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PARTE II – A TENSÃO ENTRE CONTROLE TÉCNICO E LIBERDADE CRIATIVA

3. Da dialética da intoxicação em Mistérios e paixões

Na sequência inicial de Mistérios e paixões (Naked lunch, 1991), filme de David Cronenberg e uma adaptação livre do livro Almoço nu78 (Naked lunch, 1959), de William S. Burroughs, chama a atenção o conteúdo do diálogo entre Hank e Martin (Nicholas Campbell e Michael Zelniker), em uma cena que pode ser descrita como trivial se comparada à profusão de criaturas, personagens e alucinações bizarras que povoam o filme. Nessa cena, dois amigos aspirantes a escritor expõem, acaloradamente, suas visões díspares acerca do processo de escrita. Para o primeiro, a singularidade da experiência, reengendrada pelos e nos procedimentos de composição literária, só pode ser devidamente descrita/escrita se, e somente se, o texto não sofrer alteração (como a filtragem proporcionada pelo trabalho de edição e/ou reescrita) que interfira em sua espontaneidade e no ritmo das palavras. Martin, por sua vez, acredita que somente por meio da reescrita contínua e laboriosa um texto pode atingir seu estado pleno de excelência – “de equilíbrio”, em suas palavras.

De fato, não é necessário esforço para identificar nesse breve episódio uma reencenação do confronto entre as concepções antagônicas a orientar as estéticas vanguardistas, confronto esse que marcou as primeiras décadas do século passado: de um lado, o desejo pelo controle absoluto do processo de composição literária, fruto de um obstinado e diligente trabalho de depuração da escrita, alude ao estilo de escritores modernistas como James Joyce, Virginia Woolf e T. S. Eliot. Em contrapartida, a opção pelo acaso e pela aleatoriedade como procedimentos centrais no processo de criação, além de remeter aos notórios movimentos Dadaísta e Surrealista, também aponta para a ressonância e influência que tais experimentos estéticos exerceram sobre as gerações seguintes de escritores, denominada, não por acaso, como neovanguarda, a exemplo de John Cage. No caso de Burroughs em particular, a bricolagem do

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Em inglês, o título do filme é o mesmo do romance. Preferi, por essa razão, identificá-lo pelo título adotado no Brasil, tanto para distingui-lo mais facilmente do livro de Burroughs quanto porque essa renomeação remete, talvez voluntariamente, a um traço importante da recriação fílmica de Cronenberg (e central em meu argumento), a saber, seu imbricado diálogo com o gênero noir.

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chamado método cut-up79 representou um vigoroso meio de ruptura com a sintaxe formal e coesa do texto. Esse procedimento, que consiste em uma compilação aleatória de uma série de frases e textos independentes, foi exaustivamente utilizado pelo escritor como principal recurso para coligir os fragmentos de escrita que conferem a Almoço nu, e a outros escritos posteriores, a insígnia da descontinuidade e da obscuridade de sentido.

Já no que se refere especificamente à adaptação de Cronenberg (1991), a dissonância produzida por meio do choque de traços estilísticos distintos, como fragmentação e ruptura em face de uma estruturação narrativa tradicional e dos códigos e convenções do cinema

mainstream, configura-se como o vórtice de uma potente matéria formada por forças díspares a

partir da qual Mistérios e paixões se estrutura e, sobretudo, pode ser “lido”. Essa tensão assinala uma das possibilidades de interpretação do filme, bastante distinta daquela crítica (BEARD, 2006; ROSENBAUM, 2000) que concebe a adaptação do livro, feita pelo cineasta canadense, como uma espécie de roman à clef, isto é, como uma representação do processo de intoxicação e dos efeitos alucinatórios experienciados por Burroughs e posteriormente convertidos em matéria literária em Almoço nu (Naked lunch, 1959). De acordo com essa interpretação, estabelece-se entre três eventos distintos uma continuidade de ordem teleológica: a experiência do escritor com narcóticos, sua conversão em matéria literária e a posterior adaptação fílmica. Ao mesmo tempo, nota-se que, em um primeiro momento no filme de Cronenberg, a tensão contida no desacordo entre Hank e Martin, sugere um prenúncio daquilo que pode ser descrito como o mote do filme, em particular, e um tema recorrente na filmografia de Cronenberg, em geral: a fragilidade da noção de realidade entendida como uma categoria estável, potencialmente ordenada a partir de uma experiência coletiva e dotada fundamentalmente de coesão e sentido tangível. De fato, a realidade em Cronenberg estabelece-se a partir de uma arrebatadora configuração da existência, forjada pelo consumo irrefreável de toda espécie de substâncias químicas e plasmada na individualização da experiência perceptiva, na fragmentação desta e na consequente ausência de ordenação factual. Essa última esfera, por sinal, é análoga à premissa de espontaneidade como princípio de composição literária advogada por Hank e adotada por Burroughs.

