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2. A Filosofia pela linguagem: a Hermenêutica antes e a partir da ‘viragem

2.1 Hermenêutica e a busca pela natureza do entendimento Os antecedentes clássicos:

A Hermenêutica dita filosófica, como veremos, foi precedida de outras epistemologias que promoveram uma abordagem de matriz, ora muito próxima das ‘ciências naturais’ e seu método objetivo, ora com incursões subjetivas na busca da ‘alma do autor/objeto’ da análise interpretativa, modelos anteriores ao ‘paradigma linguístico’.

Gadamer, como veremos mais a frente, elaborou as suas ‘hermenêuticas’ num esquema que já veio prefigurado no século XIX, o apogeu do positivismo nas ‘ciências do espírito’. Nesse cenário, despontou o trabalho de Wilhelm Dilthey e uma pretensão de trabalhar as chamadas ‘humanidades’ já de modo diverso de outros positivistas, como Auguste Comte e Émile Durkheim, arautos do ‘positivismo sociológico’.63

Mas em que consistiria essa diferença de abordagem de Dilthey?

À maneira positivista clássica, o método historicista e a interpretação estariam ancorada na ‘explicação’ a partir das causas dos fenômenos, tal qual o observador as veriam no mundo físico, logo, de maneira objetiva. De outro lado, Dilthey inaugura uma

 

61HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,

1990, p. 15

62 BORGES, Guilherme Roman. Op. cit., p. 466

63 Ghiraldelli Jr, Paulo. A Aventura da Filosofia: De Heidegger a Danto. São Paulo: Manole, 2011, 1º edição,

hermenêutica, enquanto método, baseada na ‘compreensão’, ou seja, no mergulho e análise das razões e motivos das causas, tal como um psicólogo diante de um esforço de imaginação em quê o observador se poria ‘no lugar do outro’, no seu ‘ambiente histórico’, forjando, agora, uma ‘objetividade compreensiva’, num método de investigação que viria também a ser adotado por pensadores da fenomenologia, como Edmund Husserl e Martin Heidegger.64 Isso assim se daria, porquê, para Dilthey, a explicação

causal seria inapropriada para o objetivo e essência das ‘ciências humanas’.

Em Dilthey, para além de sua divisão entre ‘ciências dos espírito’ e ‘ciências humanas’ , cujos reflexos ainda estão presentes na epistemologia contemporânea, as questões colocadas sobre o entendimento do mundo, portanto, hermenêutico, estavam ligadas a ‘experiências vividas’ e a uma relação inextricável entre presente e passado histórico, mas sempre colocadas naquilo a que chamaria posteriormente por Jürgen Habermas de ‘mundo da vida’, deixando muito evidente que somos sempre ‘seres históricos’ razão mesma e pela qual o ‘entendimento’ estaria também amalgamado a um sentido histórico.

Todavia, se Dilthey inovou na sua abordagem de uma hermenêutica com metodologia ‘compreensiva’ em lugar de meramente ‘explicativa’ ainda assim, manteve um ‘caráter metodológico’ à tarefa interpretativa, o que viria se diferenciar da hermenêutica gadameriana, embora por ele muito influenciada, posto que esta dispensou o estabelecimento de um método específico, para situar-se, como será visto, numa ‘ontologia fundamental e filosófica’.

Não obstante sua contribuição para as ‘ciências humanas’, antes mesmo de Dilthey outro pensador também se debruçara com especial afinco sobre a questão das ‘hermenêuticas’, desenvolvendo um método denominado de ‘psicologização interpretativa’ de grande alcance e repercussão nesse cantão da Filosofia moderna, eis o que justifica, sob pena de inaceitável lacuna, uma notícia sobre Scheleiermacher.

Na denominada ‘hermenêutica romântica’, Schleiermacher tem o mérito de propor uma ‘hermenêutica geral’, ou seja, métodos de busca do entendimento para diversas categorias do conhecimento e interpretação, antes mais afeita ‘à busca de sentido dos textos bíblicos’, eis um mérito, como veremos, expressamente reconhecido por Gadamer.

