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Da Ausência do Estado-de-Bem-Estar-Social à Consolidação do Neoliberalismo

2. CAPÍTULO – AVANÇO NEOLIBERAL E A PRIVATIZAÇÃO DOS DIREITOS

2.2 Da Ausência do Estado-de-Bem-Estar-Social à Consolidação do Neoliberalismo

Dentro da especificidade nacional, própria da conjuntura histórica que o país vivia, pode-se dizer que o neoliberalismo no Brasil se iniciou em meados dos anos de 1980, ainda sob o governo militar de Figueiredo, tendo maior ênfase no início da década de 1990, no governo Collor, concretizando-se em 1994, sob a gestão do governo Fernando Henrique Cardoso (LUIZ, 2013).

Nesse cenário de privatização das instituições e dos direitos sociais e abertura econômica para o mercado transnacional, a relação entre Estado e Capital tem como síntese o recuo do primeiro da esfera pública/social e a desresponsabilização pelo fornecimento dos direitos à educação; esse recuo gradativo pode ser interpretado como processo de mercantilização dos direitos sociais, sobretudo no que toca à educação superior que, legitimado pelo discurso liberal de ineficiência e incapacidade do Estado em universalizar o acesso ao ensino superior, entre outros direitos sociais, passa a delegar para a “eficiência” do mercado. Nesse contexto, o Estado Educador cede espaço lentamente para o Estado Avaliador, cuja prerrogativa consiste em “regulamentar” os serviços fornecidos pelas instituições privada/mercantil (SGUISSARDI, 2017).

2.2 Da Ausência do Estado-de-Bem-Estar-Social à Consolidação do Neoliberalismo

Antes de seguir na direção aqui delimitada, faz-se necessário um pequeno detour.

Investigando a estrutura social brasileira, herdeira dos valores colonial-escravista, Chauí (2003) seguindo uma tradição crítica já problematizada por Florestan Fernandes, entre outros, enfatiza que a “cultura-senhorial-escravagista” afirma a predominância do espaço privado sobre o público, fortemente hierarquizada, uma vez que o centro das relações sociais tem como referência a dinâmica da hierarquia familiar que, entre outras coisas, pauta as relações intersubjetivas sob o prisma do superior que manda, e do inferior que obedece. As diferenças e assimetrias culturais imanentes a toda sociedade moderna, dado o grau de complexidade, são significadas ontologicamente como desigualdade, tendo como efeito anacrônico o enraizamento das relações de mando-obediência no tecido social. A consequência, ainda de acordo com a autora, consiste numa contradição da relação social construída no espaço

público, no qual o outro colocado numa esfera inferior jamais é reconhecido como sujeito de direitos, nem como subjetividade e alteridade, sendo coisificado, contradição que será aprofundada pelos efeitos e contradições das relações de produção impostas pelo capital.6

As relações, entre os que julgam iguais são de “parentesco”, isto é, de cumplicidade; e, entre os que são vistos como desiguais, o relacionamento toma forma de favor, da clientela, da tutela ou da cooptação, e, quando a desigualdade é muito marcada, assume a forma de opressão. Em suma:

micropoderes capitalizam em toda sociedade de sorte que o autoritarismo da e na família se espraia para a escola, as relações amorosas, o trabalho, os mass media, o comportamento social nas ruas, o tratamento dado aos cidadãos pela burocracia estatal, e vem exprimir-se, por exemplo, no desprezo do mercado pelos direitos do consumidor (coração da ideologia capitalista) e da naturalidade da violência policial. (CHAUÌ, 2003, p. 13- 14, grifos nossos).

Nesse sentido, podemos perceber que o processo de formação do Estado-nação brasileiro, sob a égide da democracia formal liberal burguesa, encontrou forte resistência da elite que, ressentida de perder os privilégios dos tempos escravistas, não permitiu existir espaço, ao menos na esfera jurídica e dos costumes, para “fazer operar o princípio liberal da igualdade formal” e assegurar a universalidade do estatuto de sujeito de direitos para esmagadora maioria da população brasileira, sobretudo para a população negra descendente de escravizados no período da colônia e das mulheres - sem levar em conta grupos minoritários que até pouco tempo eram identificados pela literatura clínica e jurídica como monstros ou anomalias sociais, ou ainda dos idosos, que são marginalizados por não corresponderem mais às exigências do capital - que ainda lutam para conquistar direitos civis e políticos sociais básicos imprescindíveis para inclusão material e cultural na sociedade contemporânea.