Contudo, o que parece igualmente intrigante é a maneira pela qual a tensão entre o desejo pelo controle do processo de composição e a busca por uma instância criativa, regida unicamente

79 Cf. BURROUGHS, W. S. “Letter to Rosenthal” (1960). In: Naked Lunch: Burroughs texts annexed by the editors.

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pelo gesto de recusa a uma fácil estruturação de sentido, não se constitui apenas como elemento temático deste filme. Na filmografia do cineasta, essa tensão se estabelece também como um princípio formal e um procedimento criativo. Nesse sentido, a escolha de Cronenberg em não fazer de Mistérios e paixões uma mera e convencional adaptação de Almoço nu, mas, também, em incorporar uma infinidade de outras fontes relacionadas à obra de Burroughs – além de recriar, sob a forma de uma inusitada licença poética, alguns acontecimentos e dramas verídicos da tumultuada vida do autor – pode ser interpretada como um dos índices da forma e conteúdo ambivalentes do filme. Nesse sentido, não se pode conceber a adaptação de Cronenberg como uma cinebiografia alucinante e, até certo ponto, estilizada da vida do escritor, conforme se constatará adiante em sua fortuna crítica. Ademais, se, por um lado, o próprio processo de leitura subjacente à adaptação já pressupõe a inteligibilidade do texto (nem sempre garantida), gerando, por princípio, uma atividade ordenadora de sentido – ordenação pouco ou não fornecida pelo livro Almoço nu – em contraposição, essa mesma estruturação aponta para a fragilidade latente no sentido proposto. Ironicamente, como pretendo demonstrar ao longo desse capítulo, a mesma ambivalência que no filme abarca enredo e caracterização das personagens, simula o estilo do gênero noir, no qual nada é, de fato, o que aparenta ser – um gesto formalmente aporético de constante negação dessa estruturação e de insubmissão a qualquer forma de controle formal.

Do mesmo modo, a propalada proximidade do cineasta com o universo ficcional de Burroughs não se limita apenas a um projeto de recriação cinematográfica, mas assinala o início de uma questão ainda pouco explorada por Cronenberg até aquele momento em sua carreira: a incursão no terreno da adaptação de obras literárias. Tal incursão resultou na produção de três filmes consecutivos: Mistérios e paixões [Naked lunch, 1991], M. Butterfly [M. Butterfly, 1993], baseada na peça homônima do dramaturgo David Henry Hwang e Crash – estranhos prazeres [Crash, 1996], adaptação do livro de J. G. Ballard, somando quase uma década de trabalho dedicada a projetos voltados à literatura contemporânea. Além disso, a despeito de alguns filmes anteriores baseados em outras fontes – por exemplo, Na hora da zona morta [The dead zone, 1983], adaptação do livro de Stephen King; Gêmeos – mórbida semelhança [Dead ringers, 1988], baseado no livro de Barry Wood e Jack Geasland; e A mosca [The fly, 1986], um bem sucedido remake do filme A mosca da cabeça branca [The fly, 1958], assim como seu primeiro

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sucesso comercial – um dos traços distintivos da filmografia de Cronenberg está justamente em seu interesse e predileção por filmar material próprio, conforme atestam seus primeiros filmes80.

