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Estável, porém nunca Estático: Princípios de Ajustes e Incorporações nos Protocolos Fílmicos do Cinema Padrão

PARTE I – A INDÚSTRIA CULTURAL E O IDIOMA TECNICAMENTE CONTROLADO DO CINEMA PADRÃO

2. Estável, porém nunca Estático: Princípios de Ajustes e Incorporações nos Protocolos Fílmicos do Cinema Padrão

No início da década de 1940, o estrondoso sucesso de bilheteria e crítica de dois filmes, o

Mágico de Oz [The wizard of Oz, 1939] e E o vento levou [Gone with the wind, 1939],

confirmaram de maneira incontestável a capacidade do cinema hollywoodiano para superar habilmente novos desafios técnicos, incorporar modificações inicialmente alheias e avessas à sua linguagem e, ao mesmo tempo, consolidar os protocolos narrativos visuais desenvolvidos nas três primeiras décadas. No caso de Mágico de Oz, o apelo de suas canções e a intercalação equilibrada entre números musicais e ação dramática, sem diálogos excessivos ou canhestros, mostrou que duas dificuldades técnicas enfrentadas na década anterior haviam sido superadas: primeiro, o desafio de sincronizar a imagem projetada na tela com o som da gravação das vozes dos atores; já o segundo dava conta da formação de uma nova categoria profissional de trabalho – a do roteirista que não apenas fosse capaz de conceber o argumento de uma história, mas que também escrevesse diálogos adequados ao formato do cinema. O fato de E o vento levou34 não ser um musical foi ainda mais significativo, pois atestava que a bem sucedida incorporação do som só fez acrescentar o efeito de realismo à gramática narrativa do cinema norte-americano, iniciado pelos recursos de montagem e composição de quadro35. Ademais, enquanto o gênero de filme musical permitiu que os recursos sonoros recentes fossem testados e ajustados exaustivamente durante a década de 1930, a transição para o gênero melodrama, a exemplo de E

o vento levou, atestava a maturidade e confiabilidade desses ajustes, podendo agora ser usados

indiscriminadamente nos demais gêneros fílmicos populares à época (western, noir). Por sua vez, a transposição do volumoso livro de Margaret Mitchell, ganhador do prêmio Pulitzer de 1936,

34 Cabe ressaltar que esse reconhecimento de realização técnica (e artística, dirão alguns críticos, SCHATZ, 1983;

FAWELL, 2008) foi ainda validado por uma recém-criada forma de selo de garantia de qualidade do produto e, talvez a mais longa e duradora estratégia de amplificação da divulgação e projeção de um filme, a premiação do Oscar (26 de maio de 1929). No caso em questão, os dois filmes foram indicados, além de várias categorias técnicas, ao prêmio de melhor filme, levando, como se sabe, E o vento levou. Já O mágico de Oz ganhou apenas melhor trilha sonora original e melhor canção original: Over the Rainbow, composta por Harold Harlen (música) e E. Y. Harburg (letra). http://www.imdb.com/title/tt0032138/awards, acessado em 13/02/2012.

35 Não surpreende que, por essa razão, E o vento levou tenha recebido também os prêmios técnicos de melhor

fotografia (Ernest Haller e Ray Rennahan), direção de arte (Lyle R. Wheeler), montagem (Hal C. Kern e James E. Newcom) e roteiro (Sidney Howard), http://www.imdb.com/title/tt0031381/awards, acessado em 13/02/2012.

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provou que Hollywood já dispunha de um aparato técnico e de um time de roteiristas com

expertise suficiente para adaptar às telas do cinema, sem muitos percalços, narrativas em prosa36

– independentemente de sua extensão e complexidade.

