• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3: DIMENSÕES DISCURSIVAS SOBRE O CONTEXTO E A

3.5 DOS SUPLÍCIOS EM SÃO LUCAS: A PEDAGOGIA DE EXCEÇÃO

Hoje em dia qualquer pessoa, sem exceção, se sente mal-amada, porque cada um é deficiente na capacidade de amar. A incapacidade para a identificação foi sem dúvida a condição psicológica mais importante para tornar possível algo como Auschwitz em meio a pessoas mais ou menos civilizadas e inofensivas. (ADORNO, 1995, p. 133-134).

Os técnicos que inspecionaram o CER apontaram problemas de toda ordem, porém, foi quando trataram das relações entre monitores e internos é que deixaram transparecer maior perplexidade. Como dissemos anteriormente, diante das denúncias dos castigos físicos que eram infligidos aos internos do CER, a Juíza que determinou a interdição do São Lucas estabeleceu uma analogia entre os monitores da instituição e os inquisidores medievais, feitores de escravos e torturadores da ditadura:

É que os monitores se colocam como titulares da tarefa disciplinadora; a punição padrão é a tal "medida de quarto", a definição de faltas é casual e a punição não obedece norma regimental, nem o direito à defesa ou à prévia definição normativa, tudo em prol da prevalência do arbítrio e da desumanidade na disciplina (ALVES, 2010, p. 25).

A primeira vista, e desconhecendo os detalhes das denúncias, o posicionamento da Juíza parece exagerado, pois a inquisição que levava corpos à fogueira está extinta há mais de dois séculos, os pelourinhos não adentraram ao século XX e os torturadores militares, apesar da proximidade temporal, eram detentores de um poder teoricamente superior aos dos monitores.

A inquisição e o escravismo são realidades históricas, que quando observadas aos olhos da atualidade se tornam práticas inconcebíveis, porém, foram práticas aceitas e legalizadas de acordo com os valores da época em que ocorreram. Quanto às torturas da ditadura militar, as mesmas se resguardaram por trás de um arcabouço jurídico e da força das armas. Os torturadores militares agiam sob a égide do AI5 legalmente, “legitimando” suas ações com o discurso da segurança nacional. Portanto, que poder teriam os monitores para que a contundência de suas ações gerasse tal comparação?

A princípio o monitor se encaixaria no que Foucault (2011) chama de “pequeno funcionário da ortopedia moral”, ou seja, ao monitor cabe à execução da pena propriamente dita, ele é o encarregado pela vigilância ostensiva e a imputação cotidiana dos exercícios disciplinares. O monitor, o carcereiro, o guarda, o agente socioeducativo ou como o queiram chamar o indivíduo que guarda as chaves, é ele quem dita os horários, adestra os gestos, censura as palavras e, atuando dia após dia, transforma a alma do indivíduo.

De acordo com Foucault, diferente da técnica penal medieval, que era basicamente aplicada pelo carrasco, à técnica moderna foi calculada para ser meticulosamente distribuída por um exército de técnicos, tais como médicos psicólogos e educadores que atuando de acordo com suas especialidades, contribuem para o remodelamento do indivíduo.

Apesar de o monitor ser o executor direto da pena, legalmente ele não detém o monopólio sobre a execução do castigo. Existe toda uma legislação visando limitar o poder do monitor sobre o interno. Porém, quem fiscaliza a lei, se no nível, na triagem49 e na cela o acesso é restrito apenas ao interno e ao monitor? Assim, mesmo que a lei estabeleça as atribuições do monitor e imponha o limite do castigo, o próprio judiciário já anunciou que não há como fiscalizar. Desta forma, utilizando-se do discurso da prisão-escola, a sociedade representada pelo judiciário, tacitamente submete a vida do adolescente à vontade do monitor. No espaço habitado apenas pelo monitor e pelo interno surge um vácuo de vigilância externa. É neste vácuo de vigilância que o monitor se apropria do poder total, passando a exercer às vezes, a seu modo, o papel de inquisidor, feitor e general. No intramuros da prisão o monitor representa a ação do Estado total sobre o corpo do “interno”, incorporando em si todo o poder do príncipe. Entre todos os aplicadores da pena, o monitor é o personagem principal no CER. No intramuros da prisão, a relação entre e o interno e monitor culmina em uma representação perfeita do que Foucault (2011) chamou nos seus escritos de panóptico50, com um vigiando o outro, literalmente, por 24 horas.