Evidentemente, tal característica o apartou do séquito de cineastas que, ávidos por uma narrativa que se ajuste facilmente às convenções, às fórmulas e aos códigos do cinema

mainstream, buscam na literatura uma fonte segura e abundante de histórias com alto potencial

de transposição para a mídia do cinema. O diretor norte-americano John Huston desponta como um típico exemplo de cineasta dessa categoria, dada sua afeição em dirigir solenes adaptações cinematográficas das mais célebres obras e escritores da literatura anglo-americana, por exemplo, A glória de um covarde [The red badge of courage] (1951), de Stephen Crane; Moby

Dick (1956), de Herman Melville; Adeus às armas [A farewell to arms] (1957), de Ernest

Hemingway; A noite do iguana [The night of the iguana] (1964), de Tennessee Williams; e Os

vivos e os mortos [The dead] (1987), de James Joyce, só para mencionar os títulos mais

canônicos. Igualmente notável é o fato de que, mesmo diante da infinidade de procedimentos pelos quais o cinema se apropria da literatura, esses filmes citados indubitavelmente carregam em si – tanto por seus distintivos títulos quanto pela estruturação narrativa, que se esforça em emular a literatura – a aura e o peso das obras que os originaram. De fato, são exemplos peremptórios de uma categoria de adaptação fílmica, como definida por Andrew (2000, p. 32), que prezam pela ‘fidelidade de transformação’ [fidelity of transformation], na qual a fidelidade à fonte é mantida, ao menos no que se refere à estrutura narrativa. Em geral, essa escolha pela fidelidade deve-se ao fato da prosa do romance ou do conto fornecer um número considerável de informações acerca do contexto, além, é claro, dos elementos básicos da narração que modulam as convenções do ponto de vista do narrador-câmera no cinema, já discutidos no primeiro capítulo desta tese.

As adaptações literárias feitas por John Huston apresentam-se, também, como excelentes exemplos para se observar as implicações engendradas pelas adaptações que buscam operar o mínimo de interferência na versão fílmica do texto. Tome-se, por exemplo, o caso de seu último e celebrado filme, Os vivos e os mortos [The dead, 1987], a primeira versão cinematográfica do conto de James Joyce, Os mortos (The dead, 1914). Empenhado em imprimir um alto grau de realismo tanto à atmosfera temporal quanto às personagens tipicamente dublinenses que

80 O livro de Peter Morris, David Cronenberg: a delicate balance (1994), esboça um apanhado minucioso da

formação e das principais influências do cineasta, além de fornecer uma profunda e detalhada análise de seus primeiros trabalhos.

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participam do tradicional recital/baile/jantar anual na casa das irmãs Kate e Julia, Huston recrutou um elenco de atores locais, genuinamente irlandeses. Além disso, o diretor fez questão de filmar na própria cidade de Dublin – mesmo que grande parte das cenas tenha sido realizada em estúdio e não em locação. A transposição do conto para roteiro cinematográfico, supervisionada pelo próprio diretor, foi feita por seu filho e esforçou-se por recriar, literalmente, todas as cenas e episódios presentes no conto; muitas falas, de fato, são reproduções literais do texto de Joyce.

Todo esse aparato resulta, ironicamente, em um efeito contrário ao almejado pelo diretor, culminando no afastamento entre filme e livro e não na desejada aproximação entre ambos. A razão de tal dissonância pode ser explicada pela falha de Huston em supor que uma emulação do estilo do escritor poderia ser mais efetivamente operada por meio da utilização de elementos e dispositivos fílmicos equivalentes à linguagem da narrativa do conto. O diretor poderia, por exemplo, em sua transposição do texto para imagens, emular/buscar a singular conjunção entre precisão realista e a impressionante carga simbólica, marcante na prosa joyceana (cf. DURÃO, 2009, p. 76). Ao invés disso, Huston prefere concentrar-se fidedignamente no realismo expresso na estrutura narrativa e acaba reproduzindo, quadro a quadro, cada sequência de episódios, incluindo grande parte das falas contidas nos diálogos das personagens de maneira literal.

