SINASE, 2006, p.51).

36 Como inicialmente o São Lucas não havia sido projetado com fins prisionais, ao longo dos anos sua estrutura passou por diversas reformas, visando adequar o antigo abrigo de menores a uma instituição de contenção total. 37

Uma grande parte dos internos do São Lucas era originária destas três favelas de Florianópolis: Chico Mendes, Vila União e Morro da Caixa.

O CER São Lucas apresenta uma estrutura física arcaica e deficiente, sofrendo ao longo do tempo algumas reformas e modificações para ampliação do número de vagas. (...) A construção permanece como foi idealizada na década de 70, quando era constituído de duas unidades (São Lucas e São Mhateus), os quais tinham como objetivo abrigar crianças e adolescentes considerados em "situação irregular". O sistema de esgoto permanece por longos períodos entupidos, causando mau cheiro nos níveis e nos pátios. As instalações elétricas estão deterioradas, com fiações aparentes e iluminações inadequadas (DJUC apud ALVES, 2010, p. 49).

Identificou-se um Centro Educacional com estruturas precárias e apresentando condições desumanas habitacionais e problemas de gestão. (DJUC apud ALVES, 2010, p. 51).

Nível II39: (...) O nível apresentava corredores e quartos40 sujos, com pintura deteriorada, paredes internas riscadas com buracos, banheiros e ralos do chuveiro entupidos. O mau cheiro predominava o ambiente. Nos corredores estavam espalhados os pertences dos adolescentes que haviam se evadido. (DJUC apud ALVES, 2010, p. 52).

Ao tratarem da estrutura física do São Lucas, o Relatório de Inspeção Realizada em 22/04/2010, pela Corregedoria Geral de Justiça, Coordenadoria da Infância e da Juventude e Vara da Infância e da Juventude da Comarca de São José, faz os seguintes apontamentos:

a) Verificou-se que o espaço físico externo está exposto a total abandono (o campo de futebol está desativado, assim como a horta), e a falta de segurança impede a utilização pelos adolescentes para a prática de esportes, oficinas de trabalho, cultivo em hortas e outros ofícios de conotação sócioeducativa, como prevê a medida de internação.

b) Da mesma forma, as dependências internas são insalubres, devido ao péssimo estado de conservação em termos de edificação, saneamento básico, distribuição de espaço. O banheiro coletivo apresenta-se em péssimo estado de conservação, além da falta de higiene: havia papel higiênico usado espalhado pelo chão; o vaso sanitário estava sujo, apresentando total falta de higiene.

c) No interior das celas constatamos a existência de duas garrafas pet com água, uma aparentava estar com urina, conforme fotografia em anexo. d) Nos corredores das celas foram verificados vazamentos de água por baixo da porta de ferro (TJSC, 2010, p. 4 e 5).

39 Nível era a denominação dada a um conjunto de celas. Em 2007, ano em que trabalhei no São Lucas, a instituição estava dividida da seguinte Forma: Nível I, Nível II, Nível III, Comunidade Agrícola e Triagem. O Nível II era composto por um conjunto de 12 celas, reservadas, prioritariamente, aos adolescentes com idade entre 18 e 21 anos. Os Níveis I e III eram destinados aos adolescentes com idade ente 12 e 17 anos. A Comunidade Agrícola era destinada aos adolescentes que ofereciam menos risco de fuga, visto se tratar de um espaço que dava acesso direto ao principal muro da instituição.

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Apesar do Regimento Interno do São Lucas chamar de quarto o espaço destinado ao recolhimento individual dos adolescentes, tal nomenclatura visava tão somente eufemizar o impacto da palavra cela. Os ditos quartos eram espaços de aproximadamente quatro metros quadrados, com uma cama feita de concreto, vazo sanitário, uma janela emoldurada e gradeada em concreto e uma porta de aço, com uma pequena abertura na altura dos olhos (fotos Anexo I).

Diante do exposto em ambos os relatórios fica evidenciado a precariedade da estrutura física do CER inflige impactos diretos nas condições de insalubridade sobre o corpo dos internos. A insalubridade potencializa as doenças corpóreas. A punição moderna tem que tocar muito além da carne. Neste caso, as paredes deterioradas, a sujeira, o mau cheiro e o esgoto minado sobre os pés, fazem parte da punição extracorpórea. Trata-se da parte da punição que fragmentada contínua e lentamente age sobre indivíduo, didaticamente, reproduzindo a miséria, mantendo o interno em permanente precariedade. Pedagogicamente o detento é relembrado de sua origem social e de futuro habitat, pois quase invariavelmente o ex-interno irá retornar a uma vida de privação e marginalidade social. A marca inexorável fixada no egresso do sistema penal se torna uma barreira a mais na possibilidade de ascensão social. Não obstante, ao punir o interno, as condições degradantes do sistema prisional se traduzem em forte conteúdo para pedagogicamente imputar o temor da prisão aos expectadores do noticiário policial, como será observado no item 3.6 Do Que Disse a Mídia.