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A governamentalidade é uma técnica de governo dos homens “Creio que, de

modo geral, o problema do “governo” eclode no século XVI, de maneira simultânea, a propósito de muitas questões diferentes e sob múltiplos aspectos” 130. O problema do governo de si,

governo das almas, governo dos filhos, governo do príncipe, enfim, o problema do “governo” em geral, situa-se no “ponto de cruzamento” de dois processos ocorridos no século XVI: “o que, desfazendo as estruturas feudais, está criando, instaurando os grandes Estados territoriais (...) e um outro movimento totalmente diferente, (...) que, com a Reforma, depois a

126 Segurança, território, população, p. 111; p. 143*.

127 Estudo fundamental e pioneiro sobre o tema é o de GORDON, C., p. 1-53. Para Gordon, as noções de

biopolítica/governamentalidade foram necessárias para Foucault passar a trabalhar com uma “macrofísica” do poder, respondendo a críticas que questionavam o alcance de suas análises sobre o poder disciplinar quando aplicadas a questões políticas globais (especificamente sobre as relações entre Estado e sociedade).

128 Segurança, território, população p. 252; p. 330-331.

129 Importante retrospecto da fundamentação metodológica dessa genealogia encontra-se em Segurança, território,

população population, pp. 119-124; pp. 156-162.

65 Contrarreforma, põe em questão a maneira como se quer ser espiritualmente dirigido” 131. No âmbito do curso de 1978, Foucault se deterá no primeiro desses processos, sobre a questão do governo do Estado, e é a partir do paradigma estabelecido por O príncipe, de Maquiavel, que uma luta teórica sobre a gestão do Estado se impõe a partir do século XVI. Entre os teóricos da “arte de governar” e Maquiavel não existe uma aliança natural, apesar de compartilharem o mesmo inimigo, o discurso teológico-político hegemônico até então. Tomando, então, a perspectiva da governamentalidade, qual a novidade trazida por esse livro, tão forte a ponto de ter criado um “gênero anti-Maquiavel”132? Os críticos do florentino133 compreendem que o livro propõe a visão de um príncipe que está em posição de exterioridade em relação ao seu principado, adquirido por conquista ou herança; sua figura, portanto, transcende os súditos pertencentes ao seu território. O interesse desse príncipe reside na manutenção da necessariamente conflituosa relação estabelecida entre ele e seu principado, e não na preocupação imediata com seus súditos, meros instrumentos do jogo político. Por essa perspectiva, não haveria, portanto, uma “arte de governar” em Maquiavel, pois sua intenção teórica está circunscrita à manutenção da legitimidade do reinado do príncipe e de seu controle sobre o território (o controle sobre os súditos permanece em segundo plano):

Maquiavel não faz nada mais que retomar (...) um princípio jurídico que é o mesmo pelo qual se caracterizava a soberania: a soberania no direito público, da Idade Média ao século XVI, não se exerce sobre as coisas, ela se exerce primeiro sobre um território e, por conseguinte, sobre os súditos que nele habitam134.

Enquanto nas “artes de governar” os objetivos são sempre variáveis e múltiplos, dependentes do modo como se deseja administrar os “homens” e as “coisas”, em Maquiavel o

131 Segurança, território, população, pp. 92-93; pp. 118-119. No curso de 1980, Do governo dos vivos, Foucault

tratará especificamente do problema do governo da salvação das almas pela produção de verdade.

132 Segurança, território, população, p. 94; p. 121

133 Resumimos aqui tão brevemente um argumento complexo e mais detalhado por Foucault por toda aula do dia

1º de fevereiro de 1978, apoiado em literatura que percorre o século XVI até o XVIII: “Ora, numa forma explícita: toda uma série de livros que, em geral, alias vêm dos meios católicos, muitas vezes jesuítas até - vocês têm, por exemplo, o texto de Ambrogio Politi que se chama Disputationes de libris a Christiano detestandis, isto é, se bem entendo, Discussões sobre os livros que um cristão deve detestar; (...) Innocent Gentillet, escreveu um dos prirneiros anti-Maquiavel, que se chama Discurso de Estado sobre os meios de bern governar contra Nicolau Maquiavel; encontrarão também mais tarde, na literatura explicitamente antimaquiaveliana o texto de Frederico ll, de 1740. Mas há também toda literatura implícita que está em posição de demarcação e oposição surda a Maquiavel. É o caso, por exemplo, do livro inglês de Thomas Elyot, que se chama The Governour, publicado em 1580, do livro de Paruta sobre A perfeição da vida política e talvez um dos primeiros, sobre o qual me deterei aliás, o livro de Guillaume de La Perrière, O espelho político, publicado em 1555.” Segurança, território, população, p. 94; p. 120-121.