Mas é, sem dúvida, no tipo de narrador-câmera adotado por Huston que, indiscutivelmente, o filme se distancia do estilo característico do narrador joyceano, deixando escapar uma excelente oportunidade para experimentação e ruptura com o idioma e códigos fílmicos do cinema padrão de Hollywood. Conforme aponta a crítica especializada do escritor, um dos traços inovadores em sua prosa reside no desenvolvimento de uma técnica narrativa que engendra um narrador altamente mutável – chamado por Hugh Kenner de “Princípio do Tio Charles” [1978] – que se deixa contaminar pelos usos verbais dos personagens que estão em destaque (a exemplo do literally da frase inicial do conto: “Lily, the caretaker's daughter, was literally run off her feet.” [JOYCE, 2006, p. 152]). Essa particularidade do narrador em Joyce, traço distintivo de sua prosa a assinalar a extraordinária oscilação entre o literal e o simbólico, não encontra nenhum equivalente em Os vivos e os mortos. Ao contrário, a variação de planos (aberto, médio e longo) quase inexiste, predominando os planos médios. Com efeito, o acompanhamento das personagens ao longo das cenas a partir de um ponto de vista estável, isto é, a partir do ponto de vista do narrador-câmera, restringe ou mesmo elimina a possibilidade de

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desvio da atenção do espectador para algo além da ação dramatizada diante de si, visto que se busca equilibrar o plano das emoções das personagens, tornando-as constantes e estáveis. Destarte, ação e personagens afiguram exatamente aquilo que a câmera mostra. Dito de outro modo, há pouca ou nenhuma abertura para ambivalências ou oscilações, mas sim uma tangibilidade de sentido muito característica do cinema padrão norte-americano.

Não surpreende, assim, que Huston tenha feito sua versão fílmica do conto ao estilo padronizado do cinema de Hollywood – uma convenção estética predominante nos filmes do diretor (cf. BARRY, 2001). Em linhas gerais, a aplicação de procedimentos e códigos fílmicos que primam pela inteligibilidade do enredo, evitando possíveis ambivalências e fissuras na coesão narrativa, faz com que Os vivos e os mortos seja tudo menos um filme próximo ao estilo joyceano de escrita. Em outra palavras, a adaptação de Huston representa uma espécie de tradução literária para outro idioma, na qual o ímpeto em transpor o eixo central da narrativa para que se preserve, ilusoriamente, uma unidade de sentido justificaria a omissão ou a precaução em não ousar qualquer inovação estética no idioma-alvo. Nesse sentido, o uso que Huston faz do idioma cinematográfico e dos padrões estéticos, familiares aos espectadores, para lhes apresentar uma história, também já familiar, elimina qualquer forma de estranhamento – justamente o estranhamento que fez de Joyce, Joyce.

Nota-se que o caso acima esboçado se caracteriza como um típico exemplo de estruturação, digamos, mais tradicional, a partir da qual a relação entre cinema e literatura estabeleceu suas bases. É sabido, ainda, que estudiosos da área de adaptação cinematográfica apontam constantemente, e com toda razão, para uma miríade de abordagens diversas em que a vinculação entre texto literário (em toda a amplitude de sua definição) e cinema pode ser concebida para além das noções de fidelidade à obra-fonte81: amostras de incursões inovadoras são igualmente abundantes, como a própria filmografia de Cronenberg atesta. Contudo, não há como negar que a existência de uma grande demanda do público por adaptações, seja do último

best-seller seja de um clássico da literatura – demanda que fetichiza o texto-fonte e exige a sua

representação de maneira a mais literal possível –,impulsione a produção em escala industrial. As considerações sobre o padrão dominante nas adaptações de textos literários pelo cinema mainstream são extremamente pertinentes para o cotejo com os procedimentos e escolhas

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Sobre essa questão, ver: MacFarlane, B. Novel to Film: an introduction to the theory of adaptation. New York: Oxford University Press, 1996.

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feitas por Cronenberg em sua abordagem referente ao material não escrito por ele. Não obstante, não há dúvidas de que temas recorrentes nas obras de Burroughs, Hwang e Ballard – a exemplo da constante indeterminação entre realidade e alucinação, ou da dilatação das esferas da sexualidade perante a tecnologia – encontram-se em sintonia com os temas de interesse do cineasta. Ao mesmo tempo, o tratamento dado pelo cineasta a esses textos em suas adaptações evidencia o desejo irresoluto de tomá-los como ponto de partida para a exploração e aprofundamento dessas questões, desobrigando-o a manter qualquer tipo de comprometimento com a estrutura formal dessas obras. Sob esse prisma, a vinculação firmada por seu cinema com a literatura destaca-se pelo impulso essencial para a experimentação artística, e não para a feitura de um produto com potencial descabidamente lucrativo e vasta mas pobremente explorado por outra mídia, como é de praxe na indústria cinematográfica mainstream. Ademais, vale ressaltar, a predileção por essa via menos convencional desencadeou uma série de transtornos para a carreira do diretor: os três filmes mencionados foram fracassos retumbantes tanto de público quanto de crítica – Crash chegou a ser banido de várias salas de cinemas em Londres. Como consequência, mesmo após Cronenberg ter se firmado como um diretor de prestígio, os financiamentos para seus filmes seguintes praticamente desapareceram.