Contudo, nas décadas seguintes (1950-60) Hollywood, mais uma vez, não passaria incólume diante das profundas transformações (políticas, econômicas, sociais, tecnológicas, etc.) provocadas pelo pós-guerra e seus inúmeros desdobramentos. Críticos apontam uma série de fatores correlatos que convergiram durante esse período, afetando significativamente o status, até então absoluto, de entretenimento de massas que o cinema de Hollywood desfrutara por quase meio século (cf. SCHATZ, 1983; STEVE, 1985; BARRY, 2001; FINLER, 2003; MALTBY, 2003, FAWELL, 2008, LANGFORD, 2010). O advento e rápida popularização da televisão, comprovada nas décadas seguintes como a mídia mais ubíqua e influente da segunda metade do século passado, mostrou-se uma forma mais barata e prática de lazer – não era mais preciso sair de casa, e a variedade de programas oferecida pela grade de programação ao longo do dia/semana abrangia os interesses e gostos de toda a família indistintamente. Além disso, os canais de televisão passaram a investir maciçamente na produção de telefilmes e séries de longa duração, em geral com orçamento relativamente modesto, permitindo, assim, um maior número de produções – deve-se frisar, contudo, que utilizando exatamente as mesmas convenções visuais de narrativa já estabelecidas pelo cinema hollywoodiano. A explosão do setor imobiliário, resultado do acelerado crescimento econômico no pós-guerra, fez surgir um novo tipo de moradia: os subúrbios. Esses, por sua vez, tornaram-se a expressão máxima do modo americano de vida [the American way of life]. Ter uma casa no subúrbio (acompanhada de um carro, televisão e cachorro) converteu-se um símbolo absoluto de ascensão social. Consequentemente, o deslocamento das famílias para longe do centro das cidades, área onde se encontrava a maior parte das grandes salas de exibição, fez com que a ida ao cinema37 se tornasse pouco viável, além de relativamente cara.

36 Naturalmente que esse desafio advinha, em grande parte, não da complexidade ou elaboração na prosa de

Mitchell, mas pela ainda recente relação do cinema com a literatura no que tocava a transposição da prosa literária para a linguagem cinematográfica, pois, como visto na seção anterior, a natureza de linearidade narrativa do cinema é fortemente baseada nos protocolos narrativos da literatura romântica/vitoriana do século XIX. O caso fica realmente interessante e, logo, passível de exame, justamente quando o material de origem adaptado para o cinema rompe com códigos padrões desse tipo de prosa, a exemplo de Almoço nu, de W. S. Burroughs, ou ainda de Cidade de Deus, de Paulo Lins.

37 Essa questão de logística seria superada nas décadas seguintes com a invenção das novas salas de exibição: os

cinemas multiplex, como ficariam conhecidos, inseriram as salas de cinema, geralmente menores, mas mais confortáveis e aparelhadas com a mais alta tecnologia, nos novos templos de consumo, os shoppings centers,

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Em sua própria estrutura interna, a indústria do cinema norte-americano, no início da década de 1950, enfrentou problemas de ordem diversa que enfraqueceram gradual e consideravelmente o sólido e lucrativo sistema de produção, distribuição e exibição sobre o qual os cinco grandes estúdios de Hollywood (Fox Film Corporation, Metro-Goldwyn-Mayer, Paramount Pictures, RKO Radio Pictures, Warner Bros.) se erigiram entre os anos de 1910 e 1930. Schatz aponta, em particular, o caso do golpe sofrido em 1948, quando a Suprema Corte dos Estados Unidos, em um julgamento lendário na história do cinema, conhecido como o “Caso Paramount”, pois esse foi o primeiro estúdio a sofrer a ação, julgou que o então estabelecido “sistema de estúdio” de Hollywood configurava uma forma de monopólio e, portanto, deveriam “renunciar” a ao menos um dos três segmentos que compunham sua forma de operação de negócios (SCHATZ, 1983, p. 18). Em suma, os estúdios não poderiam mais produzir os filmes (ou fitas, como eram popularmente chamados) e alugá-los às companhias de distribuição (controladas por eles) que os repassavam para as grandes salas de exibição [movie theaters], também sob seu controle. Juntamente a esse golpe, tal período coincidiu com a morte ou aposentadoria da “primeira grande geração” de diretores (Ford, Hawks, Sirk, Capra, Walsh), cujos filmes foram essenciais para o desenvolvimento e solidificação dos códigos narrativos visuais do cinema padrão norte-americano. Enquanto isso, surgia uma nova geração de cineastas dispostos a fazer filmes mais ousados na temática e inovadores na forma (cf. CORRIGAN, 1998, p. 38-63)38. Por fim, pela primeira vez em sua história, Hollywood testemunhou o surgimento de vários movimentos de cinema tanto na Europa quanto na América Latina39, fortemente inclinados a contestar sua soberania estética e mercadológica e rivalizar com ela. A despeito das particularidades estéticas de cada um desses movimentos cinematográficos em geral, todos partilhavam a mesma premissa de buscar alternativas estético-narrativas (fosse no conteúdo ou na forma) que rompessem com o ‘realismo forjado’ pelos padrões normativos do cinema de