66 problema do governo não é problematizado efetivamente, pois seu olhar para o Estado limita- se à relação soberano-território. 135

Os opositores de Maquiavel direcionam-se à outra forma de poder aplicável às relações estabelecidas entre governantes e governados. Foucault aponta para uma unidade teórica possível entre eles: inspirado em uma linha de “continuidade”, o exercício da política, ou seja, o governo de um Estado, não é diferente do governo de si (relacionado à moral) ou do governo da família (relacionado à economia)136, e “quem quiser ser capaz de governar o Estado primeiro deve primeiro saber governar a si mesmo; depois, num outro nível, governar sua família, seu bem, seu domínio; por fim, chegará a governar o Estado”137. Para bem governar, portanto, é necessário retomar outras relações estabelecidas no convívio social - relações plurais e imanentes a quem governa. Não somente o “príncipe” governa, mas o pai, o padre, o professor; inversamente, no território onde o Estado é bem governado, “os pais de família sabem bem governar sua família, suas riquezas, seus bens, sua propriedade, e os indivíduos, também, se dirigem como convém (...) é o que se começa a chamar, nessa época, de ‘polícia’”138. O

protagonismo do modelo do governo da família nessa forma de gestão, chamado, justamente, de “economia”, nota Foucault, está no centro do problema dessa arte de governar no século XVI: “como introduzir a economia (...) como introduzir essa atenção, essa meticulosidade, esse tipo de relação do pai de família com sua família na gestão de um Estado?”, problema que Foucault vê repercutir através dos séculos até alcançar, por exemplo, o conflito entre economia política e soberania identificado por Rousseau139. Para Foucault, é justamente no século XVIII que a economia política destaca-se do problema da gestão da família para adquirir sua autonomia como um saber governamental dirigido ao controle da população.

Da leitura de Maquiavel proposta no curso de 1978 decorre-se outras características da governamentalidade. Em primeiro lugar, essa arte de governar anti-Maquiavel, passa a ser uma

135 M. Senellart sublinha a crítica não explícita que Foucault dirige a Althusser quando retira de Maquiavel a

posição de fundador da concepção de ação política da “arte de governar”. Cf. SENELLART, M. “Machiavel dans la perspective de la gouvernementalité”, p. 5-6.

136 Segurança, território, população, p. 97; pp. 124-125. 137 Segurança, território, população, p. 97; p. 125*.

138 Segurança, território, população, p. p. 98; 126. Foucault tratará do problema da polícia nas duas últimas aulas

do curso: 29 de março e 5 de abril.

139 Segurança, território, população, p. 110; p. 141. No verbete “Economia Política” Rousseau distingue com

veemência certa tendência teórica da época em associar governo da família e o governo do Estado baseando-se na ideia de que as funções e os meios de alcançarem os fins de seus governos são absolutamente diferentes: “o Estado não tem nada em comum com a família, a não ser a obrigação dos chefes de tornar felizes tanto um quanto outra”. ROUSSEAU, J-J., verbete “Economia Política”, p. 109. Para Foucault, no entanto, interessa mostrar como o problema é fundamental para reconstituir os caminhos irregulares da economia política enquanto instrumento de governo, principalmente no centro do debate teórico político pós-Maquiavel.

67 relação direta com “os homens e as coisas”140, como Foucault extrai de O espelho político, de

Guillaume de La Perrière, texto-chave nessa análise dos primórdios da governamentalidade na era moderna. “Homens e coisas” como homens e suas relações com o meio em que vive: os recursos de um território, suas riquezas e potencialidades, seus problemas climáticos e geográficos, a fome, as doenças, a correta gestão a partir dos costumes e história de cada população. Como consequência, privilegiar homens e coisas em detrimento da própria vontade do poder soberano é direcioná-los não a um bem comum, mas a um fim adequado, dispondo esses elementos conforme um cálculo e um objetivo, seja ele qual for. Daí a fundamental oposição foucaultiana entre soberania e arte de governar: enquanto na perspectiva de um soberano a ideia de bem comum será sempre circular, pois na relação jurídica entre soberano e súdito a prática do bem comum será sempre a obediência à lei, representação do próprio soberano, a arte de governar possui outro arranjo de forças: “O governo é definido por La Perrière como uma maneira correta de dispor das coisas para levá-las não à forma do ‘bem comum’, mas a um ‘fim conveniente’, fim conveniente para cada uma das coisas que precisam ser governadas”141. Temos, então, o embate entre duas técnicas de governo que muitas vezes

divergem entre si: a primeira, o exercício da soberania com sua consequente problemática do contrato, objeto de intensa discussão teórica no período; e a segunda, uma arte de governar que a partir do século XVIII será conhecida como “economia política” (não nos esqueçamos do poder disciplinar, também atuante no período). Dois modos de proceder que podem colaborar entre si ou entrarem em conflito, dois campos práticos que alcançam visibilidade no século XVIII justamente pelo exemplo da disputa entre mercantilistas e fisiocratas e da “emergência do problema da população” 142.

2) A arte de governar os homens inexistia na Antiguidade grega e romana. Sua