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Teoria da eficácia indireta e mediata dos direitos fundamentais

3 EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA ESFERA PRIVADA

3.2 Teorias Acerca da Eficácia dos Direitos Fundamentais na Esfera Privada

3.2.2 Teoria da eficácia indireta e mediata dos direitos fundamentais

Desenvolvida originariamente na doutrina alemã, a teoria da eficácia indireta (indirekte Drittwirkung), também denominada por eficácia mediata (mittelbare Drittwirkung) tem como precursor Günther Dürig (1956). Esta teoria ganhou força e destaque quando foi aplicada pelo Tribunal Constitucional alemão no caso Lüth65, em 1958, conquistando, desde então, diversos seguidores66,67.

Segundo DANIEL SARMENTO, esta teoria mostra-se como “uma construção

intermediária entre a que simplesmente nega a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, e aquela que sustenta a incidência direta destes direitos na esfera privada”68.

Sobre a teoria, explica o referido Autor que

65 Daniel Sarmento narra com precisão o caso germânico que marcou a história alemã, por ter sido aplicado no

caso, pela Corte Constitucional, a teoria da eficácia mediata dos direitos fundamentais às relações privadas: “Tratava-se de discussão relativa à legitimidade de um boicote contra um filme dirigido pelo cineastra Veit Harlan, que fora colaborador do regime nazista, organizado em 1950 pelo Presidente do Clube de Imprensa de Humburgo, Erich Lüth. A empresa distribuidora do filme insurgiu-se contra o boicote e obtivera decisão da Justiça Estatal de Humburgo, determinando a sua cessação, com base no art. 826 do Código Civil alemão, segundo o qual “quem causar danos intencionais a outrem, e de maneira ofensiva aos bons costumes, fica obrigado a compensar o dano”. Inconformado com o julgamento, Lüth interpôs reclamação constitucional (Verfassungsbeschwerde) para o Tribunal Constitucional. Esse acolheu o recurso, fundamentando-se no entendimento de que cláusulas gerais de direito privado, como os “bons costumes” referidos no art. 826 do BGB, têm de ser interpretados à luz da ordem de valores sobre a qual se assenta a Constituição, levando em consideração os direitos fundamentais, o que não fora feito pela Corte de Hamburgo, que não atribuíra, em sua decisão, qualquer influência à liberdade de expressão na interpretação da citada cláusula (SARMENTO, Daniel. A Vinculação dos particulares aos direitos fundamentais: o debate teórico e a jurisprudência do STF. In: LEITE, George Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang; CARBONELL, Miguel. direitos, deveres e garantias fundamentais. Salvador: JusPodivm, 2011. p. 295).

66 MARTINS, Tiago Penido. Eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares e o Supremo

Tribunal Federal. In: Encontro Nacional do CONPEDI: as dimensões da personalidade na contemporaneidade, 18., 2009, Maringá. Anais... Florianópolis: Fundação Boiteaux, 2009. p. 7298.

67 Dentre os adeptos desta teoria, podemos citar Konrad Hesse, Klaus Stern, Hans Peter Schneider, laus-

Wilhelm Canaris, Pedro Cruz Villalón, Jesús García Torres, Jesús Alfaro Aguila-Real, Carlos Alberto da Mota Pinto.

68 SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

[...] para a teoria da eficácia mediata, os direitos fundamentais não ingressam no cenário privado como direitos subjetivos, que possam ser invocados a partir da Constituição. Segundo Dürig, a proteção constitucional da autonomia privada pressupõe a possibilidade de os indivíduos renunciarem a direitos fundamentais no âmbito das relações privadas que mantêm, o que seria inadmissível nas relações travadas com o Poder Público.

Ou seja, os direitos fundamentais disciplinados pela Constituição são considerados como uma ordem de valores, devendo ser aplicados na esfera privada de forma indireta, pela interferência do Poder Público. Sendo assim, as normas de direito fundamental apenas teriam eficácia nas relações entre particulares quando mediadas pelo legislador infraconstitucional ou quando da interpretação dos tribunais nos casos concretos.

Para a submissão do Direito Privado às normas Constitucionais, desta forma, necessária a construção de pontes, ligando o primeiro às segundas. Para Dürig, estas pontes seriam as cláusulas gerais e os conceitos jurídicos indeterminados acolhidos pelo legislador (“fontes de irrupção dos direitos fundamentais no Direito Privado”) e interpretados e aplicados pelos juízes, sempre em conformidade com a ordem de valores subjacentes aos direitos fundamentais.

Segundo o Autor alemão, as cláusulas gerais seriam “os meios normativos para a defesa de ataques da direção de terceiros, com cujo auxílio, na falta de normas de proteção jurídico-civis especiais, o direito privado objetivo cumpre seu pedido de proteção”69. Assim, as cláusulas gerais, desenvolvidas pelo próprio direito privado, seriam preenchidas por valores moldados nos direitos fundamentais, solucionando, desta maneira, o conflito envolvendo tais direitos na relação de força particular.

Caberia ao Legislativo e ao Judiciário a aplicação mediata dos direitos fundamentais nas relações privadas. Àquele competiria proceder com a regulamentação normativa dos direitos fundamentais, restando a este a função de, quando da lacuna legal acerca da incidência dos direitos fundamentais, atribuir-lhes eficácia por meio da interpretação, valendo-se, para tanto, das cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados.

KONRAD HESSE70, analisando a função mediadora do legislador e dos tribunais

para a concretização dos direitos fundamentais nas relações privadas, preleciona que ao

69 DÜRIG, Günter. Direitos fundamentais e jurisdição civil. In: HECK, Luís Afonso. Direitos Fundamentais e

Direito Privado. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2011.p. 35.

70 HESSE, Konrad. Derecho constitucional e derecho privado. Tradução de Ignácio Gutiérrez. Madrid: Civitas,

legislador de Direito Privado cabe a tarefa de transformar o conteúdo dos direitos fundamentais com a finalidade de incidi-lo, indiretamente, nas relações jurídicas privadas:

Al legislador del Derecho Privado corresponde constitucionalmente la tarea de tranformar el contenido de los derechos fundamentales, de modo diferenciado y concreto, em Derecho inmediatamente vinculante para los participantes em una relación jurídico-privada. A el compete fundamentalmente cuidar de las múltiples modificaciones a las que obliga la influencia de los derechos fundamentales sobre el Derecho Privado. El legislador debe tener em cuenta que ello no puede reducirse a recortar la autodeterminación y la responsabilidad individuales, que la autonomia privada comprende también la posibilidad de contraer por libre decisión obligaciones que los poderes públicos no podrían imponer al ciudadano.

Diante disso, os defensores desta teoria acreditam que o direito fundamental deve ser aplicado apenas de modo mediato nas relações entre particulares, sob pena de desvirtuar a autonomia inerente à norma de direito privado.

Neste sentido, esclarece Dürig

Trata-se da conservação da autonomia jurídico-privada pela guarda do direito privado diante da assunção de preceitos de direito constitucional com efeito coercitivo, não primeiro tornar mediato pelo direito privado segundo leis objetivas próprias71.

Os direitos fundamentais, assim, apenas seriam aplicados na esfera particular após um processo de transformação, realizado por meio da interpretação e integração das cláusulas gerais e conceitos indeterminados do direito privado (considerados como “portas de entrada” dos direitos fundamentais no Direito Privado), à luz dos direitos fundamentais, tratando-se, nas palavras de INGO WOLFGANG SARLET, “de uma recepção dos direitos fundamentais pelo direito privado”72.