• Nenhum resultado encontrado

5. O Direito de Resistência

5.2 Formas de resistência:

5.2.5 Da influência e a matriz teórica dos Novos Movimentos Sociais

Embora tenhamos reclamado aqui de um movimento de pluralismo jurídico próprio à realidade latino-americana, como proposta emancipatória dos atores excluídos da periferia do ‘sul global’ não há como fugirmos ao reconhecimento da influência e origem teóricas dos Novos Movimentos Sociais de raiz européia, o que em si mesmo não constitui nesse trabalho nenhuma novidade ou estranhamento, a propósito de que a própria ‘filosofia da linguagem’ que inspira a hermenêutica pós-positivista (viragem linguística), como vimos em momentos anteriores é também tributária das escolas européias e alguns de seus influentes pensadores.

Não é diferente no caso destes movimentos sociais, que além de encontrarem eco também em autores como Foucault, Marx, Weber, Castoriadis, só para citarmos alguns muito relevantes, tem também no pensamento do frankfurtiano Jürgen Habermas um dos seus eixos de estruturação, o que aqui se mostra bastante relevante em vista de que este autor é também expoente da viragem linguística operada na filosofia do século XX e no tocante às estratégias políticas, nos dá respaldo à filosofia prática com o seu conceito de

 

243 BAUMAN, Zygmut: O Mal-estar da pós-modernidade. Tradução de Mauro Gama e Cláudia Martinelli

‘mundo da vida’ conceito também já usado na fenomenologia de Husserl.

Isso se dá, e aqui também serviria a Michel Foucault, porque em Habermas se dá uma articulação de teorias fundadas nos discursos e na ação dos indivíduos, naquilo que a sociologia dos movimentos sociais irá designar de abordagem microssocial, em que os autores se moveriam motivados por forças internas, onde os discursos se voltam para a questão da liberdade em detrimento a análises estruturais da sociedade, ou seja, como dissemos, às suas motivações internas com destaque, portanto, à autonomia, o que também é identificado no pensamento de Nietzsche e sua ‘valorização da vida’, no comunitarismo dos socialistas utópicos e na desobediência civil de Thoreau.244

Mas talvez foi em Habermas a melhor tentativa de explicação interpretativa da vida cotidiana, sobretudo pelo conceito de ‘mundo da vida’245, que se numa de suas

dimensões está escorada no conjunto das tradições herdadas e já implicitamente reconhecidas e imersas na linguagem e na cultura, por outro lado, implicaria também componentes estruturais outros, como a cultura, a sociedade e a personalidade.

Aqui ganha destaque sua Teoria da ação comunicativa, por meio da qual, quando entre atores é possível um nível tal de comunicação que permita o entendimento, existirá um compartilhamento de tradição cultural por meio de normas intersubjetivamente reconhecidas, ocasião em que a esses atores sociais seria dada ação enquanto membros de um grupo solidário.246

Mas, de modo mais elucidativo, em que consistiriam a ‘ação comunicativa’ e o próprio ‘sistema mundo’, enquanto categorias fundamentais em Jürgen Habermas?

É que no âmbito do giro linguístico, ex post ao esgotamento do paradigma da consciência, como já abordado neste trabalho, em Habermas ocorrerá a enunciação de uma razão de tipo ‘comunicativa’ (não esqueçamos que o mesmo se deu com Gadamer em sua ‘razão hermenêutica’) em que o enunciado de verdade estaria umbilicamente ligado à linguagem como sua condição e fundamento de validade. Até aqui, nada de novo em relação ao que já abordamos quanto a esse paradigma.

