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Da instância da obediência à razão governamental

Localizados os campos de algumas relações de “saber-poder” analisadas por Foucault até 1978, torna-se possível avançarmos e desenvolvermos mais detalhadamente o problema da “governamentalidade”, noção que reserva à noção de “subjetividade” um destino singular.

O espaço aberto pela ideia de “população” no contexto dos problemas das técnicas biopolíticas está em relação direta com uma preocupação de Foucault, que o domina no curso de 1978, Segurança, território, população, de avaliar os vínculos históricos entre “razão de Estado” e as diferentes formas de “governo dos homens”. Temos, então, um percurso lógico: se, como visto, na raiz da noção de “população” está um conjunto de indivíduos cuja vida deve

123 História da sexualidade I: A vontade de saber, p. 96; p. 64. Em 1977, no prefácio à edição americana de O

Anti-Édipo (1972), de Gilles Deleuze e Felix Guattari, Foucault anuncia: “Eu diria que O Anti-Édipo (possam seus autores me perdoar) é um livro de ética” e complementa “(...) poderíamos dizer que O Anti-Édipo é uma Introdução à vida não fascista”. Longe de ser uma provocação, a afirmação destaca uma linha filosófica determinante para a orientação no pensamento que Foucault e Deleuze compartilharam no período. Tanto O Anti-Édipo quanto A vontade de saber têm como principal alvo a negatividade presente na concepção de desejo como representação de uma falta, criticando o conceito de sujeito desejante como sujeito fundante de um regime de identidade. Para Foucault e Deleuze, cada um à sua maneira, a resposta a essa espécie de “antropologia da carência” está na prática de um pensamento que investiga seus caminhos prévios, os percursos históricos que definiram suas razões e limites. Deixando, porém, a problemática específica do Anti-Édipo à parte, interessa-nos aqui destacar como o comentário de Foucault sobre o livro remete o leitor às suas próprias pesquisas da época: “A melhor maneira de ler O Anti-Édipo é, creio eu, abordá-lo como uma “arte”, no sentido em que se fala de “arte erótica”, por exemplo. Apoiando-se nas noções aparentemente abstratas de multiplicidade, de fluxos, de dispositivos e de ramificações, a análise da relação do desejo com a realidade e com a “máquina” capitalista traz respostas a questões concretas. Questões que se ocupam menos com o porquê das coisas do que com seu como. Como se introduz o desejo no pensamento, no discurso, na ação? Como o desejo pode e deve desdobrar suas forças na esfera do político e se intensificar no processo de reversão da ordem estabelecidas? Ars erotica, ars theoretica, ars politica.” Ditos e escritos II, “Prefácio”, p. 134. O texto nos instrui sobre os rumos que tomavam suas investigações sobre o poder. Ao interpretar O Anti-Édipo como um “livro de ética”, que deve ser lido como uma “arte erótica”, Foucault antecipa algo dos seus futuros trabalhos sobre a força do “si” na composição da subjetividade. Como será exposto no próximo capítulo, a mudança vetorial no campo das relações de forças analisada por Foucault resultará no interesse do autor pela técnica de uma “arte erótica” de si mesmo confortável à esfera da ética. O sujeito, ao tornar- se objeto de si, mostra-se capaz de ativamente escolher com quais forças de saber e de poder ele se relacionaria, mantendo, assim, uma relação crítica consigo mesmo ao olhar para os próprios prazeres.

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ser governada como um objeto que possui um ciclo “natural”, uma genealogia das práticas

relacionadas a esse objetivo necessariamente incluiria um conjunto de saberes e técnicas desenvolvido a partir da moderna concepção de Estado, um de seus instrumentos por excelência. Sem dúvida, o Estado como administrador dos sujeitos também estava presente na análise do poder disciplinar; sua atividade, porém, era pontual, com estratégias direcionadas à vigilância dos corpos por aparelhos específicos do modelo disciplinar. E aqui precisamos nos reportar a uma diferença fundamental estabelecida por Foucault: o nascimento da “população” no século XVIII, como descrito no item 2.1 deste trabalho, vincula-se a uma nova visão do político, que agora deve incorporar as práticas do saber denominado “economia política”, exigindo uma nova habilidade do governante em relação ao governo dessa forma de multiplicidade:

Tem-se uma população cuja natureza é tal que é no interior dessa natureza, com ajuda dessa natureza, a propósito dessa natureza que o soberano deve desenvolver procedimentos refletidos de governo. Em outras palavras, no caso da população tem- se algo bem diferente de uma coleção de sujeitos de direito (...); tem-se um conjunto de elementos que, de um lado, se inserem (s’enforncent) no regime geral dos seres vivos e, de outro, apresentam uma superfície de contato (surface de prise) para transformações autoritárias, mas refletidas e calculadas. (g.n) 124

Internalizar a população à natureza significa interpretá-la como elemento que possui um grau de imprevisibilidade a ser considerado quando o governante toma uma decisão que envolve riscos e custos. Portanto, assim como uma série de externalidades afetam a produção de riquezas de um Estado, a população também pode ser afetada por imprevistos que prejudicariam ou alterariam seu ciclo na natureza, como epidemias, mudanças climáticas, desenvolvimento de novas tecnologias, entre outros fenômenos já analisados anteriormente. Esse novo olhar para o problema da população reorganiza as relações de poder e impõe ao governo a necessidade de criação e desenvolvimento de técnicas que levem em consideração a limitação interna dos recursos de um território, incluindo aí o recurso “população”, para a tomada de decisão. O diagrama de relações de poder denominado “segurança-população- governo” caracteriza uma forma de governar típica da modernidade125, a qual Foucault

denomina “governamentalidade”:

124 Segurança, território, população p. 77; p. 98.

125 Foucault dedicará o curso do ano seguinte, Nascimento da biopolítica, inteiramente à análise das técnicas de

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Por “governamentalidade” (gouvernementalité), entendo o conjunto constituídos pelas instituições, os procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem específica, embora muito complexa, de poder que tem por alvo principal a população, por principal forma de saber a economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança. 126

É a partir desse ponto de vista que Foucault situa seu interesse no Estado moderno127:

“o que tentarei lhes mostrar é como se pode efetivamente situar (replacer) a emergência do Estado, como objeto político fundamental, no interior de uma história mais geral, que é a história da governamentalidade.”128, e mais adiante se pergunta “E se o Estado não fosse mais que uma maneira de governar? Se o Estado não fosse mais que um tipo de govemamentalidade?”. O ângulo de abordagem foucaultiana do “Estado” e da “população”, portanto, sinaliza para uma direção própria: destacadas das investigações que privilegiam uma lógica formalista do funcionamento interno das instituições, as relações de poder que envolvem o Estado são interpretadas à luz dos manipuladores e dos destinatários de suas tecnologias; desprovidas do privilégio do objeto, essas relações são situadas no ponto de vista da constituição histórica-estratégica dos campos e domínios dos saberes voltados a essa técnica de governo da “população”129. E, diante desse complexo arranjo filosófico e histórico despertado pela noção de “governamentalidade”, interessa-nos deter algumas questões específicas.