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Da necessidade de autorização legislativa

CAPÍTULO II – A mutação ou a “criminalização” do direito administrativo

1. A problemática da aplicabilidade direta em matéria sancionatória

1.4. Da necessidade de autorização legislativa

Uma outra questão é suscitada em relação às infrações administrativas (entre nós, contraordenações), diretamente previstas no Regulamento, que não são crimes, mas que preveem sanções extremamente graves: por um lado, será que os montantes elevados dos limites máximos das coimas previstas no R.G.P.D. ultrapassam os montantes previstos no Regime Geral das Contraordenações (R.G.C.O.) e colocam em causa a reserva de competência legislativa? E, por outro lado, será que o R.G.P.D., ao não incluir limites mínimos, admite a interpretação segundo a qual permite implicitamente a existência de limites mínimos inferiores

aos estabelecidos no R.G.C.O.?600 O problema que se suscita é o da reserva relativa

de competência da Assembleia da República para legislar em matéria de “[…] regime geral de punição [...] dos atos ilícitos de mera ordenação social e do respetivo processo”, nos termos do art. 165.º, n.º 1, al. d), da C.R.P.

Apesar de esta questão não se colocar especificamente no âmbito do R.G.P.D., é deste que nos iremos ocupar.

Os limites máximos das coimas previstas no R.G.P.D. ultrapassam em muito os do R.G.C.O., sendo tal matéria considerada de reserva legislativa pela

jurisprudência do T.C.601. Como é jurisprudência uniforme do T.C.602, essa reserva

abrange não só a alteração do R.G.C.O., em si mesmo, como a legislação especial que introduza, no seu limitado campo de aplicação, desvios ao mesmo, como sucede a todo o passo com o regime estabelecido no Regulamento, a começar, desde logo, com

600 Questionam MOUTINHO, José Lobo; RAMALHO, David Silva, em Notas sobre..., op. cit., pág. 28.

601 Cf., entre outros, recentemente, o Acórdão do T.C. n.º 374/2013, de 28 de junho de 2013, Processo n.º 481/13 [Consulta em 20 de fevereiro de 2019]. Disponível para consulta em: http://bit.ly/2IstzsG.

602 Cfr., com mais indicações, o Acórdão do T.C. n.º 447/91, de 28 de novembro de 1991, Processo n.º 227/90. [Consulta em 20 de fevereiro de 2019]. Disponível para consulta em: http://bit.ly/2IHgL0Q; Acórdão do T.C. n.º 380/99, de 22 de junho de 1999, Processo n.º 405/97 [Consulta em 20 de fevereiro de 2019]. Disponível para consulta em: http://bit.ly/2Gpn6LC; e, mais recentemente, o Acórdão do T.C. n.º 374/2013, de 28 de junho de 2013, Processo n.º 481/13 [Consulta em 20 de fevereiro de 2019]. Disponível para consulta em: http://bit.ly/2IstzsG.

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os limites máximos das sanções previstas no art. 83.º, n.os 4, 5 e 6, do R.G.P.D.603, que

excedem largamente os limites do art. 17.º do R.G.C.O.604.

Porém, será a reserva relativa de competência da Assembleia da República suscetível de ser afastada nesta matéria, por aplicação direta de um instrumento jurídico da União Europeia? Parece-nos que o art. 288.º, § 2, do T.F.U.E. é inequívoco quanto à vinculação direta e o art. 8.º, n.º 4, da C.R.P. autoriza a aplicação na ordem jurídica interna das normas emanadas das instituições europeias, no exercício das respetivas competências, nos termos definidos pelo direito da União Europeia, com

respeito pelos princípios fundamentais do Estado de Direito democrático605.

Na opinião de MARIA FERNANDA PALMA606 e de acordo com o nosso

entendimento, tendo em consideração a matéria de reserva relativa de competência da Assembleia da República quanto ao regime das contraordenações e a questão específica do limite máximo no contexto sistemático do R.G.P.D., este não coloca em causa os princípios fundamentais do Estado de Direito democrático, na medida em que são previstos critérios de determinação da medida da coima que consideram a proporcionalidade e o grau de culpa, impedindo a violação da segurança jurídica. Não terá, assim, cabimento a exigência de qualquer autorização legislativa

condicionante da aplicação do Regulamento607.