Na aplicação da técnica penitenciaria moderna, o monitor traz em si a representação perfeita da disparidade de força, do Estado em relação ao indivíduo. Mais que no convento, na escola, no quartel ou em qualquer outra instituição disciplinar, é na prisão que o controle do Estado se aproxima à totalidade. Ao representar o Estado, o monitor detém um poder de decisão jamais concedido aos carrascos medievais:

49

A Triagem era o Nível destinado aos adolescentes considerados mais perigosos, por isso era o espaço mais restrito e temido da instituição.

50 O Panóptico é projeto arquitetônico criado no final do século XVIII, pelo filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham. O objetivo do panóptico é possibilitar a vigilância total sobre o indivíduo em observação. [...] o Panóptico pode ser utilizado como máquina de fazer experiências, modificar o comportamento, treinar ou retreinar os indivíduos. Experimentar remédios e verificar seus efeitos. Tentar diversas punições sobre os prisioneiros, segundo seus crimes e temperamento, e procurar as mais eficazes. Ensinar simultaneamente diversas técnicas aos operários, estabelecer qual é a melhor. Tentar experiências pedagógicas — e particularmente abordar o famoso problema da educação reclusa, usando crianças encontradas; ver-se-ia o que acontece quando aos dezesseis ou dezoito anos rapazes e moças se encontram; poder-se-ia verificar se, como pensa Helvetius, qualquer pessoa pode aprender qualquer coisa; poder-se-ia acompanhar “a genealogia de qualquer idéia observável”; criar diversas crianças em diversos sistemas de pensamento, fazer alguns acreditarem que dois e dois não são quatro e que a lua é um queijo, depois juntá-los todos quando tivessem vinte ou vinte e cinco anos; haveria então discussões que valeriam bem os sermões ou as conferências para as quais se gasta tanto dinheiro; haveria pelo menos ocasião de fazer descobertas no campo da metafísica. O Panóptico é um local privilegiado para tornar possível a experiência com homens, e para analisar com toda certeza as transformações que se pode obter neles. O Panóptico pode até constituir-se em aparelho de controle sobre seus próprios mecanismos. Em sua torre de controle, o diretor pode espionar todos os empregados que tem a seu serviço: enfermeiros, médicos, contramestres, professores, guardas; poderá julgá-los continuamente, modificar seu comportamento, impor-lhes métodos que considerar melhores; e ele mesmo, por sua vez, poderá ser facilmente observado (FOUCAULT, 2011, p. 193).

Ao contrário, se ele fracassa, se não consegue matar como devia, é passível de punição. Foi o caso do carrasco de Damiens, que, como não soubesse esquartejá-lo de acordo com as regras, teve que cortá-lo com a faca; confiscaram, em proveito dos pobres, os cavalos do suplício que lhe tinham sido prometidos. Alguns anos mais tarde, o carrasco de Avignon fizera sofrer demais os três bandidos, aliás, temíveis, que devia enforcar; os espectadores se aborrecem; denunciam-no; para puni-lo e também para subtraí-lo à vindita popular, é preso. E, por trás dessa punição do carrasco inábil, encontramos uma tradição, ainda bem próxima: ela dizia que o condenado seria perdoado se a execução fracassasse. Era um costume claramente estabelecido em certas regiões. Muitas vezes o povo esperava que tal tradição fosse aplicada, e às vezes protegia um condenado que dessa maneira acabava escapando à morte. (FOUCAULT, 2011, P. 52).

No suplício em praça pública, sob os olhos de uma multidão, o carrasco era obrigado a executar seu trabalho com perfeição, tendo que aplicar o castigo exatamente como o prescrito na sentença. Neste sentido, o carrasco, diferente do monitor, era apenas um técnico, sem poder algum de decisão (como veremos no item posterior quando nos referimos à Eichmann). Se a pena prescrita era dez chibatadas, o carrasco não ousaria intensificar o castigo com uma chibatada a mais, por exemplo. A banalidade deste exemplo se emudece diante da vida em questão.