Dentro de semelhante contexto econômico, psicossocial e sociocultural, as humilhações, os ressentimentos e os ódios, acumulados pelo escravo e liberto sob a escravidão e exacerbados de forma terrível pelas desilusões recentes, lavraram destrutivamente o ânimo de negros e mulatos. Tudo contribuía para aumentar sua insegurança, natural numa fase de mudanças tão bruscas, e para agravar ansiedades e frustrações que não podiam ser canalizadas “para fora” nem corrigidos construtivamente, através de mecanismos psicossociais de integração com os “outros” e de integração à ordem social emergente. (FERNANDES, 2008, p. 61, grifo nosso).

O resgate do texto e, sobretudo das críticas feitas por Fernandes (2008), endossadas por Chauí (2003), em relação ao processo de formação da sociedade brasileira, estabelece e

6Para maior compreensão dos processos históricos que contribuíram historicamente para manutenção dos privilégios e do poder de uma elite em detrimento da inclusão social de todos os brasileiros (as), ver Souza, J. “A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017.” Um livro que analisa o pacto dos donos do poder para perpetuar uma sociedade cruel forjada na escravidão.

nos ajudar a entender um importante ponto de inflexão, crítica e denúncia da violência social sofrida por negros e mulatos, dentre outros grupos que se somam ao contingente de trabalhadores precarizados e marginalizados do processo de modernização, industrialização e formação do Estado-nação, vicissitude que acompanhará as relações sociais - muitas delas endossadas pelas instituições estatais - desde a formal proclamação da República (1889) ao séc. XXI, bem como denúncia à naturalização em diversas esferas sociais da estrutura de dominação colonial que ainda persiste em estabelecer relações pautadas no racismo, na exclusão e subclassificação de grupos sociais.

Impossível não reconhecer que o projeto neoliberal por essência da sua natureza, sobretudo em um país como Brasil que ainda não universalizou o status de cidadão (ã) e assegurou os direitos civis e sociais fundamentais à grande maioria da população, aumentaria o abismo social entre aqueles que gozam de privilégios estruturais daqueles que são institucionalmente inferiorizados e, por isso, excluídos socialmente, preservando e reforçando sob o velho viés ideológico da meritocracia novos mecanismos estruturais de exclusão social, que ainda hierarquizam e permeiam de sentidos e significados as relações sociais pautadas no mando-obediência.

Em um país onde a pobreza estrutural é escamoteada como fracasso social é possível especular que apenas a elite e alguns setores da classe média, dentro de um projeto pautado na competição radical e na acumulação da riqueza produzida socialmente, terão acesso aos melhores serviços e oportunidades. Além do que o modus operandi do mercado na sua versão globalizada transnacional, não apenas oculta, mas aprofunda a sua dimensão racista e patriarcal para maior exploração da força de trabalho e acumulação de mais-valia, reafirmando antigas hierarquias e clivagens de povos, classes, etnias e gêneros subclassificados como seres inferiores7.

Não é difícil antecipar que a divisão internacional do trabalho entre Norte e Sul, centro e periferia, tenderá a se aprofundar ainda mais, seguindo um movimento que, sendo desigual e combinado, atingirá de forma diferenciada a totalidade dos países, aprofundando a expulsão de força de trabalho em um patamar ainda maior que o atual. (ANTUNES, 2017, p.44, grifo nosso).

A singularidade da estrutura social brasileira, somada ao avanço do neoliberalismo transnacional e à consequente diminuição do Estado, sobretudo das políticas sociais, cuja emergência “[...] social pode ser contextuada, de partida, do ponto de vista do Estado, como

7Ver; Matéria publica pela Carta Capital, em 23/07/2018, acerca dos impactos provocados pelos cortes de austeridade - no governo Temer - e o aumento da mortalidade infantil e da extrema pobreza, disponível em:

https://www.cartacapital.com.br/revista/1013/os-mais-vulneraveis-pagam-a-conta-da-austeridade.

proposta planejada de enfrentamento das desigualdades sociais.”, uma vez que por trás “[...]

da política social existe a questão social, definida desde sempre como a busca de composição pelo menos tolerável entre alguns privilegiados que controlam a ordem vigente, e a maioria marginalizada que a sustenta.” (DEMO, 2000, p. 14), são elementos que delineiam um provável cenário de aumento das injustiças sociais, da pobreza e da violência, deflagrada pelo próprio Estado repressivo, que ocupa no corpo das populações historicamente marginalizadas (pobre, negro, mulher, nordestino, entre outras minorias) o centro de gravidade de toda espécie de violência social, pois a eles (as) cabem, em grande medida, as tarefas mais penosas com alto grau de periculosidade e insalubridade.