Mesmo assim, a cada novo filme, David Cronenberg reafirma a tese de que as questões mais caras à literatura, a exemplo dos meandros e ambivalência da subjetividade, são também o eixo temático de seus filmes. O próprio cineasta, ao discorrer acerca de suas influências literárias mais significativas e de sua relação com a literatura, reitera sua sujeição à ideia, até certo ponto esquizofrênica, do artista plasmado a partir de uma substância literária romântica/existencialista/modernista (cf. BEARD, 2006, p. 123), uma conjunção de herói, explorador e transgressor – em particular, das formas mais inauditas de transgressão. Não surpreende, assim, que sua notória afeição pela obra de Burroughs o tenha, ao longo de sua carreira, levado a emular o intrincado e, por vezes, indigesto escritor norte-americano, em uma tentativa de conceber histórias que, por meio do caos associativo característico do universo de Burroughs, explorem de forma incisiva as facetas mais recônditas da desordem psíquica de suas personagens.

Nada mais natural que, por se tratar de um filme cunhado diretamente da obra de Burroughs, Mistérios e paixões figure uma série de elementos que avalizam a interpretação desse filme como um esforço, ao mesmo tempo extremo e virtuoso, de emulação, do ponto de vista

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tanto do conteúdo quanto da forma literária de Burroughs. Logo, o esforço do diretor em forjar uma narrativa pautada pela ruptura com a objetividade – por meio da imersão em um império de desordem psíquica e da transmutação abjeta (advindos em primeira instância da intoxicação do protagonista, William Lee) – dramatiza, certamente, os procedimentos de composição de Burroughs. Em contraposição, um aspecto aparentemente pouco explorado dessa intoxicação, para além de seu patente potencial em constituir-se como um canal capaz de dragar o indivíduo para outra esfera (totalmente transformada) da percepção, está em examinar quão próxima esta última dimensão da realidade, de fato, se encontra de uma estruturação do “mundo administrado”82

. Isso acontece particularmente quando os ditos espaços de ruptura – igualmente constituídos de formas, sons e imagens – são tematizados pelo próprio cinema, um meio no qual a própria natureza encontra-se historicamente vinculada a esse potencial de transformação da percepção por meio de aparatos técnicos. É exatamente essa questão, dentre outras, tão presente no universo fílmico do cineasta, que as próximas seções deste capítulo vão discutir.

3.1 – “Nada é verdade: tudo é permitido” – a ruptura com as convenções narrativas e o sentido em Almoço nu

O livro Almoço nu, publicado em 1959, tornou-se, em poucos anos (especialmente após vencer um tumultuado processo judicial de censura), referência para toda uma geração de leitores que nele viam a expressão de uma escrita modernista transgressiva (cf. ROSENBAUM, 2000), cunhada sobretudo a partir do procedimento de colagem fragmentada e aleatória de frases e trechos de textos. Um procedimento que, por obstruir a instauração de um sentido unívoco, multiplica o número de interpretações possíveis. Em termos estruturais, o livro é destituído de uma linha narrativa coesa e, contrário ao filme de Cronenberg, não possui uma personagem central – embora William Lee seja o personagem-narrador de alguns capítulos iniciais e finais de

Almoço nu. No geral, sua estruturação consiste fundamentalmente de uma sequência de esquetes,

denominados por Burroughs, em sua extensa correspondência com Ginsberg e Kerouac, de ‘rotinas’ (BURROUGHS, 1994, p. 287). Dada a brevidade quase episódica de cada esquete, as

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Adorno utiliza tal expressão para descrever o modo como, na sociedade capitalista, as relações sociais são, cada vez mais, tomadas por um processo de mercantilização e reificação. Além disso, o caráter altamente competitivo dessa configuração de mundo burocrático modula todas as esferas da vida social, forjando um tipo de mentalidade em consonância com esse sistema.

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