Com a modernização penal, o corpo do indivíduo deixa de ser o objeto da punição. Assim, legalmente foi retirado do executor da pena (carrasco moderno) o direito de imputar castigos físicos ao apenado. Após a reforma penal, a sociedade punitiva substituiu o carrasco pelo carcereiro, monitor, agente socioeducativo, entre outras terminologias, delegando a ele a execução da pena, porém não mais através de castigos físicos, as ferramentas de tortura da modernidade devem ser incorpóreas. A pena moderna não deixa de ter um componente físico, pois incide no confinamento do corpo, porém a modernidade penal exige do monitor atinja mais a alma que o corpo do detento. Desta forma, o que se espera do monitor é que ele atue sobre a mente do interno, sendo o professor da disciplina perfeita, o mestre do adestramento, imputando sobre o interno uma intervenção pedagógica-disciplinar que de tão intensa forje até o caminhar do interno.

A legislação brasileira é contraditória ao tratar das atribuições do monitor, pois, apesar de o Estado atrelar totalmente o funcionamento dos centros de internação ao discurso da prisão-escola e o carcereiro ser eufemisticamente chamado de agente socioeducador, estes profissionais não são os responsáveis pelo desenvolvimento das atividades pedagógicas de escolarização e profissionalização. Se não escolarizam e não profissionalizam, como sugere a nomenclatura, que atribuições têm estes agentes?

As atribuições dos socioeducadores deverão considerar o profissional que desenvolva tanto tarefas relativas à preservação da integridade física e psicológica

dos adolescentes e dos funcionários quanto às atividades pedagógicas. Este

enfoque indica a necessidade da presença de profissionais para o

desenvolvimento de atividades pedagógicas e profissionalizantes específicas

(SINASE, 2006, p. 45, grifo meu).

De acordo com o SINASE (2006), cabe aos monitores à preservação da integridade física e psicológica dos adolescentes e funcionários, ou em outras palavras podemos dizer que cabe aos monitores garantir a segurança e evitar fugas. Isto se evidencia ainda mais quando o SINASE trata da proporção do número de monitores em relação ao número de adolescentes. Ao estabelecer o número de monitores de acordo com o perfil e as necessidades pedagógicas dos adolescentes, o SINASE estabelece que proporção pode ser de até 01 monitor para 05 adolescentes. Já quando se trata de estabelecer a proporção em razão do risco de fuga e agressão, a proporção quase se inverte, ficando estabelecidos 02 monitores para cada adolescente.

A contradição legal está estabelecida, pois se contrata monitores para atuarem como seguranças, ficando a escolarização e profissionalização a cargo de outros profissionais. Conforme Foucault (2011), a fragmentação da punição é uma evidência clara da técnica penitenciária. Os monitores não se envolvem na aprendizagem, pois no vínculo estabelecido com o adolescente não pode haver cumplicidade, na prisão-escola não temos aluno e professor, preserva-se a distância entre o carrasco e o supliciado.

De acordo com os relatos dos inspecionadores do São Lucas, parte dos s socioeducativos, servidores públicos legalmente investidos pelo poder coercitivo do Estado e tacitamente revestidos no poder punitivo da sociedade disciplinar, visando o disciplinamento dos adolescentes institucionalizaram o castigo físico e psicológico como principal método de ensino-aprendizagem da instituição. Ao tratar das ações dos monitores a Juíza escreveu:

O maior foco interno de resistência foi e continua sendo o corpo de monitores, cujo papel socioeducativo tem sido historicamente subsumido pelo aculturamento herdado do modelo menorista, implicando, por consequência, na continuidade do desmando e da crueldade, licenciosidade implícita gerada pela rejeição macrossocial à clientela visada. Mal capacitados, fortemente comprometidos com as expectativas invertidas de proteção da sociedade e do patrimônio, e não do adolescente estigmatizado por sua conduta transgressora e desviante, os servidores da monitoria, vítimas de singular e tradicional alienação somada à ignorância da Constituição, da lei e da sua real função, prosseguiram fazendo o que sempre fizeram: disciplinamento indiscriminado; castigos físicos; práticas cruéis compatíveis com tortura e tratamento cruel e desumano (ALVES, 2010, p. 11).

