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2. FORMAS IDEOLÓGICAS NO BRASIL

2.3 Neoliberalismo

2.3.1 Da controvérsia ao consenso

Com o fim do regime militar, o discurso desenvolvimentista do Estado brasileiro foi substituído pelo das chamadas políticas de ajustamento, propostas de reforma econômica e administrativa que decorriam do contexto mundial do neoliberalismo. O neoliberalismo no Brasil, entretanto, – da mesma forma que nos demais países, na verdade – é discutido no âmbito do pensamento econômico desde a metade do século XX, embora tenha se tornado hegemônico e capaz de influenciar os assuntos governamentais apenas a partir de 1980. É possível dizer que essa evolução, no caso brasileiro, tem origem na célebre controvérsia sobre o planejamento, nas décadas de 1940 e 1950, e culmina com denominado Consenso de Washington, em 1989.

A controvérsia sobre o planejamento, como ficou conhecida a polêmica entre Roberto Simonsen e Eugênio Gudin, deu início ao primeiro e mais direto embate entre as posições desenvolvimentistas e neoliberais. De tal modo, essa controvérsia, como apresentada no item 2.2.3, pode ser considerada o ponto inaugural do neoliberalismo no Brasil.

Para Ricardo Bielschowsky, as concepções neoliberais, ao lado do desenvolvimentismo, foram algumas das mais importantes expressões do pensamento econômico brasileiro no período de 1930 e 1960, sendo Eugênio Gudin e Octávio Gouveia de Bulhões seus líderes intelectuais. Apesar de não serem propriamente contrários à idéia de planejamento e manifestarem-se a favor da industrialização, os economistas dessa corrente defendiam, como pontos centrais de seu programa, a intervenção mínima do Estado, as políticas de estabilização monetária e a eliminação de medidas protecionistas ou de apoio direto à industrialização247.

247 BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do

159 Dessa forma, tais autores caracterizavam-se como aderentes típicos da ideologia neoliberal. Suas posições sempre estiveram alinhadas a de organismos internacionais difusores dessa ideologia, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), e mantinham estrita correspondência com o movimento ideológico de outros países. Nesse sentido, como pontua Bielschowsky, a corrente neoliberal brasileira pode ser considerada uma precisa extensão do neoliberalismo internacional248.

Suas discussões teóricas, no entanto, especialmente os trabalhos de Eugênio Gudin, eram paradoxalmente lastreados na tese keynesiana do pleno-emprego. Ao passo que no mundo desenvolvido o conceito foi usado para legitimar uma intervenção estatal anti-cíclica e de manutenção do pleno-emprego, na interpretação dos neoliberais brasileiros a condição de pleno-emprego já teria sido alcançada no Brasil, o que tornaria necessário, portanto, as políticas de estabilização. Assim, com esse arcabouço teórico, os neoliberais fortaleceram seus argumentos e tornaram suas críticas aos desenvolvimentistas mais contundentes249.

Foram os esforços e as publicações de Eugênio Gudin o que fez a doutrina do neoliberalismo ganhar substância no meio intelectual brasileiro. Como destaca Carlos Von Doellinger, Gudin foi o principal proponente do ensino e da profissionalização da economia no país, tendo contribuído na fundação do primeiro curso de graduação na área. Seus livros e trabalhos tiveram grande importância nos círculos acadêmicos e influenciaram muitos economistas, dentre os quais o próprio Roberto Campos. Além disso, ocupou cargos de direção em organizações como o Banco Mundial e o FMI, de onde alargou sua influência250.

A atuação de economistas como Gudin e Octávio Gouveia de Bulhões, também embasaram a formulação de certas políticas no Brasil. Podem ser enunciadas como exemplos a criação da Superintendência da Moeda e do Crédito, articulada por

248 Ibidem. p. 41. 249 Ibidem. p. 42-45. 250

VON DOELLINGER, Carlos. Introdução à controvérsia do planejamento na economia brasileira. In: VON DOELLINGER, Carlos (ORG.). A controvérsia do planejamento na economia brasileira. Brasília: IPEA, 2010. p. 33-34.

160 Bulhões em 1945; a Instrução baixada por essa mesma instituição, na ocasião em que Gudin foi ministro da Fazenda de Café Filho; o Programa de Estabilização Monetária, lançado por Lucas Lopes no final do Governo JK e concebido sob a influência das concepções de Gudin; e, finalmente, a reforma financeira e monetária empreendida por Bulhões no início do regime militar251e252.

Foi somente com as transformações políticas do final década de 1980, no entanto, que neoliberalismo adquiriu preeminência nas propostas e ações do Estado brasileiro. Diferentemente da maioria dos países latino-americanos, como o Chile, por exemplo – um dos primeiros Estados a adotar as políticas neoliberais, antes mesmo das experiências norte-americanas e inglesas de Reagan e Thatcher –, o Brasil apresentou uma grande resistência a aderir a esse paradigma ideológico.

Para Maria da Conceição Tavares, mesmo com a crise das finanças estatais nos anos 1980, o Brasil, mantendo seu modelo de desenvolvimento, pode dar continuidade ao quadro econômico que vinha desde 1960. Tal situação, entretanto, foi repentinamente alterada em fins de 1980, com a prática de novas políticas e os desdobramentos do que se convencionou chamar de Consenso de Washington253.

A participação do Brasil no Consenso de Washington, assim como a conseqüente adoção de suas proposições, marcou a instauração formal e definitiva da ideologia neoliberal e suas instituições no País. No entendimento de Paulo Nogueira Batista, a importância do Consenso de Washington decorre do fato de tal fórmula constituir a reunião e a aprovação expressa dos princípios neoliberais, antes esparsos e diluídos em discursos vacilantes. Foi seguindo esse explícito e depurado modelo que

251

BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000. p. 40.