tornando assim obsoletos os movie theaters. No Brasil, como se sabe, essas grandes salas foram logo ocupadas pelas igrejas neopentencostais.

38 No documentário Cem anos de cinema – uma viagem pessoal através do cinema americano [ A personal journey

with Martin Scorsese through American movies, 1995], o diretor Martin Scorsese aponta Elia Kazan, Billy Wilder e Stanley Kubrick como três cineasta iconoclastas que, entre os anos de 1950 e 1960, revigoraram a então saturada fórmula de cinema padrão de Hollywood através da ousadia temática de filmes como Uma rua chamada pecado [A streetcar named Desire, Kazan, 1951), Clamor do sexo [Splendor in the grass, Kazan, 1961, A montanha dos sete abutres [Ace in the hole, Wilder, 1951], Lolita [Lolita, Kubrick, 1962], Dr. Fantástico [Dr. Strangelove or? how I learned to stop worrying and love the bomb, Kubrick, 1964], 2001: uma odisséia no espaço [2001: a space odyssey, Kubrick, 1968].

39 As implicações estéticas e o impacto desses movimentos na estrutura do cinema narrativo serão discutidos mais

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Hollywood e que, em vários países, já havia se consolidado como modelo de fazer cinematográfico40. Por sua vez, a quebra do monopólio junto às salas de exibição permitiu uma entrada de filmes estrangeiros41 nunca antes vista nos Estados Unidos, já que os exibidores não estavam mais subordinados aos ditames dos estúdios, podendo negociar filmes com aluguel mais barato de outros distribuidores (COOK, 1998, p. 11-37).

Diante da evidente queda nas bilheterias de seus filmes, a indústria cinematográfica norte-americana precisou contra-atacar imediatamente, buscando alternativas e desenvolvendo novidades capazes de atrair novamente os espectadores para as salas de exibição. A diversidade dos tipos de aparatos técnicos então inventados (os famigerados gimmicks) sugerem a proporção do empenho, e do desespero, dos estúdios para seduzir e atrair as plateias, indo da intensificação das cores da película (cinemacolor) e novos formatos de tele/exibição (3D, cinerama,

cinemascope e Vista Vision42) até o artifício medonho conhecido como smell-on-vision43. Contudo, com a sucessão de tentativas malfadadas de recuperar as plateias, em meados dos anos de 1960 ficou evidente para a indústria cinematográfica de Hollywood que o contra-ataque mais eficiente e capaz de ‘arrancar’ as grandes massas de espectadores da frente da tela da televisão, fazendo-os deixar o conforto de suas novas e seguras ‘comunidades’, os subúrbios, seria através de um novo formato estratégico de filme: o arrasa quarteirão [blockbusters] (cf. BALIO, 1990 p. 42-3). Dava-se início, assim, a um ‘novo’ período em que épicos melodramáticos de grande orçamento viriam a se tornar fenômenos sociais44, cujo inflacionamento dos valores dos ingressos resultaria nas maiores arrecadações de bilheteria da história do cinema norte- americano45.

