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Da caridade à profissão: a história do trabalho de enfermagem

2 TRABALHO, EDUCAÇÃO E ENFERMAGEM: UMA DISCUSSÃO ENTRE AS

2.2 Trabalho em saúde: um campo marcado por contradições

2.2.1 Histórico do trabalho de saúde: uma construção marcada por diversos

2.2.1.1 Da caridade à profissão: a história do trabalho de enfermagem

Foi ao longo do processo de estruturação da saúde que surgiram os primeiros registros das atividades de enfermagem, embora que de maneira geral, se torna difícil encontrá-los na Antiguidade. Temos apenas alguns registros do cuidado com as crianças e seu nascimento neste período.

Ainda na época das cruzadas, por volta do século XI, a enfermagem exercida era muito simplificada e predominantemente desempenhada por homens. A rigidez, disciplina e hierarquia desta época provindas da vida militar e religiosa foram fortemente enraizadas nos pioneiros da ação do cuidar.

Assim, os precursores da enfermagem profissional eram os religiosos, as parteiras e as voluntárias leigas, sendo que o cuidar era visto pela sociedade como uma caridade e dominada pela espiritualidade. Portanto, a enfermagem desta época não tinha nenhum caráter profissional.

As atividades que genericamente constituem o trabalho de enfermagem, tais como a administração do espaço assistencial, só passam a ter características profissionais com Florence Nightingale, em 1860, na Inglaterra. De acordo com Oguisso (2007), a forte personalidade de Florence, aliada a sua capacidade prática para organização, conseguiram

dar à enfermagem fortes fundamentos, princípios técnicos, educacionais e éticos que proporcionaram a esta profissão alçar voos até então impensáveis.

Florence iniciou sua atividade na área do cuidar na Guerra de Criméia, por volta dos anos de 1860, sendo que se destacou neste período por, mesmo em meio ao caos do grande número de feridos, conseguir organizar o hospital de atendimento aos feridos, incluindo cuidados com a higiene e dieta oferecida aos doentes, reduzindo consideravelmente a mortalidade. Assim, a enfermagem se organiza enquanto profissão sob a luz do capitalismo, desenvolvendo suas atividades no âmbito hospitalar e mais tarde nos ambulatórios, focado na área de saúde pública.

Florence fundou a escola de Enfermagem no Hospital Saint Thomas, após a guerra, a qual passou a servir de modelo para as demais escolas fundadas após. As principais características das escolas Nightingaleanas eram a disciplina rigorosa e a exigência de qualidade moral das candidatas. Nesse período as aulas eram ministradas por médicos.

Segundo Geovanini (2002), as escolas Nightingaleanas formavam duas categorias diferentes de enfermeiras: as ladies que procediam de classe social mais elevada e que desempenhavam funções intelectuais; e as nurses, que pertenciam aos níveis sociais mais baixos e que desenvolviam o trabalho manual da enfermagem sob a coordenação das ladies.

Pode-se traçar um paralelo ao que atualmente encontramos no Brasil, com a divisão da enfermagem entre técnicos e enfermeiros, onde o primeiro executa as tarefas prescritas pelo segundo. Podemos pensar também que o técnico de enfermagem, muitas vezes por dificuldade financeira, não consegue fazer uma graduação, assim, por motivos econômicos, se submete a uma formação à nível técnico e por conseguinte acaba por fazer as tarefas ditas operacionais no processo de trabalho da enfermagem. Podemos deduzir dessa forma, que a divisão social precede a divisão do trabalho de enfermagem.

Trago um relato encontrado na análise empírica da pesquisa que confirma esta ideia:

É claro que tem o principio da questão financeira também, porque se eu tivesse uma condição melhor já tinha feito enfermagem direto (...). O técnico de enfermagem era uma questão que eu gostava e dava para pagar (T1).

Assim, percebe-se que da mesma maneira como se deu por volta dos anos de 1860, com a formação de duas categorias de profissionais da enfermagem, as ladies e as nurses, focadas nas condições financeiras de cada uma, atualmente, esta divisão persiste e em alguns casos, como o citado à cima, esta escolha é influenciada pela questão financeira. Ou seja, esta profissional está afirmando que teria optado por fazer a Graduação em Enfermagem se

tivesse condições financeiras para isso. Demonstra com esta fala que a divisão social implica em uma divisão do trabalho.