Para que possamos complementar a representação do monitor no contexto da sociedade punitiva e compreender a extensão do poder deste agente estatal sobre o custodiado, podemos aproximar com certo cuidado as considerações da Juíza ao que diz

Foucault (2011). Neste cenário, observamos que a sociedade burguesa, ao ser personalizada no papel do monitor, defende-se castigando exemplarmente o que considera ser o inimigo social, porém utilizando-se de uma tecnologia obsoleta:

O agente de punição deve exercer um poder total, que nenhum terceiro pode vir perturbar; o indivíduo a corrigir deve estar inteiramente envolvido no poder que se exerce sobre ele. Imperativo do segredo. E, portanto, também autonomia pelo menos relativa dessa técnica de punição: ela deverá ter seu funcionamento, suas técnicas, seu saber; ela deverá fixar suas normas, decidir de seus resultados: descontinuidade, ou em todo caso especificidade em relação ao poder judiciário que declara a culpa e fixa os limites gerais da punição. Ora, essas duas consequências — segredo e autonomia no exercício do poder de punir — são exorbitantes para uma teoria e uma política de penalidade que se propunha dois objetivos: fazer todos os cidadãos participarem do castigo do inimigo social; tornar o exercício do poder de punir inteiramente adequado e transparente às leis que o delimitam publicamente.

Castigos secretos e não codificados pela legislação, um poder de punir que se

exerce na sombra de acordo com critérios e instrumentos que escapam ao controle — é toda a estratégia da reforma que corre o risco de ser comprometida. (FOUCAULT, 2011, p. 125, grifo meu).

De acordo com o relatado na Liminar de Interdição Total, podemos inferir aos olhos da técnica penitenciária moderna que no São Lucas ocorreram dois erros capitais, sendo o primeiro a perda da capacidade de contenção e o segundo a quebra do sigilo sobre os castigos secretos e “incondificáveis”. Segundo Foucault (2011), a expiação física sobre os apenados nunca deixou de existir, com a reforma penal ela se transferiu das praças públicas para os cantos mal iluminados da prisão, permanecendo no campo das ilegalidades, que por ocorrerem à sombra da lei e por não deixarem vestígios, se tornam toleráveis. Mas no São Lucas, os muros em ruínas deixaram escapar além dos adolescentes, os gritos, as cicatrizes e as feridas abertas. A frequência e a intensidade dos castigos eram tamanhas que permitiram que a prática disciplinar fosse flagrada pela própria Juíza durante uma visita ao CER:

Quando de sua reapreensão pela PMSC, ocorrida em 31.03.2010 para a visita já referida, dois desses adolescentes, A. e F., apresentavam visíveis lesões corporais compatíveis com espancamento. Houve a determinação para a apresentação em juízo no dia seguinte, 1º de abril, incluídos os outros dois, que não apresentavam marcas visíveis. Na audiência foram ouvidos todos os adolescentes. A perseguição policial, narrada por F., causou impacto. Narrou que a PM disparou a arma em sua direção e, depois de rendê-lo, agrediu a socos provocando as lesões evidenciadas. A narrativa de A. foi coerente com a de F., ambos estando visivelmente lesionados. O adolescente de constituição mais frágil e com 14 anos de idade, apresentava grandes hematomas e arranhões por todo o rosto, em metade do tórax e nas costas (ALVES, 2010, p. 22).

A narração da Juíza é emblemática, pois demonstra o quanto o São Lucas estava em desconformidade com o que se espera de uma instituição disciplinar moderna. Em uma mesma ocorrência duas situações afrontaram a sociedade vigilante e punitiva. A fuga dos

adolescentes põe em cheque o poder disciplinar do Estado. Já o corpo marcado pelo castigo exacerbado denuncia a tirania estatal, práticas deste tipo são inadmissíveis para as instituições disciplinares que se pretendem educacionais ou de ressocialização.

Além da situação de maus tratos, presenciada in loco pela própria Magistrada, as práticas disciplinares assentadas no que denominamos de “pedagogia de exceção” e da violência física e psicológica encontram-se relatadas em diversos outros pontos da Liminar de interdição Total do São Lucas. A frequência com que os castigos físicos eram aplicados nos leva a crer que não se tratavam mais de práticas esporádicas de punição, mas de um método de ensino-aprendizagem institucionalizado e registrado nos documentos normativos da casa. Quando da inspeção do São Lucas pelos técnicos do DJUC, uma parte significativa dos profissionais que atuavam na instituição declararam saber da existência de maus tratos. Desta situação depreende-se a institucionalização do castigo físico, pois que tipo de educação se pode esperar de uma instituição onde todos profissionais da equipe técnica se disseram cientes da existência de ameaça à integridade física e psicológica dos adolescentes?