Em linhas gerais, pode-se dizer que a principal transformação do cinema nesse período refere-se à mudança na concepção do que seria uma grande massa de espectadores e, logo, na sua forma de tratamento/abordagem. Nesse sentido, o investimento na diversidade temática dos filmes aparentou ser inicialmente uma solução viável à indústria cinematográfica que poderia,

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Sobre essa questão, Leite (2005) faz um interessante exame de como os filmes dos estúdios da Vera Cruz no Brasil buscavam alcançar em seus filmes um alto padrão de qualidade baseado nas convenções estético-narrativas de Hollywood, a exemplo de O cangaceiro (1953).

41 Algo impensável nas décadas anteriores.

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Para cada uma delas, ver STAM. R.; BURGOYNE, R.; FLITTERMAN-LEWIS, S., 1992.

43 Era um sistema que liberava odores durante a projeção de um filme para que o espectador pudesse literalmente

cheirar o que estava acontecendo na história. A técnica foi criada por Hans Laube e lançada no filme com o sugestivo título The scent of mistery [O odor do mistério, 1960].

44 Sobre filmes-evento, ver a discussão de Ezra e Rowden (2006) sobre o fenômeno Star wars. 45 Ver http://boxofficemojo.com/alltime/adjusted.htm, acessado em 04/03/2012.

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portanto, oferecer ao espectador uma gama tão variada de opções de filmes quanto a proporcionada pela grade de programação televisiva. Diferentemente dos filmes da primeira metade do século, cuja centralidade temática era consideravelmente limitada aos gêneros de drama, western e musicais (atingindo um público majoritariamente adulto e genérico), as produções cinematográficas norte-americanas passaram então a investir em filmes pensados para grupos de espectadores específicos e com gostos e interesses particulares. Logo, os títulos dos filmes lançados nesse período fornecem uma ideia do tipo de grupo social visto pelos estúdios como potenciais consumidores. A variedade é imensa e impressiona o grau de subdivisão em que uma única categoria poderia desdobrar-se. A julgar pelos filmes de artes marciais e lutas em geral, voltados para um público jovem, masculino e de educação formal básica/elementar, ou ainda, pelos filmes protagonizados por personagens negros e centrados em tema e universo congêneres, a indústria do cinema modulou e passou a, literalmente, ‘explorar’ um gênero muito específico de filme que ficou conhecido como “exploitation”46

. Uma outra categoria de filmes menos conhecida fora dos Estados Unidos, ou mesmo nas grandes cidades, justamente por seu grau de especialidade pelo público ao qual se destinava, foram os filmes bizarros de “acidentes automobilísticos nas estradas”, em geral, destinados às plateias do interior (cf. SCHATZ, 1983, p. 24) . Especialmente em grandes centros urbanos, outro grupo de jovens de classe média alta, com maior educação formal, juntamente com cinéfilos e intelectuais47, requeria filmes mais ‘experimentais’, particularmente ao estilo de movimentos cinematográficos emergentes (Europa, Ásia e América Latina). Não obstante, enquanto o apetite de críticos de cinema, intelectuais, professores e estudantes universitários era parcialmente saciado com algumas incursões mais inovadoras e experimentais, ‘vendendo’ literalmente a ilusão de que Hollywood podia também produzir um cinema diversificado e plural em seu conteúdo e forma, filmes “arrasa quarteirão” e outros gêneros dirigidos a um público específico mostraram-se ainda “mais protocolares e

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De todas as formas de exploitation no cinema, a mais conhecida e popular foi a blaxploitation or blacksploitation. A rigor, uma distinção geográfica caracterizou esses filmes. Quando se passam em centros urbanos da costa leste ou oeste dos Estados Unidos, tais filmes retratam histórias centradas em cafetões, crimes, matadores profissionais e traficantes de drogas, a exemplo de [The black angels, 1970], [Shaft, 1971], [Hit man, 1972], [Black Caesar, 1973], [Abby, 1974]. Já quando ambientados no sul, os temas focam em questões locais como escravidão e miscigenação. Além disso, este gênero ainda emulou em sua própria temática outras categorias de gênero já estabelecidas, a exemplo de ação/artes marciais [Three the hard way, 1974], westerns [Boss nigger, 1975], horror [Blacula, 1972], [Abby, 1974], comédia, [Uptown Saturday night, 1974] (cf. GRANT, 2007, p. 27-49).