252 LIMA, Heitor Ferreira. História do pensamento econômico no Brasil. São Paulo: Editora Nacional,

1978. p. 171.

253 TAVARES, Maria da Conceição. O dissenso de Washington. In: BATISTA, Paulo Nogueira. Em defesa

161 o Brasil, durante o Governo Collor e após seu impeachment, aderiu irrestritamente aos preceitos e à prática neoliberal254.

De acordo com Luiz Filgueiras, o Consenso de Washington foi determinante para consolidar a agenda e as políticas neoliberais nos países latino-americanos. No Brasil, especificamente, a implementação dessas medidas teve início no Governo Collor, aprofundou-se no Governo Itamar Franco e finalmente se firmou no Governo de Fernando Henrique Cardoso. Com Fernando Henrique isso aconteceu particularmente por meio da liberalização comercial e financeira da economia, das privatizações e da deslegitimação dos sindicatos e dos movimentos sociais255.

O ideário do Consenso teve ainda larga aceitação na sociedade brasileira, sendo exaltado entre os mais diversos grupos, das classes industriais aos intelectuais. No apontamento de Paulo Nogueira Batista e de Maria da Conceição Tavares, foi o próprio empresariado brasileiro e suas instituições de classe, como a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), as instâncias mais atuantes na celebração dos ideais do Consenso e da onda neoliberal que desencadeou no Brasil256e257.

Conforme Eli Diniz e Luiz Carlos Bresser-Pereira, as políticas do Consenso de Washington seriam apoiadas principalmente por empresários dos setores financeiro, comercial e agro-exportador. Mesmo os industriais, apesar de imporem restrições quanto ao ritmo de abertura e desregulamentação, endossariam publicamente as reformas indicadas pelo Consenso258. Até intelectuais de posições renomadamente

254 BATISTA, Paulo Nogueira. O Consenso de Washington: a visão neoliberal dos problemas latino-

americanos. Caderno Dívida Externa n. 6. São Paulo: PEDEX, 1995. p. 5; 41-46.

255

FILGUEIRAS, Luiz. História do Plano Real. São Paulo: Boitempo, 2006. p. 58.

256 BATISTA, Paulo Nogueira. O Consenso de Washington: a visão neoliberal dos problemas latino-

americanos. Caderno Dívida Externa n. 6. São Paulo: PEDEX, 1995. p. 6-8.

257

TAVARES, Maria da Conceição. O dissenso de Washington. In: BATISTA, Paulo Nogueira. Em defesa do interesse nacional. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. p. 71.

258 DINIZ, Eli; BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Depois do consenso liberal: o retorno dos empresários

industriais?. Disponível em:

http://www.bresserpereira.org.br/papers/2007/07.03.Empres%C3%A1riosEliDinizBresserPereira.9Outu Out07.pdf. Acesso em: Novembro de 2013. p. 7-8.

162 críticas, sublinha Francisco de Oliveira, alinharam-se a nova proposta e desfizeram-se de seu estereótipo de esquerdistas259.

Em essência, o Consenso de Washington foi um conjunto de regras e princípios resultante de um fórum internacional intitulado “Latin American Adjustment” – ou Ajustamento Latino-Americano. Promovido em caráter informal e acadêmico pelo governo americano e por instituições financeiras como o FMI, o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), tal encontro teve por objetivo o estabelecimento e a consolidação das políticas de ajustamento macroeconômico entre os países latino-americanos. Seu conteúdo centrava-se, basicamente, em medidas liberalizantes e consistiam, na verdade, em regras dos organismos financeiros para concessão de empréstimos aos países em desenvolvimento260.

Mais precisamente, a síntese do Consenso abrangia 10 áreas: disciplina fiscal; priorização dos gastos públicos; reforma tributária; liberalização financeira; regime cambial; liberalização comercial; investimento direto estrangeiro; privatização; desregulamentação e propriedade intelectual. Em resumo, segundo Paulo Nogueira Batista, essas diretrizes conduziam, em nome da premissa do mercado auto-regulado, a duas situações: a severa limitação da atuação estatal e a abertura econômica em detrimento do interesse nacional261.

Em 1993 o fórum ainda voltou a se reunir. Dessa vez procurou-se demonstrar os resultados positivos dos ajustes econômicos e enalteceu-se a política de países como México e Argentina, adeptos por excelência das formulações apresentadas em 1989. Com isso, o Consenso de Washington logrou conquistar ampla anuência da sociedade latino-americana, em especial da sociedade brasileira, fundamentando e legitimando as políticas de ajustamento implantadas no Brasil a partir de então262.

259

OLIVEIRA, Francisco De. Neoliberalismo à brasileira. In: SADER, Emir; GENTILLI, Pablo (ORG.). Pós- neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p. 28.

260 BATISTA, Paulo Nogueira. O Consenso de Washington: a visão neoliberal dos problemas latino-

americanos. Caderno Dívida Externa n. 6. São Paulo: PEDEX, 1995. p. 5-6.

261 Ibidem. p. 26-27.

163 Cabe ainda salientar que, apesar de seu caráter genérico e focado em recomendações macroeconômicas, o receituário do Consenso e das instituições vinculadas a ele tiveram rebatimentos específicos e concretos no Brasil. Como anotam Maria Teresa Oliveira Grillo e José Marinho Nery Jr., mesmo agentes locais como prefeituras e governos estaduais, para ter acesso aos financiamentos internacionais, necessitaram adaptar seus planos e projetos às regras e preceitos neoliberais difundidos por órgãos como o FMI e o Banco Mundial263e264. São esses rebatimentos que se busca explorar mais adiante neste trabalho.

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