 

244 GOHN, Maria da Glória. Teoria dos Movimentos sociais. op. cit., p. 133

245 Celso Luiz Ludwig nos explica que se trata de ‘conceito utilizado por Habermas como conceito

complementar da ‘ação comunicativa’, procurando reconstruir o conceito fenomenológico e hermenêutico do mundo na vida no nível da ação comunicativa. (Para uma filosofia jurídica da libertação. op. cit., p. 116)

Mas em Habermas, como ‘filosofar é filosofar a partir da linguagem’, a questão da verdade estará ligada a consensos argumentativos que serão obtidos, por sua vez, por meio de uma intersubjetividade ambientada numa dada ‘situação ideal de fala’ e que irá funcionar como espécie de fundamentação última não-metafísica a que se designará, ‘pragmática transcendental’.247

Todavia, e sem necessidade de maiores incursões nesse particular, importa aqui o reconhecimento de que em Habermas, no âmbito da filosofia da linguagem é de relevo o paradigma da comunicação (teoria da ação comunicativa) em que agora o sujeito não se define em relação com os objetos – ponto este que já comentamos à exaustão – mas sim, vê-se obrigado a entender-se historicamente com outros sujeitos numa intrincada, porém necessária intersubjetividade composta por sujeitos capazes de linguagem e ação.248 Ora, é aqui que nos interessa a contribuição do pensador para o tema da

microssosociologia dos movimentos sociais, porquanto há pouco dissemos que quando os sujeitos se entendem mutuamente, acabam por compartilharem uma mesma tradição. Assim, retomando a categoria habermasiana de ‘mundo da vida’, também entendido como parte da sociedade civil e que engloba formas institucionais atuantes como organismos de mediação entre Estado e mercado, poderiam essas instituições assumirem o papel de criação de novos direitos, pois se de um lado estaria a sociedade civil representada pela perspectiva de um sistema econômico e político mais amplo (sistema mundo), por outro lado, o ‘mundo da vida’ atuaria como não menos relevante forma de análise dessa mesma sociedade civil, pois como adverte Maria da Glória Gohn: Para Habermas, a compreensão do ‘mundo da vida’ passa pela compreensão da consciência, mas, ao contrário de Husserl e Schutz, que vêem a consciência como fator primordial, obscurecendo tudo o que é material, ele vê a análise da consciência como algo inseparável das circunstâncias materiais. Ela já está sempre mergulhada nessas circunstâncias. Habermas, já nos anos 70, deu importante contribuição para a formulação de uma teoria dos movimentos sociais ao afirmar que eles criam possibilidades de novas relações sociais e de novas formas de produção, ao gerarem processos novos quando da busca de soluções alternativas aos problemas comuns enfrentados por seus participantes. Ele desenvolveu uma reflexão sobre os tipos de ações em conflitos coletivos em sua teoria da modernização, particularmente em suas versões mais recentes (1987) quando trata das relações entre os atores e o mundo.249

 

247 LUDWIG, Celso Luiz. Para uma filosofia jurídica da libertação. op. cit., p. 95 248 Ibidem, p. 104

Os Novos Movimentos Sociais, então, e no contexto da reflexão de Habermas, seriam possibilidades surgidas das relações travadas no interior da ‘mundo da vida’ por meio de uma especial solidariedade entre atores que intersubjetivamente estabeleceriam relações legítimas de partilha de reivindicações comuns, ao mesmo tempo em que ‘criariam mundos’ por meio de uma razão comunicativa (linguagem) que pode desemboca e pode ser facilmente observada nos movimentos sociais, na consideração que neles (os movimentos sociais) estariam atribuídos não somente o papel de aprendizado e formação da identidade social, como também seriam vistos como verdadeiros projetos democráticos com potencial para iniciar processos nos quais a esfera pública seria revivida, atuando, assim, como fatores de criação e, mais especialmente, de expansão dos espaços públicos da sociedade civil.250

Ora, essa expansão dos espaços públicos é o resultado essencial e ao mesmo tempo é o elemento que garante legitmidade aos movimentos sociais como agentes de interação, fortalecimento e desenvolvimento do sempre tenso tecido democrático, uma vez que estariam aptos a formularem novas propostas para velhas demandas, e isso porquê em Habermas e sua Teoria da ação comunicativa, os movimentos sociais agiriam como modo de resistência aos mecanismos de extensão da racionalidade técnica no interior das demais esferas da vida social, porquanto os novos problemas sociais são advindos de questões ligadas à qualidade de vida, igualdade de direitos, autorrealização individual, participação e, atualmente, sobretudo, direitos humanos.251