47 Cabe lembrar que a partir dos anos de 1960, filmes despertam o interesse de professores universitários e começam

a ser incorporados nos cursos de graduação na área de humanas em várias universidades norte-americanas. Ver Bordwell, 2005. p. 25-70.

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conservadores na forma, recrudescendo e solidificando ainda mais os códigos e fórmulas narrativas criadas pelo cinema padrão de Hollywood” (LANGFORD, 2010, p. 139).

Contudo, do ponto de vista formal48, entre esses dois segmentos populares de filmes, o que mais se pautou e explorou as convenções estético-narrativas do cinema padrão de maneira efetiva foram os filmes ‘arrasa quarteirão’, justamente por acrescentarem a essas fórmulas estabelecidas um apurado refinamento técnico. O carro chefe de tais aparatos foram, certamente, os efeitos especiais que caracterizaram toda uma leva de filmes do gênero – O Exorcista [The

exorcist, 1973], Tubarão [Jaws, 1975], Guerra nas Estrelas [Star wars, 1977], Contatos Imediatos do Terceiro Grau [Close encounters of the third kind, 1977], Superman – o filme

[Superman, 1978]. Já o espírito dessa nova geração de cineastas que imprimia um novo fôlego à produção cinematográfica, conhecida como a primeira egressa das escolas de cinema, foi sintetizado da seguinte maneira por James Monaco em uma crítica bastante apurada e mordaz:

Fica evidente agora, também, que a geração de estudantes de cinema – Bogdanovich, Friedkin, Lucas, Spielberg, DePalma, Scorsese, entre outros – aprendeu tudo sobre cinema, e nada sobre a vida. O resultado disso tem sido um cinema que é formal e extraordinariamente sofisticado ao mesmo tempo em que é intelectualmente pré-adolescente. (MONACO, 1979, p. 50).

Monaco ainda sugere que os filmes dessa “nova Hollywood” são dominados temática e formalmente pelo mecânico e inumano. Era o prenúncio de uma era que seria dominada por naves espaciais, extraterrestres, seguida por parques de dinossauros, Titanics, Matrixes, chegando, até onde se viu recentemente, ao universo colorido de neon e multissensorial dos avatares. Em todos esses filmes, e em seus incontáveis derivados, o refinamento do técnico operou (e continua operando) em função de um único objetivo: a excitação absoluta dos sentidos49. Em síntese, ao comprar um ingresso para um filme, o espectador estava adquirindo um passe para experienciar o mundo de forma extrassensorial e, logo, muito mais intensa do qualquer evento no mundo exterior poderia ser. Notadamente, há na crítica de Monaco ecos do

48 Considerando minha escolha pela questão da forma do filme, não me deterei aqui acerca das já conhecidas e

amplamente debatidas dimensões referentes à singularidade que envolvem as estratégias de publicidade que caracterizam os filmes ‘arrasa quarteirão’ (cf. KING, 2000; SUTTON; WOGAN, 2009). Contudo, nunca é demais ressaltar que, juntamente com o refinamento das técnicas formais, esses filmes estabeleceram um novo padrão de publicidade e divulgação de um produto cultural através de campanhas massivas e diversificadas, denominadas posteriormente de “virais”, pelo modo, muitas vezes invisível, com que contagiavam e ainda contagiam tudo e a todos.