Voltando a história da enfermagem, a primeira escola de formação de enfermagem no Brasil, surge em 1890, com o nome de Escola Alfredo Pinto, que era organizada e controlada por médicos. Percebe-se que a hegemonia médica permeia não só as relações de trabalho dos profissionais da saúde, como também, até este período, aspectos da formação dos profissionais de enfermagem, sendo estes vistos como detentores do saber.

Apenas no ano de 1923 que a enfermagem passa a ter uma formação independente, com a inauguração da Escola Anna Nery. Os enfermeiros diplomados passam a formar os auxiliares de enfermagem para as tarefas de cunho manual. Segundo Pires (1998), os enfermeiros assumem a gerência do trabalho assistencial de enfermagem, delegando as tarefas parcelares aos demais trabalhadores da área da enfermagem. Neste modelo, a enfermeira desempenha a função de gerente centralizadora do saber, que domina a concepção do processo de trabalho de enfermagem e delega atividades parcelares aos demais trabalhadores de enfermagem. Desta forma, a divisão do trabalho de enfermagem se baseia no modo de produção capitalista vigente no período, assunto sobre o qual nos aprofundaremos no próximo capítulo.

Segundo Geovanini (2002), o modelo da escola Anna Nery no Brasil, sofreu influência direta das enfermeiras norte-americanas, que por sua vez, provinham das escolas Nightingaleanas, passando então a reproduzir o modelo histórico da submissão, do espirito do serviço, da obediência e da disciplina.

De acordo com Pires (1998), a “enfermagem, desde a sua organização como profissão, é predominantemente subordinada e assalariada” (p. 85). No cenário do trabalho coletivo em saúde a enfermagem está subordinada ao trabalho médico, que detém o controle do processo assistencial em saúde, porém mantendo, sob alguns aspectos, a sua autonomia profissional.

Ainda neste sentido, segundo Geovanini (2002), embora o poder de disciplinar, no hospital, seja confiado ao médico,

ele passará a delegar o exercício das funções controladoras do pessoal da enfermagem ao enfermeiro que, imbuído da falsa convicção de participar da esfera dominante, será subutilizado na manutenção da ordem e da disciplina, indispensáveis à preservação do monopólio do poder institucional (p. 25).

No momento atual, para Shoeller (2002), apesar da atuação da enfermagem transcender aspectos assistências, técnicos e administrativos, a formação permanece muito voltada para a assistência. Com isso, de acordo com a autora “há uma atuação empírica, aprofundada e desenvolvida na prática cotidiana, sem fundamento teórico para seu desenvolvimento” (p.163). A autora conclui afirmando que o “trabalho de enfermagem é fluído (de difícil delimitação), auxiliar (possibilita a atuação de outros profissionais) e essencial” (p.163).

Segue um relato de uma entrevistada que demonstra este caráter fluído de atuação da enfermagem, ou como diz a autora de difícil delimitação. Mostra-nos também a amplitude de atuação profissional e transparece a noção de um cargo empresarial embutida na função do enfermeiro.

Eu tenho muito forte na minha lembrança a figura do enfermeiro(..)exemplos de como ser e de como não ser (...), a partir daí eu tentei formar uma personalidade profissional: o que os profissionais e os técnicos esperam de um enfermeiro? O que a gestão e administração espera? Tem que pesar o que o processo administrativo espera da atuação de um enfermeiro e aquilo que eu realmente sou enquanto pessoa. Tentei fazer um misto disso pra ter um perfil profissional, uma postura profissional (E1).

Desta forma, podemos observar que os caminhos da saúde e de seus profissionais, foram traçados por pensadores que tinham como principal objetivo, não apenas o bem estar social da sociedade, mas manter a ideologia dominante do lucro, da individualidade e do poder nas relações entre as classes e profissões.

A seguir nos profundaremos nos aspectos que permeiam a divisão do trabalho de enfermagem encontrada nos dias atuais.

2.2.2 Divisão do trabalho de enfermagem: uma forma de reprodução da divisão do