Em relação a este quesito, somente 10% dos cinquenta e três monitores responderam que existem situações de maus tratos, sendo que 35% responderam que utilizam a força física somente quando necessário. Entretanto dos onze integrantes da equipe técnica 38% responderam que existem situações de maus tratos e 30% que desconhecem. 100% da equipe técnica respondeu que existem adolescentes

ameaçados em sua integridade física ou psicológica de forma geral (DJUC apud

ALVES, 2010, p. 48, grifo meu).

Diferente do que disseram os 35% dos monitores sobre só utilizarem contingencialmente a força, o descrito nos relatórios de inspeção apontam para o uso da violência como uma prática disciplinar permanente e institucionalizada. Fugindo aos preceitos da técnica penitenciaria moderna, os monitores interviam pedagogicamente através da violência ao menor desvio comportamental. Exemplificando o uso pedagógico da violência, cito a seguinte situação, descrita na Liminar de Interdição Total do São Lucas:

Já recolhidos ao quarto que compartilham naquelas dependências, iniciaram discussão entre si, elevando inadvertidamente o tom de voz. Em virtude disso, o monitor51, de serviço naquela data, adentrou bruscamente ao cômodo e borrifou spray de pimenta nos olhos dos dois, causando-lhes forte irritação e desconforto. Os adolescentes vitimados afirmaram que não estava ocorrendo agressão física recíproca ou contra o monitor, tratando-se de discussão banal. Reconheceram que estavam, de fato, falando alto demais, reclamando, todavia contra a atitude do monitor, reputada desnecessária e abusiva não apenas pelos dois como pelo restante do grupo, que confirmou o relato e asseverou que os efeitos do gás de pimenta foram sentidos também por eles, dado à quantidade excessiva da substância que ficou no ar (ALVES, 2010, p. 15 e 16).

Da análise do fato descrito, pensado alinhado com Foucault (2011), afirmo não se tratar da ocorrência de um tipo particular de violência, a violência pedagógica, aplicada deliberadamente com fins educacionais. Neste caso, o monitor agiu conforme os ditames da técnica prisional moderna, pois spray de pimenta não fere o corpo com gravidade e não deixa marcas duradouras, mas certamente, causou o desconforto necessário ao alcance do objetivo. Não fosse a fragilidade dos muros do CER e a publicidade dada à denuncia (ver alguns exemplos de publicização no item que tratarei da mídia), provavelmente seria apenas mais uma ilegalidade entre tantas outras que ocorrem nas sombras da prisão.

Para Foucault (2011), um dos preceitos da técnica penitenciária moderna é a punição ao menor desvio, por menor que seja a infração ela deve ser prontamente identificada e reprimida. Assim, ao punir os adolescentes por eles terem elevado o tom de voz, a sociedade age disciplinando as menores insurreições. Sob o discurso da proliferação de delitos mais graves, o mesmo spray de pimenta utilizado no São Lucas também é usado em larga escala pela polícia nas ruas para reprimir o aumento do tom de voz nas manifestações populares. Ainda sobre a repressão aos mínimos desvios, Foucault (2011), ao descrever as práticas pedagógico-disciplinares utilizadas em Mettray, colônia penal para jovens que inaugurou a técnica penitenciária moderna, afirma que já naquela época a mínima desobediência e mesmo uma palavra inútil era castigada.

A alguns parágrafos atrás, a partir de uma declaração da equipe técnica do São Lucas, onde todos os profissionais disseram saber da existência de ameaça à integridade física e psicológica dos adolescentes, afirmei que ali estava a constatação da institucionalização da violência como prática pedagógica. Porém, a partir da observação do que diz o capítulo 3, do Regimento Interno do São Lucas, intitulado de “PROCEDIMENTOS EDUCATIVOS E SANÇÕES DISCIPLINARES”, documento que era utilizado oficialmente como código norteador das atividades cotidianas do São Lucas, brota a convicção que a institucionalização da violência como prática pedagógica não estava apenas subjetivamente introjetada na consciência dos profissionais. Da observação do citado documento, podemos dizer que a utilização da violência enquanto prática pedagógica-disciplinar de tão institucionalizada