49 Esse argumento será explorado mais detidamente ao longo dos capítulos sobre Mistérios e paixões e Cidade de

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pensamento de Adorno e Horkheimer no que concerne ao modo como a indústria cultural, mediante a utilização de recursos tecnológicos cada vez mais sofisticados, engendra um novo tipo de mímesis que reelabora formalmente a realidade representada, pois a promessa do cinema, assim como das outras mercadoria culturais50, é de oferecer\vender um substitutivo para a experiência sensível que se tem e que se pode ter do mundo. É também muito salutar na crítica de Monaco, mais uma vez em sintonia com o pensamento de Adorno e Horkheimer, a observação de que a infantilização das plateias (ou regressão, para remeter à crítica dos pensadores frankfurtianos) deve-se justamente ao alto grau de sofisticação da forma e não aos produtos culturais de qualidade visivelmente inferior e canhestra51. O argumento acerca da sofisticação da forma dos produtos culturais como um imperativo para sua efetividade é uma constante nos escritos de Adorno sobre os procedimentos da indústria cultural, procedimentos que são descritos do seguinte modo na Teoria estética (1997):

Form works like a magnet that orders elements of the empirical world in such a fashion that they are stranged from their extra-aesthetic existence, and it is only as result of this strangement that they master the extra-aesthetic essence. Conversely, by exploiting these elements the culture industry all the more successfully joins slavish respect for empirical detail, the gapless semblance of photographic fidelity, with ideological manipulation (ADORNO, 1997, p. 226- 27)52.

Nesse sentido, a realidade forjada pelo sofisticado aparato técnico do cinema de Hollywood objetiva ser mais sensorialmente real que o mundo experienciado fora das salas de projeção, orquestrando minuciosamente uma forma de representação invisível que não chama atenção para si ao mesmo tempo em que guia, através da atenção ao detalhe mais próximo do real, o olhar (e a mente) do espectador em processo de contínua imersão53. No universo do filme, o detalhe opera em função de reduzir os espaços cênicos às suas essências, visando apenas oferecer à plateia a promessa de um mundo idealizado. Essa realidade manufaturada, através da maquinaria

50 Atualmente os jogos de vídeo games são os maiores simuladores de realidade e um fenômeno viral entre jovens. 51 Refiro-me aqui às séries televisivas, extremamente populares nas décadas de 1960/70/80, sobre os mesmos temas,

universos e, muitas vezes, personagens (Star trek, Superman, Batman, Twilight zone, entre outros), posteriormente teorizadas sob a “perspectiva estética” denominada camp. Sobre essa questão, ver Leite, 2011.

52 Uso aqui a tradução de Hullot-Kentor da Teoria estética para o inglês.

53 Desde o final da década de 1980, o advento da tecnologia de imagens geradas por computação gráfica [CGI] deu

uma dimensão ainda maior ao conceito de realidade virtual, substituindo maquetes de cenários (2001 – uma odisséia no espaço) e marionetes (Guerra nas estrelas) por cenários e personagens criados inteiramente por programas de computador, a exemplo de O exterminador do futuro 2 [Terminator 2: judgement day, 1991], Jurassic park – O parque dos dinossuaros [Jurassic park, 1993] e Avatar [Avatar, 2010].

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tecnológica de que fala Monaco, por sua vez, produz uma impressão de realidade limitada, pautada essencialmente em dispositivos técnicos como o espaço tridimensional e, sobretudo, no respeito às leis de continuidade.

Todavia, se, por um lado os protocolos estético-narrativos do cinema padrão de Hollywood firmaram-se como modelo de narrativa visual graças à expertise técnica de uma geração de cineastas que refinou ainda mais os procedimentos estabelecidos ao longo das primeiras décadas, por outro o fortalecimento e solidificação desse modus operandi surge justamente do confronto com movimentos estéticos cinematográficos que tencionavam romper com essa soberania e fazer filmes subsumidos a uma lógica não de produção comercial manufaturada, mas sim artística. Desde seus primórdios, a indústria do cinema norte-americano

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