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Da Estetização à encarnação: a construção do sujeito político eleitoral

A constituição do sujeito político eleitoral na

2.1 Da Estetização à encarnação: a construção do sujeito político eleitoral

Um dos processos mais evidenciados da democracia é o eleitoral que tem como ponto central a imagem, o corpo do sujeito político. Isto porque as eleições no Brasil estão calcadas, fortemente, na propaganda política eleitoral televisiva que possibilita a construção de um sujeito político moldado e estetizado para alcançar os eleitores; assim, é no momento da campanha eleitoral que o sujeito político é arquitetado. A mídia televisiva, promotora do encontro do político com o eleitor, proporciona ao candidato a possibilidade de entrar na “casa” dos eleitores para se posicionar e se exibir ao construir uma realidade: a da campanha eleitoral. Nesse caminho, os mecanismos que marcavam a “distância simbólica”, como a referência generalizante ao telespectador, e o plano aberto, foram substituídas, em pouco

42 tempo, pelo vocabulário familiar, pelo plano fechado, evidenciando o rosto do político como uma estratégia de conquista do eleitor (a) pela aproximação e não mais pelo distanciamento (DEBRAY, 1994).

Portanto, o movimento de descer do palanque, ocupar a televisão, tendo o seu rosto como foco ao produzir uma aproximação virtual, proporciona uma nova constituição ao sujeito político pautada em um processo de estetização e encarnação.

Como definir essa noção de encarnação, que parece muito volátil e até mesmo arredia a qualquer formalização? Supomos que, se ela remete, em primeira instância, aos elementos tradicionais de representação política (o programa reivindicado por candidatos e todas as referências que os ancora em uma cultura específica a uma família ideológica [Bernstein, 2003]), dimensão amplamente explorada que nós não analisaremos aqui, a encarnação supõe também, talvez mais fundamentalmente, a consideração do próprio corpo dos candidatos (COULOMB-GULLY, 2009, p.26, tradução nossa)32.

A noção de  estetização (COULOMB-GULLY, 2009) elucida a construção de um corpo político eleitoral midiatizado, visual e esteticamente agradável,  mais próximo possível do branco, heterossexual e jovem, já que estão inscritos em uma sociedade que os privilegia, que mais do que ocupar uma posição “encarna-a”. O corpo, definido como objeto de análise e como um dos protagonistas da campanha eleitoral, não se constitui por um corpo “real”, mesmo não sendo possível separá-los fisicamente, mas sim, por um corpo construído pela mídia e inscrito no dispositivo de espetacularização. Assim, retomando Coulomb-Gully (2009), seria um corpo construído pelo dispositivo midiático33 – a televisão –, que passa a ocupar um dos primeiros fóruns políticos contemporâneos ao produzir novas exigências à imagem corporal.

Pautando-nos em Coulomb-Gully (2001), de fato, a televisão dá ao corpo dos políticos uma visibilidade jamais vista na democracia contemporânea, evidenciando a predominância da discussão figurativa e estética, relacionada ao sensível, e que promove a catarse do telespectador na midiatização televisual do político.

32Texto original em francês: Comment cerner cette notion d’incarnation, qui parait bien volatile, voi rerétive à toute formalisation? Nous faisons l’hypothèse que si elle renvoie en première instance à des éléments traditionnels de la représentation politique (le programme revendiqué par les candidats et toutes les références qui les ancrent dans une culture propre à une famille idéologique [Bernstein, 2003]), dimension largement explorée que nous n’analyserons donc pas ici, l’incarnation suppose aussi, peut-être plus fondamentalement, la prise en compte du corps même des candidats. (COULOMB-GULLY, 2009, p.26).

43 Segundo a autora (2001), toda campanha pode ser lida como uma metáfora da realidade social preconizada pelo candidato. Dessa maneira, o candidato multiplica os gestos simbólicos fortes, pois a televisão sustenta uma parte importante de sua eficácia sobre o símbolo imagético. A autora ainda exemplifica, por meio da performance em campanha de J. Chirac34, o entrelaçamento do dizer e dos gestos simbólicos ditos por ele, assim “é essencialmente, por meio da imagem, que o candidato J. Chirac faz passar a dimensão social de sua mensagem e ele esforça para encarnar a ruptura que verbaliza em seu discurso” (COULOMB-GULLY, 2001, p.28, tradução nossa)35.

Podemos destacar algumas diferenças de nosso corpus ao tomarmos as observações feitas por Coulomb-Gully (2007) sobre a construção do candidato J. Chirac, que é moldada a partir de uma figura próxima ao povo simples, com o emprego de gestos que o aproximam de seu eleitor. Com o candidato Lula, na campanha de 2002, observa-se o contrário: encobre-se a figura popular e insere-se a figura do político formal que ocupa um lugar acima da população, que ocupa o palanque, assim se esforçando para encarnar a ruptura já materializada em seu discurso, segundo Piovezani “ O porta voz dos trabalhadores não se confunde com os empresários e com os políticos conservadores, mas também não é só mais um trabalhador.”(PIOVEZANI,2015,p.331). A ruptura vista em Chirac pode ser vista também pelos candidatos José Serra na campanha de 2002 e Geraldo Alckmin na campanha de 2006. É possível notarmos tal ruptura, ou seja, um deslizamento de um sujeito que ocupa um lugar de surplomb aquele que fala do lugar de poder, aquele do monólogo, da credibilidade, o governante que traz as soluções, para um sujeito que divide seu saber e poder com o eleitor, que caminha no chão, ao lado do eleitor. Tal ruptura aparece materializada na estratégia de docilização do discurso político eleitoral e na estratégia de aproximação do político com o eleitor.

