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As origens do MST, a construção da categoria Sem Terra e a agroecologia.

4. Da condição de Sem Terra à de agricultores assentados

Ao passar da condição acampado para a condição agricultor assentado o sujeito – Sem

entorno23. Para Martins (2003. p.12.), o agricultor assentado é “um sujeito que surpreende e

contraria quando sua verdade social se manifesta em contradição com o desenho ideológico

que lhe imputam os que dele esperam conduta diversa”. Ou seja, ao incorporar sua (nova)

condição de proprietário, regulada pela racionalidade e contradições do capital, engendra

novas contradições, embora deseje algo diferente daquilo que manifesta nas ações. Essa

junção faz surgir um sujeito não harmônico porque recria as contradições do capital ao

conflitar-se com a necessidade de inserção no modo de produção capitalista para a sua

reprodução. Este sujeito empírico vive em meio a tensões e conflitos, por vezes, de forma

avessa daquilo que uma militância (precária) ideologicamente lhe impõe.

Grande parte dos agricultores assentados tem sua origem na agricultura familiar,

fazendo com que suas motivações encontrem-se no âmbito da afirmação ou renovação de

valores sociais relativos à organização da família. Ao se tornarem agricultores assentados, os

traços que o identificam como agricultor familiar se fortalecem expressando-se em suas

práticas, valores e racionalidades. Segundo Martins (2003. p.44) existe uma atmosfera de

“reavivamento, renovação e modernização dos valores tradicionais relativos à vida

comunitária”, ou seja, as pessoas beneficiadas no processo de reforma agrária encontram-se

predispostas para uma ressocialização, buscando se incorporar a formas modernas de uso da

terra e de organização da economia familiar.

De modo geral, pode-se dizer que a agricultura familiar se constitui num modo

específico de produzir e de viver na sociedade, abrigando uma estrutura produtiva que associa

família-produção-trabalho, e que determina a forma como ela intervém na economia e na

sociedade (WANDERLEY, 1999). Entretanto, essa tradição camponesa sofre alterações ao

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Este termo compreende o espaço físico (lugar onde vivem), mas também lugar de onde se vê e se vive, que constrói relações e referências destes agricultores ao se inserir nas diferentes esferas da sociedade.

longo da história. A condição de marginalidade da agricultura familiar dentro da economia

moderna fez com que, segundo Carneiro (1998), restasse a ela incorporar estratégias que –

respeitando suas características particulares, que tem como centro a reprodução da família –

lhe permitissem, mesmo transformada, permanecer no rural.

A modernização do processo de produção agrícola e a integração de tal setor aos

mecanismos dos mercados modificaram, em diferentes medidas, a forma de produzir do

campesinato tradicional. Para Abramovay (1992), embora a origem da agricultura familiar

moderna esteja no campesinato tradicional, ela mantém laços cada vez mais tênues com seu

passado, incorporando em sua racionalidade características de uma empresa capitalista.

Segundo o mesmo autor, apesar de estabelecer uma integração parcial e incompleta com os

mercados, há uma relativa perda da identidade camponesa devido à subordinação desta

pequena produção ao regime do capital. Cria-se uma variabilidade de formas sociais, de

acordo com a relação (e rupturas) que este personagem estabelece na economia e na sociedade

atual.

No entanto, alguns traços característicos do camponês tradicional podem ser

retomados neste estudo visando compreender determinados comportamentos entre os

agricultores assentados. Especificamente no que tange à busca de reavivar práticas

abandonadas – durante o processo de modernização da agricultura – como uma forma de

(re)encontrar relativa autonomia dentro do sistema econômico. Suas ações pretendem renovar

valores sociais que têm como principal característica a reprodução da unidade familiar e, ao

Mesmo que a direção política do MST, durante longo tempo, tenha preconizado a

inserção dos agricultores assentados nos mercados via “cooperação agrícola” (conforme

abordaremos no segundo capítulo), a agroecologia acaba fazendo parte nas ações de alguns

agricultores, através da ação dos missionários das Igrejas católica e luterana e ONGs,

tornando-se elemento que permite integrar estes agricultores à economia e proporcionando

relativa autonomia desses no processo produtivo. Esta seria uma tentativa de diminuir sua

condição de marginalização progressiva dentro do processo de desenvolvimento da economia

global.

Ao retomar a lógica da agricultura familiar para explicar parcialmente as ações deste

sujeito – as práticas adotadas no interior dos assentamentos do MST – deve-se salientar que

ele, ainda que de forma precária, incorpora em seu imaginário sua condição histórica de Sem

Terra. Suas ações, portanto, são igualmente permeadas por uma práxis transformadora 24.

Caldart (2002?) nos remete a um Sem Terra que não se esgota no hoje, na luta pela terra, mas

leva em conta o seu passado e projeta transformações na sociedade a partir de valores avessos

aos da sociedade capitalista. Ressalte-se que este personagem se diferencia das categorias

tradicionais, englobando um modo de agir e pensar bastante particular. Nesse caso, estas

aspirações se refletem na construção de um modo de vida e de produção na agricultura

diferente daquele que o excluiu.

Uma produção ampla de escassez conduz os atores que estão de fora do círculo da

racionalidade dominante à descoberta de sua exclusão e à busca de formas alternativas de

racionalidade, indispensáveis à sua sobrevivência. Através desta contra-racionalidade, estes

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Para isso consultar Henri Lefebvre, entre outros autores. A questão da práxis será entendida no sentido da ação produtiva da experiência que os homens tem de si próprio e dos objetivos da sua existência durante a

transformação produtiva do mundo, considerando as relações e meios de produção historicamente dados que influenciam - e ao mesmo tempo são influenciados pela - sua ação.

atores pretendem estabelecer ações contrárias à racionalidade dominante e ao mesmo tempo,

garantir, embora precariamente, a manutenção e reprodução da família ou do grupo. Para

Santos (1999):

Essas contra-racionalidades se localizam, de um ponto de vista social, entre os pobres, os migrantes, os excluídos, as minorias; de um ponto de vista econômico, entre as atividades marginais, tradicional ou recentemente marginalizadas; e de um ponto de vista geográfico, nas áreas menos modernas e mais “opacas”, tornadas irracionais para usos hegemônicos. Todas essas situações se definem pela sua incapacidade de subordinação completa às racionalidades dominantes, já que não dispõe dos meios para ter acesso à modernidade material contemporânea. Essa experiência da escassez é a base de uma adaptação criadora à realidade existente. (SANTOS, 1999.p.246)

Assim, a agroecologia aparece como uma resposta – entre outras possíveis – à crise da

agricultura modernizada e igualmente como condição de reprodução social de uma camada de

agricultores marginais em nível econômico. O que é definido aqui como alternativo,

transforma-se em ajustamento ao sistema dominante, mesmo que se pretenda um modo

singular de inserção social baseado em ações simultâneas de resistência e adaptação.