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4 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E O PRINCÍPIO DA AUTONOMIA

4.1 O Direito de Propriedade

4.1.6 Da impenhorabilidade do bem de família

Diversamente do Código Civil brasileiro, a Lei nº 8.009/1990 regulamenta o bem de família como uma imposição legal, forçando o Estado, como guardião dos direitos fundamentais, a preservar o mínimo necessário à sobrevivência da família.

O bem de família, nos moldes da referida lei, “é o imóvel residencial, urbano ou rural, próprio do casal ou da entidade familiar, e/ou móveis da residência, impenhoráveis por determinação legal”133. Não é necessária, assim, a manifestação de vontade do proprietário, na individualização de um bem específico, para configuração deste como de família.

Ao analisar as diferenças entre o bem de família disciplinado no ordenamento civil e na lei ordinária, ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO descreve que:

131 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo: à luz do novo Código Civil brasileiro e da

Constituição Federal. 2. ed. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 1.

132 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Do Bem de Família. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha

(coord). Direito de Família e o novo Código Civil. 3. ed. rev. atual e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 241.

133 Id. Bem de Família: com comentários à Lei n. 8.009/90. 5. ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Revista dos

No Código Civil, o bem de família é imóvel, como o cogitado no art. 1.º sob exame, somente que, naquele, a instituição depende de iniciativa de seu proprietário, por isso que é voluntário, e do cumprimento de uma série enorme de formalidades, com os inconvenientes até aqui mostrados; neste, a constituição do bem de família é imediata e ex leges, desde que ocorram as hipóteses previstas no dispositivo de emergência, incluídos, ainda, bens móveis.

Ressalte-se, neste passo, que o novo bem de família ora cogitado é criado por norma de ordem pública, cuja argüição deve ser apreciada e decidida, realizando-se, quando for necessário, prova para demonstrar os requisitos protetores desse instituto jurídico. A nulidade absoluta pode ser invocada a qualquer tempo e decidida134.

A despeito das diferenças entre o bem de família trazido pelo Código Civil e pela Lei nº 8.009/90, esta não revogou o instituto regulado por aquele. Ambas as modalidades coexistem no ordenamento pátrio e, “embora com princípios semelhantes, apresentam requisitos diferentes e acarretam efeitos diversos”135.

O bem de família disciplinado pelo Código Civil, por exemplo, além de impenhorável, mostra-se inalienável, por força do art. 1.717. Tal regra, decorrente já do CC/1916, não foi seguida pela lei especial que regulamenta a matéria. Segundo a Lei nº 8.009/90, a impenhorabilidade do bem não implica na sua inalienabilidade, sendo facultada ao titular do imóvel a disponibilidade da propriedade136.

O intuito primordial da lei, ao criar a figura do bem de família, foi o de proteger e garantir o direito de habitação dos membros de uma unidade familiar, ainda mais diante de um período de crise econômica e total insegurança financeira como se presenciou nos primórdios dos anos 90137.

O direito social à moradia, constitucionalmente garantido, busca ofertar um ambiente digno e saudável para o bem-estar da entidade familiar. Trata-se de um direito essencial que deve ser garantido pelo Estado, representando não apenas o espaço físico da residência, mas também o local protetor da integralidade física e moral dos que ali habitam.

134 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Bem de Família: com comentários à Lei n. 8.009/90. 5. ed. rev. atual e ampl.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 168.

135 VASCONCELOS, Rita de Cássia Corrêa de. A Impenhorabilidade do Bem de Família e as novas entidades

familiares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 44.

136 VENOSA, Sílvio de Salvo. Código Civil Interpretado. São Paulo: Atlas, 2010. p. 1555.

137 Segundo Rita de Cássia Corrêa de Vasconcelos, “ainda que incompleta e deficiente, a Lei 8.009/90 surgiu

num período em que se mostrava de essencial importância limitar o exercício de direitos particulares e valorizar a moradia familiar em prol da justiça social, sobretudo diante da imprevisibilidade da economia de nosso país, comprometendo consideravelmente o setor habitacional” (VASCONCELOS, op. cit., p. 45).

Exatamente em razão desta imagem protetiva e de dignidade que se emprega ao bem de família, preservando-se não apenas o direito de propriedade, mas também o de moradia, é que se determinou a sua impenhorabilidade.

Contudo, essa impenhorabilidade do bem de família acaba por chocar-se com o princípio da livre negociação patrimonial. Está se, pois, diante de dois interesses conflitantes. De um lado, a preservação de um ambiente seguro no seio familiar e, de outro, o direito econômico inerente à propriedade.

O patrimônio do indivíduo é uma das formas de assegurar ao credor da obrigação que, se esta não vier a ser cumprida, estará respaldada no bem material. Nas lições de YUSSEF

SAID CAHALI, “o patrimônio do devedor é a garantia comum dos credores, ou mais

precisamente, no patrimônio do devedor encontra-se a garantia dos credores, na medida em que tal patrimônio responde pelas obrigações assumidas pelo seu titular, em caso de inadimplemento voluntário”138.

A impossibilidade de penhora sobre a propriedade onde o grupo familiar reside é de extrema importância na garantia da dignidade da pessoa humana, mas deve ser tutelada de modo a evitar fraudes daqueles que se utilizam deste direito para burlar obrigações contraídas. Até mesmo em razão dessas situações irregulares que possam vir a surgir, o Legislador criou exceções ao princípio da impenhorabilidade do bem de família. Segundo o art. 3º da Lei nº 8.009/1990, a impenhorabilidade da propriedade não será oponível em processo judicial movido:

I - em razão dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias; II - pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato; III - pelo credor de pensão alimentícia; IV - para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar; V - para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar; VI - por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens; VII - por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.

Vê-se, assim, que se está diante de um embate entre direitos. De um lado temos o direito de propriedade e de moradia assegurados pela ordem constitucional e, de outro, o princípio da autonomia privada, inerente a toda a relação negocial, que pode vir a ser desrespeitado quando o bem dado em garantia for considerado como impenhorável.

Neste momento, remetemo-nos ao início de nosso estudo, quando da análise da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. A livre iniciativa e negociabilidade da propriedade privada entre particulares podem sofrer intervenções da norma constitucional, sendo que este direito, originariamente privado, pode ter sua aplicabilidade sujeita à análise da eficácia do direito fundamental à moradia.

Necessário, assim, verificar como se dará a eficácia deste direito fundamental nas relações interprivadas, ou seja, se haverá aplicabilidade mediata ou imediata da norma constitucional. Para a resposta dessa indagação, importante que se faça uma análise do caso concreto, sopesando as normas conflitantes, concluindo-se pela situação de precedência.

Para tanto, vale a pena tecer algumas considerações acerca destas normas em choque, quais sejam, o direito constitucional à moradia e o princípio da autonomia privada.