Segundo Le Bart (2009), os candidatos ocupam duas posições em geral, a da proximidade e a que ele denomina surplomb (didatizado pelo próprio autor no quadro abaixo), que está relacionada com o distanciamento exercido pelo político que ocupa uma posição acima, a do palanque.

34Referente ao pleito de 1995.

35Texto original em francês : «c´est essentiellement par ce biais que le candidat Chirac fait passer La dimension sociale de son message et qu´il s´efforce d´incarner La rupture qu´il verbalise dans son discours» (COULOMB- GULLY, 2001, p.28).

44 Seria, então, pela televisão que o candidato se beneficia dessa posição que permite mostrar todo o gesto e o corpo do candidato e, assim, dando àquele sujeito, ali moldado, um lugar que nenhum modo de midiatização anterior o tivesse atribuído, tornando a televisão, em sua dimensão que capta o telespectador, aquela do sensível, o maior plano da expressão política. Assim,

36 ( Tradução nossa) -LE BART, 2009, p. 41

Symbolique de laproximité36 Symbolique Du surplomb

Le politique écoute Le politique propose

Déplacement surle terrain Prise de parole depuis les lieux de

pouvoir

Dialogue Monologue

Contacts avec les gens ordinaires Contacts avec les grands de ce

monde Démocratie participative (diffusion du

sentiment de compétence) Démocratie représentative (prédominance de laculture de remise de soi)

Action publique négociée Action publique arbitrée

Présentation de soi centrée sur la

personne Présentation de soi centrée sur lês fonctions

Prétention à la représentativité Prétention à l’exceptionnalité

« Féminin » « Masculin »

Bas Haut

Simbolismo da proximidade36 Simbolismo do surplomb

A política de escuta A política de proposição

Deslocamento pelo chão Tomar a fala do lugar de poder

Diálogo Monólogo

Contanto com pessoas ordinárias Contatos com os grandes

Democracia participativa (difusão do

sentimento de competência) Democracia participativa (predomonancia da cultura de auto- entrega)

Ação pública negociada Ação pública arbitraria

Apresentação de si centrada na pessoa Apresentação de si centrada nas

funções

Pretensão a representatividade Pretensão a excepcionalidades

“Feminino” “Masculino”

45 Com efeito, contrariamente às interações anteriores nas quais se evidenciava um modo de presença real do ator político frente à multidão, a televisão, por sua vez, organiza esse encontro de modo fictício: se uma imagem mantém uma relação de analogia com seu referente, ela resta ali apenas como uma imagem, “só uma imagem”, segundo a expressão de J.L. Godard (COULOMB-GULLY, 2007, p. 98, tradução nossa)37.

É sob o plano físico, material que o corpo do político aparece na televisão, sendo que se dá centralidade, em uma primeira visada, para uma silhueta, pequena, magra ou encorpada, assim “o uso do corpo está socialmente determinado, a relação do físico torna-se principalmente estético, o corpo torna-se uma imagem: é um corpo representação” (COULOMB-GULLY, 2007, p.106).

A noção de encarnação é tomada no sentido mais abstrato de “representação simbólica” como um conjunto de valores que o candidato carrega, assim tornando “o corpo do político o primeiro operador de uma mise en scène figurativa integrando a aparência física em geral em relação ao espaço” (COULOMB-GULLY, 2007, p.107). Encarnar está além de ocupar um espaço, de falar daquele espaço ocupado, mas sim algo mais intenso. Encarnar é se transformar em uma personagem, é não só usar o terno rústico para parecer popular, mas sim conjugar todos os procedimentos discursivos de linguagem, vestimenta, gestualidade para ser, construindo uma verdade, o sujeito político que quer encarnar. Esse sujeito, tornando o dizer e o corpo significativos, constrói assim um discurso com efeito de verdade latente.

Portanto, “por ela ser uma mídia audiovisual, a televisão faz da encarnação, em sua dimensão física e figurativa, um dos primeiros dados da representação política, do poder de encarnação dos candidatos e, por conseguinte, dos argumentos em período eleitoral” (COULOMB-GULLY, 2007, p.147). A estetização do político faz lembrar que a relação com a coisa pública pode ser tomada a partir de uma dimensão afetiva com o respaldo da televisão e por meio da mídia é constitutiva do discurso político, assim pode ligar a relação estética ao sentimental. É a partir dessa relação que temos uma guinada na construção do político na televisão, é por ela, ligada às questões de sentido que a construção do sujeito político se pauta na emoção, no emotivo e também, na garantia da circulação de sua voz em âmbito privado.

37 Texto original em francês : En effet, contrairement aux interactions antérieures qui relevaient d´un mode de présence réelle de lácteur politique face à la foule,la télévision organise cette recontre sur un mode fictif: si l´image entretient um rapport d´analogie avec son référent, elle n´en reste pas moins une image, “juste une image”, selon l´espression de J.L.Godard (COULOMB-GULLY, 2007, p. 98).

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2.2 Dizeres sobre uma arquitetura, um rosto, uma

silhueta e um verbo