603 A saber: “4. A violação das disposições a seguir enumeradas está sujeita, em conformidade com o n.º 2, a coimas até 10 000 000 EUR ou, no caso de uma empresa, até 2 % do seu volume de negócios anual a nível mundial correspondente ao exercício financeiro anterior, consoante o montante que for mais elevado: a) As obrigações do responsável pelo tratamento e do subcontratante nos termos dos artigos 8.º, 11.º, 25.º a 39.º e 42.º e 43.º; b) As obrigações do organismo de certificação nos termos dos artigos 42.º e 43.º; c) As obrigações do organismo de supervisão nos termos do artigo 41.º, n.º 4. 5. A violação das disposições a seguir enumeradas está sujeita, em conformidade com o n.º 2, a coimas até 20 000 000 EUR ou, no caso de uma empresa, até 4 % do seu volume de negócios anual a nível mundial correspondente ao exercício financeiro anterior, consoante o montante que for mais elevado: a) Os princípios básicos do tratamento, incluindo as condições de consentimento, nos termos dos artigos 5.º, 6.º, 7.º e 9.º; b) Os direitos dos titulares dos dados nos termos dos artigos 12.º a 22.º; c) As transferências de dados pessoais para um destinatário num país terceiro ou uma organização internacional nos termos dos artigos 44.º a 49.º; d) As obrigações nos termos do direito do Estado-Membro adotado ao abrigo do capítulo IX; e) O incumprimento de uma ordem de limitação, temporária ou definitiva, relativa ao tratamento ou à suspensão de fluxos de dados, emitida pela autoridade de controlo nos termos do artigo 58.º, n.º 2, ou o facto de não facultar acesso, em violação do artigo 58.º, n.º 1. 6. O incumprimento de uma ordem emitida pela autoridade de controlo a que se refere o artigo 58.º, n.º 2, está sujeito, em conformidade com o n.º 2 do presente artigo, a coimas até 20 000 000 EUR ou, no caso de uma empresa, até 4 % do seu volume de negócios anual a nível mundial correspondente ao exercício financeiro anterior, consoante o montante mais elevado”. 604 Segundo o qual: “1 – Se o contrário não resultar de lei, o montante mínimo da coima aplicável às pessoas singulares é de (euro) 3,74 e o máximo de (euro) 3740,98. 2 – Se o contrário não resultar de lei, o montante máximo da coima aplicável às pessoas colectivas é de (euro) 44891,81. 3 – Em caso de negligência, se o contrário não resultar de lei, os montantes máximos previstos nos números anteriores são, respectivamente, de (euro) 1870,49 e de (euro) 22445,91. 4 – Em qualquer caso, se a lei, relativamente ao montante máximo, não distinguir o comportamento doloso do negligente, este só pode ser sancionado até metade daquele montante”.

605 Como defende PALMA, Maria Fernanda, em O Direito Penal…, op. cit., págs. 13-14. 606 Ibidem, pág. 14.

607 Refere, ainda, PALMA, Maria Fernanda, em O Direito Penal…, op. cit., pág. 14, contra a interpretação de MOUTINHO, José Lobo, em Legislador português..., op. cit., págs. 40-57.

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Para além disso, segundo a Autora608, o regime sancionatório previsto no

art. 83.º do R.G.P.D. em nada impede a aplicabilidade subsidiária do mínimo da medida da coima, previsto no art. 17.º do R.G.C.O.

Pelo contrário, JOSÉ LOBO MOUTINHO e DAVID SILVA RAMALHO609

defendem que a reserva relativa de competência da Assembleia da República é insuscetível de ser afastada nesta matéria, por aplicação direta de um instrumento

jurídico da União Europeia, e JOSÉ LOBOMOUTINHO610 conclui pela necessidade de

intervenção legislativa portuguesa, mesmo no domínio das infrações diretamente previstas no Regulamento e que se mantenham como tal.

Importa sublinhar, a este respeito, que o art. 45.º da Proposta de Lei de Proteção de Dados Pessoais, quando determina a aplicação subsidiária do R.G.C.O. “[e]m tudo o que não esteja previsto na presente lei em matéria contraordenacional […]”, tem de ser revisto, de modo a salvaguardar o disposto no R.G.P.D. em matéria de contraordenações. Assim, recomenda-se a seguinte redação para a parte inicial do art. 45.º: “[e]m tudo o que não esteja previsto no Regulamento Geral sobre a

Proteção de Dados e na presente lei em matéria contraordenacional […]”611. Note-se

ainda a este propósito que, como o R.G.C.O. se aplica subsidiariamente e tendo em

conta o disposto no seu art. 8.º612, é imprescindível prever na Proposta de Lei de

Proteção de Dados Pessoais que, nesta matéria contraordenacional, a negligência é sempre sancionável. Esta previsão que aqui se recomenda não contraria o art. 83.º do R.G.P.D., porque o n.º 2, al. b), deste artigo impõe ter em consideração para

aplicação de uma coima “[o] caráter intencional ou negligente da infração”613.

608 Em O Direito Penal…, op. cit., pág. 14. 609 In Notas sobre..., op. cit., pág. 28. 610 In Legislador português..., op. cit., pág. 46.

611 De acordo com o Parecer n.º 20/2018, de 2 de maio de 2018, Processo n.º 6275/2018, da C.N.P.D. [Consulta em 20 de fevereiro de 2019]. Disponível para consulta em: http://bit.ly/2GrYSjQ. Pág. 51.

612 A saber: “1 – Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência. 2 – O erro sobre elementos do tipo, sobre a proibição, ou sobre um estado de coisas que, a existir, afastaria a ilicitude do facto ou a culpa do agente, exclui o dolo. 3 – Fica ressalvada a punibilidade da negligência nos termos gerais”.

613 Nestes termos, veja-se o Parecer n.º 20/2018, de 2 de maio de 2018, Processo n.º 6275/2018, da C.N.P.D. [Consulta em 20 de fevereiro de 2019]. Disponível para consulta em: http://bit.ly/2GrYSjQ. Pág. 52.

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