 

Resgatando da retórica clássica a noção de ‘círculo hermenêutico’ (e que seria retomada mais tarde por Heidegger e Gadamer) o autor das ‘hermenêuticas românticas’ confere a ele uma nova ênfase, para explicar que o entendimento só é possível numa visão e leitura dinâmica entre as ‘porções de um texto e a unidade do todo’, numa relação direta e necessária, de tal modo que ‘o todo deve ser entendido em relação às partes, e estas ao todo’. A ideia presente nesta exposição é a de que não se pode conhecer a leitura correta de uma passagem de um texto, ignorando ao mínimo uma ideia prévia, sobre o texto todo, valendo o caminho verso, ou seja, não é dado conhecer a totalidade de um texto sem antes o conhecimento de determinadas passagens.

Para Schleiermacher, no processo de compreensão de um texto, ter-se-ia, i) análise do aspecto gramatical-linguístico; ii) análise da intenção do autor, ou seja, uma imersão na sua psicologia. Este segundo aspecto, fonte de polêmicas irresolúveis, sobretudo com acentuada crítica de Gadamer, denominou-se ‘divinatório’, porque marcadamente subjetivo e com vistas à busca da ‘alma do autor’ o que possibilitaria, nesse ‘psicologismo’ por meio da interpretação, uma ‘recriação’ da obra em estudo pelo intérprete.

Assim, além do processo gramatical-linguístico na análise hermenêutica, claramente impessoal, portanto, somar-se-ia outro, subjetivo e pessoal (psicologista) que demandaria uma congenialidade, traduzida num compartilhamento de ‘sentimentos entre autor e intérprete’, como afirmado por Brito: “A proposta de Schleiermacher afirma a possibilidade de reconstruir na compreensão a determinação original de uma obra. Assim, poderíamos reconstruir o sentido de uma obra de arte ou literária transmitida do passado e que, por isso, nos chega desenraizada de seu mundo original’.65

Essa ‘fusão de almas’ proposta por Schleiermacher, na verdade, essa possibilidade de imersão na psicologia do autor, profundamente subjetiva, em que pese – como será visto adiante – encontrar algum paralelo com a abordagem gadameriana de contato entre autor e intérprete, mesmo considerando a distância temporal, é refutada de maneira muito enfática por Gadamer, ao não admitir o alcance da ‘dimensão psíquica’ do autor e a (re)construção da sua obra original, em razão, segundo Gadamer, de que o

 

65 BRITO, Evandro Oliveira de. Consciência histórica e hermenêutica: considerações de Gadamer acerca

entendimento de um autor ultrapassaria as suas intenções e o sentido mesmo da produção em dado contexto pensado pelo autor.

É que em Gadamer, não seria possível o desprezo a historicidade mesma do intérprete, posto que sempre inserido numa realidade prévia que é já em si mesma condicionante do seu entendimento, nem tampouco seria válida a desconsideração da chamada ‘consciência histórica’, uma vez que toda interpretação é indissociável da sua própria ambiência política, cultural e social.

É por isso, também, que o entendimento hermenêutico, como sustenta Gadamer, não prescinde da abordagem dialógica e interativa, cuja deficiência acusa em Schleiermacher, e que representaria, no próprio ‘círculo hermenêutico’ a ausência de diálogo entre o ‘todo e as partes’.

Mas se com esses dois autores, Dilthey e Schleiermacher, brevemente visitados, as ‘hermenêuticas’ ainda não haviam sido de todo inseridas na ‘virada linguística’ do que viria a se tornar o novo paradigma em meados do século XX - não obstante sua notável contribuição para o entendimento das ‘ciências humanas’, avanço maior que só não foi possível em razão de estarem ainda ‘presos nas teias oitocentistas’ - o início do grande salto, da viragem propriamente dita e da elevação da hermenêutica, então método de entendimento, para o status de hermenêutica filosófica, calcada, como iniciou Dilthey, na compreensão e relegando a segundo plano a mera ‘explicação causal’, viria a acontecer no âmbito de uma ‘fenomenologia existencial’, ou mais precisamente, pelas tintas pinceladas na ‘floresta negra’ por obra e engenho de Martin Heidegger e sua categoria existencial do dasein na chamada hermenêutica da facticidade.

2.2 Da Filosofia Hermenêutica à hermenêutica filosófica: De método à